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A volta da "execução provisória" da pena

O sistema que hoje se chegou é mais limitador de garantias que mesmo o sustentado pela Corte quando da ditadura militar e nos seus momentos posteriores.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Atualizado às 08:29

O último dia 17/02 foi repentinamente tomado pela surpresa do anúncio da mudança de entendimento pelo STF, em torno da presunção de inocência e de seu impacto nas decisões condenatórias não transitadas em julgado.

Havia consolidação no posicionamento de que somente o trânsito em julgado de decisão penal condenatória seria meio hábil a dar início à pena, não sendo admissível sua "execução provisória", ou seja, sua execução com a pendência no julgamento de recursos, mesmo que de natureza constitucional, endereçados ao STJ e ao STF que, em regra, não são dotados de efeito suspensivo.

A questão penal se colocava de outra forma, não limitada à análise dos efeitos recursais específicos, mas da importância vital do princípio da presunção de inocência que, na redação pela qual optou o legislador constituinte em 1988, não admite muitas ginásticas interpretativas, pois está absolutamente claro que somente o trânsito em julgado de sentença penal condenatória rompe o estado de inocência do acusado e, por óbvio, pessoas inocentes não devem cumprir pena.

É importante destacar que a pacificidade da matéria era tamanha que, quando do julgamento da constitucionalidade da chamada "Lei Ficha Limpa", o próprio Pretório Excelso fez questão de separar o que é condenação penal, cujos efeitos dependeriam de trânsito em julgado da decisão condenatória, das demais matérias, nas quais a resolução da causa por órgão colegiado já poderiam ter efeitos.

Também vale destacar que, dentro da legitimidade natural que a atividade parlamentar possui no Estado Democrático, o Congresso Nacional com seu silenciamento à proposta de Emenda Constitucional apresentada há alguns anos, pelo então ministro presidente do STF Cezar Peluso, não a conduzindo até agora para análise, implicitamente manifestou a adequação do sistema de presunção de inocência então adotado, ou seja, no sentido de que somente o trânsito em julgado da sentença penal condenatória seria habilitador da execução da pena.

A propósito, o fato do ministro presidente do STF apresentar a supra referida proposta de Emenda Constitucional traz a clara mensagem de que a questão seria absolutamente clara e não dependeria de simples mudança de entendimento, ante a sua evidência, mas dependeria de verdadeira alteração no texto constitucional o que, ressalte-se, o parlamento até hoje não o desejou promover, manifestando, a partir de sua representatividade popular, a mensagem de que o sistema estava preciso com os desejos da população democraticamente representada.

A questão, porém, deve ser refletiva além do aspecto evidente de debate inicial estabelecido sobre a existência de um momento processual em que uma presunção, claramente prorrogada pela CF até o trânsito em julgado da sentença pena condenatória, deixaria de ter eficácia. O debate também deve necessariamente observar os aspectos sistêmicos e estes tem, nas primeiras manifestações havidas na matéria, passados despercebidos.

Destarte, a decisão recente do Pretório Excelso coloca em discussão o próprio sistema de Justiça adotado no Brasil, pois se estabeleceu nos últimos anos uma falsa perspectiva de direito comparado que tem conduzido a interpretações absolutamente distorcidas, quando trazidas à perspectiva do sistema jurídico penal brasileiro.

É comum que se diga que nos Estados Unidos é assim, ou que na Alemanha daquela forma, como suporte absoluto, não passível de contradição, para determinados entendimentos. Em verdade, a análise comparada é dotada de importância por permitir ao intérprete refletir sobre diferentes perspectivas da matéria, comparando métodos avançados a fim de extrair seus aspectos mais positivos, mas é igualmente correto ser absolutamente temerária, quando se trata de analisar pontualmente aspectos do sistema de Justiça.

Melhor explicando, quando se fala, por exemplo, que o MP tem poder investigativo nos Estados Unidos, raramente se ouve alguém lembrar que o advogado regularmente constituído também o tem. Quando se fala na possibilidade executiva da pena após a condenação de primeiro grau, na Justiça norte-americana, há um esquecimento de que lá a imensa maioria dos casos criminais são julgados pelo Tribunal do Júri (a exceção é apenas o crime de responsabilidade do Presidente da República) e deste julgamento, pela essência estrutural do juízo por jurados, não cabe qualquer recurso de mérito, nem para defesa nem para a acusação, em outras palavras, condenado cumpre pena, mas se absolvido o está em caráter praticamente definitivo. Não se fala, quando referido ao sistema Alemão e mesmo, novamente, ao norte-americano, do poder da decisão dos Tribunais, em que a Jurisprudência gera praticamente uma regra de cumprimento obrigatório em todos os demais âmbitos jurisdicionais, dentro de uma lógica racionalizante do sistema que objetiva a uniformização das decisões e não as intermináveis manifestações de posicionamentos pessoais e debates subjetivos, como é comum nos sistemas latino-americanos, entre os quais se insere o brasileiro.

A propósito, no Brasil, comparado o sistema de Justiça existente com as assertivas do parágrafo anteriores, pode-se afirmar, sem medo de errar, que: a) os poderes da acusação são incomparavelmente superiores às possibilidades defensivas; b) existe evidente preconceito com o julgamento por jurados, sendo comuns as decisões que caçam suas decisões, em especial absolutórias, com disfarçadas análises sobre o próprio mérito do julgamento; c) há evidente desprestígio da jurisprudência, mesmo que consolidada, pois se privilegia a manifestação do posicionamento pessoal de cada julgador isolado, em detrimento da uniformidade do sistema.

Há que se deixar claro, porém, que a questão que se propõe não é analisar se o sistema brasileiro é pior ou melhor que o estadunidense ou alemão, mas verificar que é claramente diferente e, nesta perspectiva, diferente é a função e tarefa dos Tribunais Superiores, pois há necessidade de sua presença mais contínua na sociedade brasileira para a resolução dos conflitos, por exemplo, permanentemente, reavaliando decisões de outros âmbitos jurisdicionais para reafirmar sua própria jurisprudência, mesmo que já consolidada.

Essa necessidade de atuação mais contínua dos órgãos julgadores superiores, não se faz presente em sistemas, por exemplo, que privilegiam o juízo de reprovabilidade social manifestado por cidadãos jurados ou a o seguimento linear da jurisprudência.

Assim sendo, quer se considere o sistema de Justiça brasileiro melhor, quer se considere ele pior que os demais com os quais seja comparado, não haverá dúvidas em afirmar que o que não é aceitável é o que tem ocorrido, nada mais que a importação parcial de fórmulas e regras que são estruturadas de forma adequada em modelos absolutamente diferentes ao adotado no Brasil.

Não importa, em sentido comparativo com a realidade nacional, quantos processos um Ministro da Suprema Corte Alemã julga ou quantos julga o ministro da Corte Constitucional Norte-Americana, pois esses sistemas, como já reiteradamente afirmado, são distintos e, ou se altera o sistema de justiça brasileiro como um todo ou é assumido o existente, com suas características próprias e relevância própria dos Tribunais Superiores.

O único caminho não aceitável é o que lamentavelmente se vem adotado, consistente em manter o modelo adotado no Brasil, mas promovendo uma interpolação de fórmulas, regras e retórica dos outros sistemas, o que torna evidente ser o fracasso inevitável e, então, tem-se uma das razões da contínua e crescente conflitividade na sociedade brasileiro, com incapacidade de obter pacificação a partir dos meios oficiais de resolução dos conflitos.

Em relação ao entendimento da Corte Suprema, recentemente reformado para permitir a execução da pena, mesmo que haja pendência de recursos constitucionais, na clara adaptação ao Brasil do modelo adotado em outros países, inevitável questionar, como seria ele possível, na realidade de um país em que, por exemplo, há centenas de julgamentos pela Corte Constitucional reformando decisões condenatórias de pessoas por simples furtos de abóboras, melancias, chocolates, sabonetes etc., por incidir na hipótese o básico princípio da insignificância.

Nesse singelo exemplo fica claro o perigo da admissão da execução da pena sem o efetivo trânsito em julgado da decisão, pois não há razoabilidade em permitir que uma pessoa cumpra pena por furtar, exemplificativamente, uma abóbora para, depois da pena cumprida, afirmar sequer ter havido tipicidade penal, o que, em última análise, significa que sequer o processo criminal deveria ter sido iniciado.

Por outro lado, caso a preocupação seja gerar desobstrução nos Tribunais Superiores, fácil perceber que o efeito será o contrário, pois interposto o Recurso Especial ou o Recurso Extraordinário, será inevitável o ingresso de medidas adicionais para tentar obter efeito suspensivo, o que não somente amplia o volume processual, como também tem a tendência de, ao longo do tempo, retirar a credibilidade de medidas processuais importantes.

Mas tudo ainda pode ser visto de uma maneira muito mais preocupante, senão reflita-se: o Supremo Tribunal Federal há algum tempo estabeleceu uma particular limitação ao HC, revendo também um posicionamento anterior consolidado seu, para proclamar que não seria ele cabível quando possível recurso específico, bloqueando o então conhecido HC substitutivo do Recurso Especial e de Recurso Extraordinário a agora garante a execução da pena mesmo com a pendência no julgamento dos recursos constitucionais.

A conclusão única possível, do somatório dos entendimentos acima referidos, é que a condenação em segundo grau passou a ser definitiva e o sistema que hoje se chegou é mais limitador de garantias que mesmo o sustentado pela Corte quando da ditadura militar e nos seus momentos posteriores, pois se naqueles momentos se admitia a execução provisória da pena, ao menos, também era admissível o HC substitutivo, permitindo, em casos em que a possibilidade de reforma da decisão fosse teoricamente constatável, a concessão de liminar suspendendo a execução da pena.

Neste momento, condenado em segundo grau cumpre pena e não se discute mais e caso ao final do processo a conclusão seja, por exemplo, de que o fato sequer era típico, pela presença de princípios como o da insignificância, não há o que fazer além de "sorrir amarelo", caminhando o sistema de justiça para uma rápida corrosão dos seus valores fundamentais em matéria criminal, justamente os que garantem a preservação da democracia, impedindo o abuso do poder punitivo que ora passa a ser, não só admitido, como referendando pelo somatório dos entendimentos da Corte Constitucional.

Em definitivo, sem querer diretamente combater os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal ora em comento, mas assim como mudou para garantir a execução da pena mesmo com a pendência de recursos, é emergencial mudar novamente para voltar afirmar ser cabível o HC substitutivo, caso contrário ter-se-á que reconhecer que ocorreu uma migração evidente de um sistema de Justiça com bases democráticas, para uma estruturação fundamentada no conceito de que as possibilidades punitivas devem ser máximas e, em consequência, as liberdades cidadãs mínimas.

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*Adel El Tasse é advogado em Curitiba/PR. Titulariza o cargo de Procurador Federal. Desempenha a atividade do Magistério na cadeira de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação em diferentes instituições de ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor do Curso LFG e no Complexo de Ensino Renato saraiva (CERS). Mestre em Direito Penal. Autor de 17 livros e dezenas artigos publicados em diversos livros, revistas e periódicos.

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