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Um golpe de mestre

O tempo, como sempre, não respeitou nenhuma regra restritiva e transportou os amigos para um futuro já distante.

domingo, 15 de novembro de 2015

Atualizado em 13 de novembro de 2015 17:17

Era uma amizade que nasceu nos primeiros bancos da escola e frequentou a casa de ambos na pequena e pacata cidade interiorana. João Paulo, conhecido também por "João Padeiro", trabalhava desde pequeno no estabelecimento do pai. Começou como entregador, depois atendente de balcão, depois padeiro e, finalmente, promovido a gerente. Era o orgulho da família e exemplo a ser recomendado pelos pais dos garotos da época. Não tardou, com a morte do pai, a abrir a segunda padaria, conservando o mesmo padrão de serviços.

Antonio Carlos, conhecido como "Tonico Fuinha", magro, alto e com um nariz bem afilado, era filho da merendeira da escola pública. Nunca se destacou como aluno. Pelo contrário, os comentários na cidade diziam que sua aprovação era mais pelo trabalho honesto e dedicado da mãe do que pelo seu mérito pessoal. Também não era afeito ao trabalho. Gostava mais de conversar e frequentar as casas dos amigos, quando aproveitava para fartar-se das comidas que não chegavam à sua mesa. Talvez até o apelido tenha surgido por tal comportamento.

O tempo, como sempre, não respeitou nenhuma regra restritiva e transportou os amigos para um futuro já distante. João Padeiro, proprietário agora de uma rede de padaria em uma cidade maior, recebeu inesperadamente a visita de Toninho Fuinha. Abraçaram-se, falavam ao mesmo tempo, repetiam seguidas frases da época de criança e demonstraram de forma inequívoca a satisfação do encontro.

Como João padeiro residia só, pois sua família continuava na pequena cidade, convidou e hospedou o amigo, que não se fez de rogado. Passou a limpo sua vida, assim como descreveu todas as dificuldades para atingir o seu sucesso profissional. Toninho, cuja característica era falar rápido e muito, já se adiantou e narrou resumidamente sua vida. Era agora sócio oculto de uma indústria de barbante na capital. Injetava o dinheiro, porém seu nome não figurava no contrato social. Justificou que o empreendimento era seguro e lidava com pessoas da mais alta confiança. Assim, todos os seus bens estavam em nome de terceiros. Quando precisava de dinheiro, como num passe de mágica, aparecia.

Os dias seguidos foram suficientes para o estreitamento da amizade da infância e permitiram conversas de todos os matizes. Falaram das esposas, filhos, projetos para o futuro e trocaram confidências, como faziam antes com as figurinhas. João, como sempre cortês, levava o amigo a tiracolo em suas andanças pela cidade e orgulhosamente o apresentava como um empresário bem sucedido.

Em um dos locais visitados, uma agência da BMW, Tonico se interessou por um carro Série 4, Gran Coupé, e uma motocicleta K-1300 SS, da empresa alemã.  Confabulou separadamente com o vendedor e na volta para casa confidenciou ao amigo o seu interesse pelas tentadoras máquinas. E com sequenciais argumentos irrecusáveis, minou a resistência de João. A proposta era para João emprestar um cheque para pagamento à vista dos veículos, que ficariam em seu nome e que, logo que o cheque caísse para compensação, Tonico providenciaria o pagamento, em dinheiro.

Assim foi feito. Amigo também é para essas coisas. Na véspera de fechar o negócio festejaram o reencontro regado a uísque de primeira linha, com tantos anos quanto a amizade de ambos. Antes, porém, Toninho cobrou o cheque do amigo, em branco e devidamente assinado.

Logo de manhã, Toninho passou pela agência e procurou pelo vendedor, finalizando com ele o negócio. Diferentemente do que combinou com o amigo, pediu para que os veículos fossem faturados em seu nome. Assim foi feito. E partiu conduzindo o veículo atrelado a uma carreta devidamente preparada para o transporte da motocicleta.

Dois dias após, o cheque caiu em cobrança e não foi resgatado. João, com toda a segurança,  pegou o cartão de Tonico, que trazia não só os telefones da empresa como também os do amigo, e passou a fazer as ligações. Da empresa atendia e dizia que ali era de uma funerária e ninguém conhecia o nome anunciado. Do amigo dizia que temporariamente estava fora de serviço.

Apavorou-se momentaneamente. Teve a lembrança de ligar para a pequena cidade e falar com a mãe de Toninho, a merendeira tão querida por todos, que disse desconhecer o paradeiro do filho e que há muito tempo não tinha notícias dele. A última que recebeu foi de sua prisão quando aplicou um golpe num tio que era gerente de uma fábrica de barbante.

O diligente João, não se conformando que tinha sido vítima de um estelionato, procurou pelo delegado e narrou toda a trama. A autoridade, balançando a cabeça e com a experiência acumulada pelo cargo, concluiu que não vislumbrava nenhum crime no relato, pois o cheque tinha procedência lícita, sem qualquer tipo de coação ou falsificação.  E mais ainda. Se for instaurado inquérito policial a respeito, poderia ocorrer uma inversão e João seria investigado por denunciação caluniosa, uma vez que dava causa à perquirição policial contra alguém que sabia ser inocente.

João, apesar de todo o esforço desenvolvido, não logrou êxito em encontrar o falso empresário ou o amigo estelionatário e arcou com todo prejuízo. Não teve mais notícias do Tonico Fuinha. Sentiu-se preso no nó dado pelo barbante da engenhosa fábrica do amigo e lamentou acreditar nas ilusões de criança.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

 

 

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