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A relação entre Kafka e a advocacia

Acompanhemos um dia na vida do advogado Odésio que, aproximando-se o recesso forense, decide por "juntar os cacos" e traçar novas metas para o ano que se aproxima.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Atualizado em 4 de janeiro de 2016 13:58

Acompanhemos um dia na vida do advogado Odésio que, aproximando-se o recesso forense, decide por "juntar os cacos" e traçar novas metas para o ano que se aproxima. E na arrumação de seu gabinete nosso não tão heroico personagem encontra no fundo da gaveta da mesinha de canto um livro: 'O Processo'1 de Franz Kafka, publicado em 1925. Assim como o protagonista "K" da obra, nosso Odésio será aqui tratado como "Ó", e não por acaso.

Recostado na cadeira de couro surrado, com os pés sobre a mesa de madeira nobre -herança do bisavô - "Ó" começa a rodar os dedos pelo livro, deixando-se levar pelo barulho da caixa de abelha que vem do ar-condicionado instalado a anos no pequeno cômodo que é sua sala e que agora está a meia luz.

De pronto enfrenta o primeiro capítulo intitulado "DETENÇÃO", e deste extrai as seguintes lições:

"Alguém devia ter caluniado Josef K., porque foi preso numa manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal. (...). Bateram logo à porta e entrou um homem que ele nunca vira naquela casa. (...).

(...). - Mas então porquê? - perguntou em seguida.

- Não fomos encarregados de lho dizer. Vá para seu quarto e espere. O processo judicial acaba de ser instaurado, e saberá tudo na altura oportuna. Ultrapasso a minha missão ao falar-lhe tão amistosamente. Mas espero que ninguém, excepto Franz, me ouça, e aliás também ele o trata simpaticamente à revelia do regulamento. Se continuar a ter tanta sorte como para a designação de seus guardas, pode ficar sossegado. (...).

-Ah! disse o inspetor que se achava já próximo da porta -, compreendeu-me mal; encontra-se sob prisão, claro, mas isso não deve impedi-lo de exercer a sua profissão. Também não deve sentir-se incomodado nos seus hábitos. (...)."

Concluída essa leitura, "Ó" correu olhos na estante à sua frente como se estivesse a procurar mentalmente por algo. E estava. Lembrou-se então que estava a usar como calço em um dos pés da mesa aquilo que lhe recordava a gasta memória. Com o pedaço de papel em mãos, abriu-o e leu a matéria que estava a perseguir:

"Em julho, o blog Expresso, da revista Época, destacou a presença do agente da Polícia Federal Newton Ishii em diversas das prisões de detidos da Lava Jato na superintendência da PF em Curitiba. Ishii é chefe do Núcleo de Operações da PF em Curitiba e tem um passado conturbado."2

"Ó" deixa escapar entre dentes a seguinte confissão: - Ora bolas, pouco mudou nessas cousas de prisão! Segue pela leitura, sem se aperceber que é o livro agora quem o arrasta para as profundezas das letras.

E em a "CONVERSA COM A SENHORA GRUBACH, DEPOIS COM A MENINA BÜRSTNER" chama atenção a necessidade da personagem central tentar entender as razões de sua prisão, que supostamente não é a de um ladrão, algo grave para a época - como o também o é nos tempos de hoje - havendo ainda mais severidade na liberdade vigiada da personagem de Kafka:

"Claro que se encontra sob prisão, mas não como se prende um ladrão. Quando se é preso como um ladrão, então é grave, mas esta detenção... Isto dá-me a impressão de algo de sábio, desculpe-me se digo disparates, dá-me a impressão de algo de sábio, que não compreendo é verdade, mas que também não somos forçados a compreender.

(...)

- Enfim, inocente... - disse ela. - Não quero pronunciar um juízo apressado e talvez carregado de consequências; afinal, não o conheço, apesar de tudo, é preciso ser um grande criminoso para ter às costas uma comissão de inquérito. Mas uma vez que está livre... deduzo pelo menos da sua clama que não se evadiu da prisão..., não pode ter cometido um crime grave."

Encasquetado com essa coisa de estar detento, mas não encarcerado, "Ó" saiu mais uma vez abrindo as gavetas de sua memória na tentativa de recuperar informações que lhe afligiam o comparativo momento. E eis que lhe surge cristalina a seguinte reportagem que assistira em vídeo, cujo título que a ilustrava era o seguinte:

"Condenados com tornozeleira eletrônica burlam a fiscalização em MT

Preso conta que tem condenado usando até animais para burlar o sistema.

Dois homens com o equipamento assaltaram a casa de um juiz federal."3

- Vistes - gritou para si, num misto de raiva e contentamento - essa tal de liberdade vigiada é perfeita para um sistema penitenciário eficiente! Jeca-tatu de tornozeleira dá em galinha de pulseira, pensou embriagado pelo cheiro que transbordava das páginas amareladas do livro enterrado na cara.

O "PRIMEIRO INTERROGATÓRIO" foi capítulo que trouxe amargas lembranças ao enamorado leitor. "Ó" agarrava-se às lembranças de alguns embates que enfrentara em diferentes Cortes, quando deitou vistas sob os seguintes trechos:

"K. teve a impressão de que invadira uma assembleia. Uma multidão das mais diversas proveniências - ninguém se ocupou do recém-chegado - enchia uma enorme sala com duas janelas, uma galeria a meia altura à volta, também ela cheia, e onde as pessoas eram forçadas a inclinar-se para a se manterem de pé e batiam com as costas e a cabeça no tecto. (...), K. não avistou rostos voltados para ele, mas somente as costas cujas palavras e gestos apenas se dirigiam a membros de seu próprio partido. Estavam quase todos vestidos de preto, com compridos fatos de domingo coçados que flutuavam em redor deles. (...). Alguém saltou do estrado a fim de arranjar um lugar para K., e este último subiu para lá. (...) Quando K. se pôs a falar, ficou convencido de que concordavam com ele.

(...)

- Não busco os efeitos fáceis do orador - disse K. seguindo o fio da sua argumentação -, seria aliás incapaz. O Senhor Juiz de Instrução fala sem dúvida muito melhor, isso faz parte do seu ofício. O que desejo é que seja discutida publicamente uma prepotência do serviço público. Escutem: há cerca de dez dias, fui preso; as próprias condições desta prisão fazem-me rir, mas não é essa a questão agora.

(...)"

Imbuído de espírito de luta, "Ó" encontrava-se trajado como prestes a sair para alguma audiência. Em pé à porta, livro em uma das mãos e a outra girando a chave, estancou por um segundo, lembrando-se que tinha determinado à velha secretária que cancelasse toda sua agenda dos próximos 30 dias. Voltou a tomar assento, tendo antes atirado o paletó e a gravata em direção ao velho sofá em frente à mesinha de centro.

Retomado o juízo das coisas e com o corpo afundado em sua cadeira, associou o que acabara de ler aos comentários de coxia que recentemente lhe chegaram aos ouvidos e sobre tormentoso embate que se dera na Corte:

"Eis que entra a primeira oposição ferrenha: o ministro João Otávio de Noronha proferiu discurso veemente a favor da proposição original de vedar a leitura de memoriais.

"Ninguém está cerceando o exercício da advocacia porque proíbe ler memorial. Tem quinze minutos para falar, pode consultar as notas, isso aqui não é casa de amador, é um Tribunal Superior.

(...)

E na verdade vamos ter coragem de assumir: ninguém ouve leitura de memorial.

Não há ministro que tenha paciência para isso julgando a quantidade de processo que se julga no Brasil. Vamos cuidar da nossa realidade, vamos reconhecer nosso estado é de calamidade pública em matéria de julgamento de processo em razão de volume."

Laurita Vaz - "Achei muito importante essa observação [do ministro Kukina]. Eu também fico extremamente preocupada e até constrangida quando vejo, principalmente na Corte Especial, colegas que começam a conversar, sai do local, vai conversar com outros colegas, e não presta nenhuma atenção naquilo que o advogado está falando. É uma forma de desrespeito ao advogado. Eu confesso que quando estou presidindo a Corte Especial e vejo colega fazendo isso fico extremamente constrangida e contrariada. É momento de nós refletirmos este nosso lado. Mas o aprimoramento é necessário."

Ao final da coleta dos votos, ficou empatada a discussão, sem o número suficiente de votos para alterar o regimento."4

Bem, se assim o é, julgador também deveria ser proibido de ler sua decisão, e mais, deveria saber se contrapor às indagações e opiniões divergentes que lhe são lançadas pelos pares. Dando um murro na mesa repetiu para si mesmo: - Se tiver de ler, lerei. Até porquê, concluiu em pensamento, poucos são o magistrados que me dão a devida atenção; ainda mais esse velho advogado de balcão e contencioso, que não é uma das primas donas da sua área de atuação, daqueles que precisam de motorista na porta, tapete vermelho ao descer pés ao chão do Tribunal e de um jovem advogado para lhe carregar a valise.

Após um longo suspiro voltou atenção ao livro e ao capítulo "NA SALA DE AUDIÊNCIAS DESERTA - O ESTUDANTE - AS SECRETARIAS", sendo que desse chamou-lhe atenção a seguinte passagem:

"Foi então que K. reparou num pequeno letreiro ao lado da entrada; aproximou-se e leu estas linhas escritas por uma mão infantil mal exercitada: //Entrada para as Secretarias do Tribunal\\. Era portanto aqui, nas águas-furtadas deste prédio de rendimento que ficavam os serviços da justiça? Eis um serviço que não inspirava o mínimo respeito, e era tranquilizador, para um acusado, imaginar os fracos meios financeiros de que este tribunal dispunha, e que se havia instalado ali onde os inquilinos, eles próprios entre os mais pobres, arrumavam as sua bugigangas. Para dizer a verdade, era possível que tivesse dinheiro suficiente, mas os funcionários deviam atirar-se-lhe antes de ser utilizados para os assuntos da justiça."

De pronto relacionou tal penúria com a que foi retratada por alguns presidentes de Tribunais daqui, e dessesdiante da necessidade do gerenciamento de valores pouco suficientes a cobrir as muitas despesas diárias:

"Ronaldo Eurípedes, presidente do Tribunal de Justiça de Tocantins, explicou que reduziu tudo o que podia, inclusive com "gastos com veículos" e até como "o açúcar o e café". "Não reduzimos nas atividades essenciais. Tomamos o cuidado para o corte não trazer prejuízo para a sociedade. Temos que procurar fazer mais com um custo menor. Gerir em tempo de vacas gordas, é fácil"."5

"Ó" a algum tempo vinha matutando um modo de driblar a falta que faria o cafezinho frio do meio da tarde sorvido a duras penas nos corredores da Corte, pela quantidade e pelo gosto de serragem.

Entre chibatas e pedidos de clemência, o protagonista "K." no capítulo "O FLAGELADOR" tramava meios mentais para não pensar no desespero que fez chegar à vida de policiais por ele acusados de corrupção, somado a possíveis meios de persuadir o algoz daquelas vítimas de tão tenebroso castigo. Para tanto, tencionou a dar mais trabalho a seus empregados, como se isso pudesse imprimir um novo ritmo a sua conturbada vida pós processo:

"À beira de lágrimas, correu à procura dos empregados que trabalhavam tranquilamente na máquina de copiar e que interromperam o trabalho com ar de espanto.

- Decidam-se de uma vez por todas a limpar a arrecadação - exclamou -, estamos afogados em porcaria.

Como os empregados estavam prontos a fazê-lo no dia seguinte, K. aquiesceu: com a noite já tão avançada, também não podia obriga-los a trabalhar como tencionara primeiramente. Sentou-se por momentos a fim de manter os empregados junto de si alguns instantes, pegou em duas ou três cópias, julgando dar assim a impressão de que as examinava, depois, vendo que os empregados não se atreviam a partir ao mesmo tempo que ele, saiu e regressou a casa cansado, o cérebro vazio."

Mais uma vez os "parafusos frouxos" dos pensamentos levaram "Ó" ao mundo de notícias arquivados em sua cabeça, tendo ele se recordado da seguinte reportagem:

"O maior problema: ser associado a trabalho escravo representa um baque na imagem de uma empresa. Clientes, consumidores e investidores podem se afastar. No Brasil, as penalidades incluem a inscrição da empresa na chamada "lista suja" do trabalho escravo, em que permanece por até dois anos - enquanto isso, fica impedida de receber empréstimos de bancos públicos.

Em dezembro, a divulgação da lista foi suspensa por uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal à Associação Brasileira de Incorporadoras."6

Lembrou-se de que sempre antes de sentar defronte a juízes trabalhistas e partes reclamantes, em uma audiência de instrução, procurava fitar os olhos do demandante e mentalmente o questionar: você foi um sofredor de fato ou só passou por uma empresa ruim de controle? Isso parecia afetar seus adversários, pois tal olhar fazia com que os mentalmente inquiridos passassem a gaguejar, produzir frases desconexas e, pior, mentir; o que era prontamente objeto de ameaça de prisão pelo magistrado, dedo em riste e face avermelhada de raiva interna contida. Riu dessa recordação.

"O TIO LENI" foi capítulo que veio logo a seguir e por esse foi tocado pela seguinte narrativa:

"- Ah, então é isso! disse o advogado, com um sorriso -, mas sou advogado, frequento os meios judiciais, referem-se vários processos, e guardam na memória os que mais chamam a nossa atenção, sobretudo quando se trata do sobrinho de um amigo. Não há nada de surpreendente nisto, parece-me.

(...)

- O senhor frequenta os meios judiciais? perguntou K. - Sim, disse o advogado.

(...)

- Pense então - prosseguiu o advogado num tom de evidência, como se a sua explicação fosse supérflua e apenas constituísse um parêntesis -, pense então que tais visitas me proporcionam também vantagens consideráveis para a minha clientela, sob mais do que um aspecto, e que por vezes é mesmo preciso silenciar. Claro que estou agora um pouco limitado devido à minha doença, mas recebo a visita de bons amigos do tribunal, e fico a saber de duas ou três coisas. Talvez saiba mais do que muita gente que está de perfeita saúde e que passa todo o dia no tribunal."

Ele, "Ó", nunca soubera se beneficiar dos contatos que tinha, até em razão de sua maneira reclusa de ser. Sabia de colegas que, ao contrário, vangloriavam-se de amizades que guardavam e como essas lhe poderiam ser úteis. Daí lhe veio ao pensamento algo que caiu-lhe às mãos tempos atrás:

"A matéria faz referência à questão da amizade (ou inimizade) entre advogados e magistrados como motivo de impedimento ou suspeição deste para o julgamento das causas em que aquele advogado atua.

(...)

Quanto à amizade ou inimizade como motivo de suspeição da parcialidade do magistrado, o Código somente aponta aquela existente entre magistrado e a própria parte do processo (autor ou réu), nada dizendo em relação aos advogados que nele atuam.

(...)

O problema, contudo, é quando há uma relação que vai além do mero convívio social, como o pagamento de uma festa ou de passagens aéreas para ir ao casamento do advogado."7

Absorto em seus devaneios, com o corpo curvado para frente pensou: eu que não me meto em uma enrascada dessas. Sou velho, mas não sou tolo! O travesseiro ainda me cabe bem à cabeça.

Chamou-lhe à curiosidade o próximo capítulo: "O ADVOGADO. O INDUSTRIAL. O PINTOR. E findo este, memorizou com destaque os seguintes trechos:

"Fazer perguntas era o essencial . K. tinha o sentimento de que ele próprio teria podido formular todas as perguntas necessárias. O advogado em contrapartida, em vez de as fazer, tomava a palavra ou então ficava sentado à sua frente sem dizer nada, inclinando-se um pouco para diante por cima da secretária, sem dúvida porque ouvia mal, puxava por alguns pelos da barba e fixava o tapete, talvez exatamente no sítio onde K. se tinha deitado com Leni. De vez em quando, dirigia a K. alguns conselhos sem sentido, como os que se dirigem às crianças.

(...)

Tudo isto era lamentável, mas não devia esquecer que o processo judicial não é público; se o tribunal o julgar necessário, pode torná-lo público, mas a lei não o exige.

(...)

Acabo justamente de pensar que Titorelli poderia eventualmente trazer-lhe alguma ajuda, conhece muitos juízes e embora não tenha grande influência pessoal, pelo menos pode aconselhá-lo acerca dos meios de aceder diversas personagens influentes. E mesmo se estes conselhos não fossem em si de um interesse decisivo, acho que não deixarão de ter uma grande importância em seu pdoer. (...). Com a minha recomendação, ele fará sem dúvida tudo quanto lhe seja possível. Creio que realmente deveria ir."

Entra época, sai época, as tramas que costuram os homens são sempre as mesmas. Tramas que formam redes, relacionamentos que podem arrastar o ser para a desgraça plena. "Ó" pensou nisso tudo enquanto recordava do seguinte diálogo lido em algum vespertino:

"ADVOGADO - olha só, não que ele tenha feito, havia acordo entre o Nestor e ele... Nestor, ele, Duque e Zelada...faria os 4... e aí o Duque saiu na frente...deixou todo mundo pra trás...entendeu, aí ficou a expectativa, ai não foi aceita a do Duque não foi isso, ai o Fernando foi e não aceitaram a do Nestor tava indo e o (Fernando) dizia o seguinte, quem pode ficar preocupado é o Nestor .só que deixaram pra trás o Nestor, e foi aceitada a do Musa, então o quer dizer, hoje como é que tá a situação de prova... Fernando não pode aceitar (companhia) de ninguém.

SENADOR - Eu tive....nos tivemos acesso a ... delação do Fernando.

(...)

SENADOR: Agora, agora, Edson e Bernardo, é eu acho que nós temos que centrar fogo no STF agora, eu conversei com o Teori, conversei com o Toffoli, pedi pro Toffoli conversar com o Gilmar, o Michel conversou com o Gilmar também, porque o Michel tá muito preocupado com o Zelada , e eu vou conversar com o Gilmar também.

ADVOGADO: Tá.

SENADOR: Por que, o Gilmar ele oscila muito,uma hora ele tá bem, outra hora ele tá ruime eu sou um dos poucos caras...

ADVOGADO: Quem seria a melhor pessoa pra falar com ele, Renan, ou Sarney...

SENADOR: Quem?

ADVOGADO: Falar com o Gilmar

SENADOR: Com o Gilmar, não eu acho que o Renan conversaria bem com ele.

(...)

SENADOR: Não eu vou falar com ele...

(...): Hoje tem reunião de líderes

SENADOR: Eu falo com o Renan hoje.

ADVOGADO: Tá bom.

SENADOR: Hoje eu falo, porque acho que ofoco é o seguinte, tirar, agora a hora que elesair tem que ir embora mesmo."8

Seja por questões humanitárias, seja por equívoco na interpretação, esse negócio todo de tráfico de influência é complicado. "Ó" lembrou do tempo em que um cliente seu vivia de caso com um 'rabo de saia' assessora de magistrado influente e que, por suposto, tentava convencê-lo de que dessa forma poderiam angariar um 'voto de travesseiro'. Botou o esperto para correr diante da indecorosa proposta, sem deixar entretanto de invejá-lo pela conquista amorosa, que fora uma das "certinhas do Lalau"9.

Voltando olhos à obra, passou ao "O COMERCIANTE BLOCK. FIM DO MANDATO DO ADVOGADO" do qual com os dedos destacou - como se os mesmos fossem uma caneta marca texto - os fatos imaginários lançados pelo autor:

"Disse para comigo que o que este advogado não queria ou não poderia fazer, um outro queria e poderia. Procurei portanto outros advogados. (...); mas quanto ao resto, não me arrependi de me ter dirigido a outros advogados."

Com uma das mãos a coçar o couro cabeludo como se quisesse feri-lo, lembrou de nota sobre decisão judicial tratando da pluralidade de patronos atuando em um mesmo processo:

"Em julgamento inédito, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os honorários de sucumbência devem ser partilhados entre os advogados que atuaram na mesma causa, de forma sucessiva e em fases diferentes do processo. A decisão foi unânime. Para os ministros, não há como garantir a verba apenas ao advogado que atuou no caso no momento em que o juiz determinou o pagamento dos honorários, que são devidos pela parte derrotada ao vencedor da ação."10

E tudo isso por conta de que havia contas a cobrar de certo colega de profissão que propositadamente o afastara da atuação em uma ação milionária; aquele 'pote d'ouro no fim do arco-íris' que todo advogado busca amealhar em sua carreira. Nisso balbuciou: - Raios, ainda dou um tiro na boca daquele desgraçado.

Respirou fundo e, resignado com o próprio norte que dera à vida, acreditou que encontraria um pouco de paz no sugestivo capítulo intitulado "CATEDRAL". E perturbado desse capítulo destacou:

"- Por vezes, e mesmo muitas vezes, poderia dar-te razão - disse K. -, mas nem sempre. As mulheres têm um grande poder. Se pudesse incitar duas ou três mulheres que conheço a trabalharem juntas para mim, ganharia certamente a causa. Sobretudo com este tribunal onde só há por assim dizer mulherengos. Mostra-se ao longe uma mulher ao juiz de instrução e para chegar ao tempo ele derrubará a secretária e o acusado pelo caminho."

Sentiu uma náusea correr-lhe do estômago às ventas, pois ainda em tempos de agora "Ó" sabe que o lobo mau travestido de autoridade continua a correr atrás de presas indefesas, mas, que, por mérito, hoje têm a seu favor pessoas decentes a lhes dar crédito e proteção:

"Segundo relatos, o magistrado costumava fazer comentários até sobre as roupas íntimas das subordinadas.

Há ainda convites para sair com as colegas de trabalho feitos pelo WhatsApp, aplicativo de celular. O Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro entrou com representação contra o juiz na Corregedoria-Geral da Justiça.

No documento, quer o afastamento imediato do magistrado de suas funções. Porém, o pedido ainda não foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça.(...).

Documento preparado pela OAB, assinado por 80 advogados, aponta 18 itens de desmandos do magistrado. Consta que até jogar processo no chão era uma prática dele. Os profissionais reclamam ainda de truculência e falta de cumprimento dos prazos processuais."11

Pior são alguns coleguinhas que ainda acreditam na prática e que, não por merecimento, mas por formosura, continuam a contratar somente estagiárias para que o trato seja facilitado nos corredores - e até no interior dos gabinetes - dos Tribunais.

Mesmo cansado, pois já passava e muito do horário da "Ave Maria" de Gonoud, decidiu enfrentar o "FIM" e perplexo deste memorizou:

"Quem era? Um amigo? Um ser bondoso? Um ser compadecido? Alguém que queria ajudar? Era alguém solitário? Eram todos? Havia ainda algum socorro? Havia objecções esquecidas? Claro que havia. Bem pode a lógica ser inabalável mas não resiste a alguém que quer viver. Onde está o juiz que ele nunca vira? Onde estava o juiz que ele nunca vira? Onde esta o alto tribunal ao nunca acedera? Elevou as mãos afastando os dedos.

Mas na garganta de K. pousaram-se as mãos de um dos cavalheiros, enquanto o outro lhe enterrava a faca no coração e a revolvia duas vezes. Com olhos desfalecidos, K. viu ainda, muito perto do rosto, os cavalheiros encostados um ao outro, face com face, a observarem o cumprimento da sentença.

- Como um cão! disse ele; era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe."

Uma terceira vez a faca foi revolvida e agora dentro do peito de "Ó", nosso velho advogado, o anti-herói, pois assim foi como se ele tivesse sentindo ao recordar da dificuldade no acesso à justiça; seja por conta das frequentes e desagradáveis surpresas que lhe causa o 'e-processo'; a enormidade de recursos que tornam moroso o trâmite processual; o desrespeito às normas pelas próprias autoridades; a má vontade para com a figura do causídico; a infraestrutura que é ofertada aos jurisdicionados; o fazer justiça de forma casuística; as castas implicitamente criadas; etc. Tinha tanto a lamentar.

Exausto, fechou o livro e repousou-o sobre a mesa. Levantou os olhos mais uma vez a procurar algo. Correndo a memória alcançou com uma das mãos a pequena gaveta de sua mesa. Lá encontrou o velho revólver que nunca fora disparado. Fitou-o de frente, estava carregado, tinha certeza disso. Segurando-o agora com as mãos trêmulas fez a tentativa de um gesto para assoprar o cano...

BANG!

Ouvira-se o estampido seco atrás de si. Era a porta da delegacia que acabara de deixar para trás. Contava agora do lado de fora as notas de R$ 50,00 que somavam o total dos R$ 300,00 que arrecadara com a entrega voluntária12 do velho "três oitão" que, aliás, era de nenhuma utilidade.

Em tempos de carestia alguns tostões vêm bem a calhar, seguiu pensando Odésio com seus botões rumo ao Tribunal para fazer carga a um processo de separação.

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Referências

1 Publicações Dom Quixote, 2009, LeYa AS, Tradução: Guimarães Freitas.

2 Quem é o japonês bonzinho da Lava Jato

3 Condenados com tornozeleira eletrônica burlam a fiscalização em MT

4 STJ tenta proibir que advogado leia durante a sustentação oral

5 Para enfrentar crise, TJs suspendem nomeações e cortam até gastos com café

6 Trabalho escravo ou só um emprego ruim?

7 Fux 60 anos: amizades e inimizades entre magistrados e advogados

8 Degravação Delcídio do Amaral

9 As certinhas do Lalau

10 STJ determina partilha de honorários de sucumbência

11 Juiz acusado de assédio sexual

12 Campanha do Desarmamento - Entrega voluntária de armas de fogo

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*Dalton Cesar Cordeiro de Miranda é advogado em Brasília, consultor do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados, especialista em Administração Pública pela EBAPE-FGV.

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