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Dois mares de lama e a crise da constituição cidadã

Conteúdo exclusivo RT Online.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Atualizado em 15 de dezembro de 2015 17:02

Crise econômica e soluções jurídicas

O atual cenário político e econômico brasileiro gera muitas preocupações sobre o futuro dos negócios e dúvidas sobre quais ações devem ser tomadas para se proteger, encontrar oportunidades e passar pela turbulência com o mínimo de sobressaltos e o máximo de aprendizados.

Com o objetivo de oferecer elementos para essas reflexões, insights e algumas possíveis respostas aos profissionais do Direito, a Thomson Reuters lançou na sua plataforma de pesquisa Revista dos Tribunais Online, a área de destaque "Crise econômica e soluções jurídicas", para publicação semanal de artigos sobre os impactos da crise no Direito, escritos por especialistas na área, sempre com um viés direto e prático sobre os temas mais atuais e polêmicos.

Reproduzimos abaixo a íntegra do artigo da professora da Faculdade de Direito da USP, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, publicado na área de Direito Administrativo, coordenada pela professora Irene Nohara (Mackenzie e Universidade 9 de Julho).

O conteúdo também é coordenado pelos advogados Renato Nunes (Direito Tributário), Ubirajara Costódio (Direito Empresarial, Concorrencial e Consumidor), Ricardo Pereira Guimarães (Direito do Trabalho) e pelo professor da PUC-MG, César Fiuza (Direito Civil).

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Dois mares de lama e a crise da constituição cidadã

Os brasileiros, estarrecidos, acompanham o percurso de dois mares de lama.

O primeiro teve início na cidade de Mariana, em Minas Gerais, e foi deixando uma trilha de destruição que afetou vidas humanas, soterrou pessoas, animais e moradias, acabou com distritos, matou a flora e a fauna, poluiu águas de rio e mar, naquele que já é apontado como a maior tragédia ambiental da história do Brasil. Tudo pela desídia de uma empresa. Nenhum dinheiro que ela pague - e esperemos que pague - constituirá retribuição suficiente para todo o mal que causou. Muitos dos danos causados são irreversíveis e não têm como ser reparados.

O segundo mar de lama não se sabe com precisão onde nasceu e em que momento surgiu. O mais provável é que o foco do desastre tenha nascido em Brasília, de onde foi se espraiando por todos os cantos do território brasileiro, afetando a credibilidade do povo nas instituições, atingindo o direito, a moral e a ética de forma nunca antes vista, prejudicando a normalidade da vida de cada cidadão, criando uma insegurança sem precedentes com relação ao futuro, provocando a maior crise econômica já vivida pelos brasileiros, gerando o desemprego, a inflação, o retrocesso.

Ouvi alguém falar, há pouco tempo, que no Brasil existem inúmeras pequenas máfias, presentes em toda parte, em todos os níveis de governo, na Administração Pública, nas empresas públicas e privadas. Elas vão se formando sorrateiramente, provocadas por interesses subalternos (para não dizer rasteiros), pela frequência dos conluios entre Poderes do Estado e entre o público e o privado. Agora essas máfias vão aos poucos sendo desmascaradas pela atuação do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, pela imprensa e pelos movimentos sociais.

A impunidade vai sendo aos poucos vencida. Mas não basta. É apenas o início.

A Constituição de 1988 foi batizada de Constituição cidadã, porque ela prestigiou os direitos fundamentais do homem; incluiu dentre eles os direitos sociais à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados; colocou a cidadania e a dignidade da pessoa humana entre os princípios fundantes do Estado de Direito Democrático e favoreceu a formação de uma democracia participativa, ao lado da democracia representativa.

A Constituição de 1988 adotou o modelo do Estado de Direito (que protege os direitos individuais frente aos excessos do poder, pela adoção do princípio da legalidade e do controle judicial), Social (que busca o bem comum e a redução das desigualdades sociais) e Democrático (em que a participação do cidadão desempenha relevante papel na definição do que seja o interesse público e na fiscalização de sua observância).

A legalidade no Estado Democrático de Direito não abrange apenas os atos normativos postos pelo Legislativo, mas também todos os valores e princípios contidos de forma expressa ou implícita na Constituição. É a exigência de obediência à lei e ao Direito a que se referiu a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1939. Pretende-se submeter o Estado ao Direito e não à lei em sentido puramente formal. Daí o Estado de Direito abranger dois aspectos fundamentais: o da participação popular (Estado Democrático) e o da justiça material (Estado de Direito). Daí a tão falada constitucionalização do direito, que elevou ao nível da Constituição valores como os da justiça, segurança, moralidade, publicidade, dignidade da pessoa humana e tantos outros referidos a partir do Preâmbulo da Constituição. Estando na Constituição, esses valores e princípios dirigem-se aos três Poderes do Estado, refletindo sobre a interpretação de normas dos vários ramos do direito.

Isso é o que se lê nos livros e que, como professora, procuro transmitir aos meus alunos do Largo de São Francisco.

No entanto, quando me pediram para escrever um artigo breve sobre algum aspecto da crise com que os brasileiros se defrontam, ficou difícil optar por um específico. Porque são muitas as crises que afetam o Estado de Direito Democrático.

Mas o fato é que por detrás da tão falada crise política e da tão danosa crise econômica, a que está atuando nos bastidores e que constitui a base de todo o mal que estamos vivendo é a crise da moralidade, a crise da honestidade, a crise da consciência, que toma conta dos nossos governantes e dos empresários que com eles pactuam. A alguns falta a consciência da dignidade do cargo que ocupam. Esquecem que foram eleitos pelos cidadãos e que atuam como seus representantes, para lutarem pelo bem comum e não pelo seu enriquecimento pessoal. Em outros há excesso de apego ao poder, associado à falta de humildade para reconhecer os próprios erros e a total ineficiência (ausência de bons resultados) no exercício do mandato. Na maior parte sobra a mentira, o descaramento, a desonestidade, o cinismo e a arrogância, que retiram qualquer margem de legitimidade para atuar em nome de seus eleitores, iludidos com bonitas palavras, falsas promessas, venda de ilusões e de esperança.

É por isso que certamente entrará para a história a frase da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal, quando, retratando o que está no coração de todo o povo brasileiro, proclama, a propósito de atos praticados por líder do governo no Senado:

"Houve um momento em que a maioria de brasileiros acreditou que a esperança tinha vencido o medo. (No mensalão) descobrimos que o cinismo tinha vencido a esperança. Agora o escárnio venceu o cinismo." (Jornal O Estado de São Paulo de 26/11/15, p. A 8).

Foi um grito de revolta que, dito de forma poética por quem sabe utilizar as palavras de forma magistral, retrata o sentimento que sai das profundezas do coração de cada cidadão honesto.

É curioso que justamente na vigência de uma Constituição que, pela primeira vez, deu à moralidade administrativa a força de princípio constitucional, a imoralidade tenha se instalado no dia a dia da atuação política de Poderes essenciais do Estado.

Nunca se falou tanto em transparência, como princípio do Estado de Direito Democrático; no entanto, a falta de transparência na ação governamental parece ser a regra, surpreendendo a todo o momento a população com medidas adotadas no silêncio dos gabinetes e só reveladas posteriormente quando o dano já foi causado.

Pela primeira vez, foi colocada na Constituição a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito; no entanto, com ele contrasta a situação de miséria em que vive a maior parte da população brasileira.

A Constituição de 1988 constitucionalizou uma série de princípios norteadores da atuação estatal, dando novo conceito e maior amplitude ao Estado de Direito, que passou a abranger não só a lei, estritamente considerada, mas todos os valores e princípios que dela decorrem de forma expressa ou implícita, já a partir do preâmbulo. Com isso, ampliou-se a possibilidade de controle judicial sobre as decisões discricionárias do Legislativo e do Executivo.

Nunca se deu tanto valor ao ideal da segurança, mencionado logo no Preâmbulo da Constituição. No entanto, convivemos com a insegurança em todos os setores da vida em sociedade, na ordem pública, na ordem social, na ordem jurídica. Costumo dizer que o cidadão honesto vive ensanduichado no meio de dois tipos de bandidos: de um lado, o homem do povo que rouba, assalta, estupra, e que nos mantém reféns do medo; de outro lado, o homem de colarinho branco, que age às escuras, oculto por uma aparente boa educação, pelos elevados postos que ocupa nas instituições estatais ou na direção de grandes empresas, pela riqueza que ostenta. Os primeiros produzem o medo; os segundos, quando descobertos, produzem repulsa e indignação, porque contribuem para aumentar a desigualdade social. Uns e outros utilizam a inteligência para o mal. Uns e outros igualam-se ao serem colocados sob o epíteto de criminosos. Uns e outros igualam-se no prejuízo que causam à sociedade, com maior gravidade em relação aos segundos, por terem aproveitado mal a oportunidade que tiveram de vencer honestamente, sem causar danos ao interesse público e ao patrimônio público. Uns e outros têm que ser punidos com rigor.

A Constituição de 1988 é rica em princípios e valores. O seu preâmbulo é constituído por palavras grandiosas, quando afirma que representantes do povo brasileiro se reúnem para instituir um Estado Democrático destinado a "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias". Nos quatro primeiros artigos a Constituição contempla princípios da maior relevância como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e a marginalização, a promoção do bem de todos, a prevalência dos direitos humanos.

No entanto, o mar de lama que espraia por todo o território brasileiro coloca uma enorme distância entre os preceitos orientadores do ordenamento jurídico e o que se aplica na prática; entre o ideal e a realidade; entre a chamada Constituição cidadã, formalmente aprovada pelo poder constituinte, e a Constituição que se pratica. É o modelo do Estado de Direito Democrático que está em crise.

Isto faz lembrar o pensamento do jurista argentino, Agustín A. Gordillo, em uma obra singela, porém repleta de verdades dolorosas, intitulada La administración paralela. Ele fala da existência de uma economia oficial e de uma economia subterrânea ou paralela; de um procedimento administrativo formal e um informal; da publicidade que se prega e do silêncio que se pratica; de uma Constituição formal, posta segundo os trâmites legais, e de uma Constituição real, que corresponde à que efetivamente se cumpre; de uma moral institucional e de uma moral paralela.

Atualmente, o Brasil vive uma situação que bem retrata a existência dessas tendências opostas: de um lado, o combate intenso à corrupção, com condenações de homens de colarinho branco, nunca antes presenciada pelos brasileiros; de outro lado, a resistência dos titulares de mandatos que, de fato, já se esgotaram, seja pela corrupção, seja pela mais absoluta ineficiência. Eles resistem, porque conviveram sempre com a impunidade e porque confundem democracia política com o "vale tudo". Desconhecem que a Política é a arte de bem decidir, segundo elevados critérios e valores previstos no ordenamento jurídico, em benefício do bem comum. A Política não pode opor-se ao Direito, mas deve conformar-se a ele.

Alegam inocência. Alegam ignorância dos fatos, embora governem em uma ilha cercada de lama por todos os lados. Defendem a licitude de seus atos invocando atos iguais praticados por seus antecessores, como se a repetição transformasse o ilícito em lícito.

Esquecem que o que se aceitava como válido, hoje não mais se aceita. A corrupção correu solta ao longo dos anos. Hoje está sendo combatida, não só pelas instituições que têm essa atuação como sua missão, mas também pela sociedade civil que quer ser ouvida e fazer valer a sua vontade e o seu sonho por um Brasil melhor. Talvez seja a vitória da democracia participativa, que encontra fundamento na Constituição. O povo os elegeu, mas agora quer alijá-los do poder.

É oportuno lembrar as palavras do sociólogo Luiz Werneck Vianna em artigo publicado no Jornal "O Estado de São Paulo", do dia 6 de dezembro de 2015, p. A 2. Ele também fez uma analogia entre a lama que contaminou o Rio Doce e a lama que tomou conta da classe política. Ele fala da "lama ácida que nos corrói". Afirma que "todo o risco que nos ameaça como Estado e sociedade foi fabricado por nós, e cabe a nós esconjurá-lo enquanto há tempo e nos restam os salvados, entre pessoas e instituições, dessa enxurrada ácida que nos vem atingindo a fim de evitarmos a contaminação do que ainda se mantém em estado de higidez". E acrescenta: "Pois se é da política que se deve cobrar e esperar uma solução para os nossos males, nada poderá vir dela enquanto os poderes do Legislativo e do Executivo estiverem ocupados por dignitários que, por atos concretos e pelo conjunto da obra, já tenham perdido a condição de se manter neles".

É preciso dar cumprimento à Constituição cidadã. É preciso fazer valer a segurança e a moral. Entre as duas tendências opostas - de manter o status quo que só beneficia os titulares do poder e a de fazer valer os preceitos maiores do Estado de Direito - é preciso que esta última prevaleça. É preciso que a Constituição formal se transforme na Constituição real, para que os seus princípios norteadores permitam recuperar um pouco da dignidade, da segurança jurídica, da moralidade almejada por toda a sociedade brasileira. É preciso reconstruir o Estado Democrático de Direito.

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*Maria Sylvia Zanella Di Pietro é professora Sênior da Faculdade de Direito da USP.

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