Função social da ciência jurídica
O objeto da ciência jurídica é o conhecimento do Direito.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
Atualizado às 11:16
1 - Da ciência jurídica
Ciência é "um complexo de enunciados verdadeiros, rigorosamente fundados e demonstrados, com um sentido limitado, dirigido a um determinado objeto"1.
Tercio Sampaio Ferraz Junior2 explica que não é possível confundir a mera técnica jurídica com a ciência do direito. O trabalho de advogados, juízes, promotores e legisladores, pareceristas é um dado importante, mas não pode ser classificado como a própria ciência.
A ciência do direito é uma ciência complexa que estuda o fenômeno jurídico em todas as suas manifestações e momentos3.
A ciência do direito não pode ser confundida com a chamada dogmática jurídica. Esta, se destina ao "estudo sistemático das normas ordenando-as segundo princípios e tendo em vista a sua aplicação"4.
Segundo Miguel Reale5, a dogmática jurídica é o momento exato da aplicação da ciência do direito. Este momento ocorre quando o jurista se eleva ao plano teórico de princípios e conceitos indispensáveis à sistematização do ordenamento jurídico.
2 - Do objeto da ciência jurídica
O objeto da ciência jurídica é o conhecimento do direito. O jurista desenvolve o seu estudo em torno do conhecimento do direito6.
O conceito do direito não é unânime entre os juristas. Não existe consenso.
Segundo Miguel Reale7, aos olhos do homem comum o direito é lei e ordem, o conjunto de regras obrigatórias que garantem a paz social.
Maria Helena Diniz8, ensina que o conceito de direito não é unívoco ou equívoco e sim análogo, eis que apresenta realidades conexas ou relacionadas entre si.
Gofredo Telles Junior9 também entende que Direito é uma palavra analógica. Isso ocorre, porque o direito está exposto a três realidades interdependentes: a norma, como direito objetivo; a permissão, como direito subjetivo; e a qualidade, que é o justo, ou a qualidade do ato justo. Portanto, o direito não pode ter apenas uma definição. De qualquer modo, o autor10 resume o direito como uma disciplina da convivência.
O mesmo autor ensina que não podemos confundir o direito com a ciência do direito. O direito não é o nome de uma ciência, mas o objeto de uma ciência e por isso não estudamos direito e sim a ciência do direito. A ciência do direito é portanto, o conhecimento científico da disciplina da convivência11.
Miguel Reale12 conceitua o direito com base em três aspectos que servem de base para a sua teoria tridimensional. O aspecto normativo, sendo o direito como ordenamento; o aspecto fático, o direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica; o aspecto axiológico, o direito como valor de justiça. E conclui: "direito é a realização ordenada e garantida do bem comum numa estrutura tridimensional bilateral atributiva, ou, de uma forma analítica: direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral, atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores".
Assim, como a ciência do direito tem por objeto o direito, este deve ser estudado em todas os seus aspectos.
Se tomássemos por base a teoria normativista de Kelsen13, a ciência do direito somente abrangeria a norma.
Realmente, a norma é o principal objeto da ciência do direito.
Porém, como tomaremos por base a teoria tridimensionalista do direito fundada por Miguel Reale14, que tem adeptos como Maria Helena Diniz e Tercio Sampaio Ferraz Junior, a ciência do direito deve ser estudada sob três aspectos. Não somente sob o aspecto da norma, mas também sob o aspecto do fato e do valor.
O próprio Miguel Reale15, indica que a ciência do direito tem por objeto as estruturas normativas ou modelos. Mas também explica que a ciência do direito não pode ser estudada apenas sob o aspecto abstrato da norma, mas com todas as suas correlações com o mundo da experiência social, com a sua forma e com o seu conteúdo. Por isso, não é possível deixar de lado o valor e o fato, eis que são condições transcendentais. Trata-se do fenômeno jurídico da integralidade de seus elementos constitutivos. É certo que outras disciplinas como, a filosofia do direito, a sociologia do direito ou a história do direito também cuidam do fato e do valor, mas todos os fatores estão integrados e devem estar sempre presentes em qualquer indagação sobre o direito.
3 - Função social da ciência jurídica
O direito é "um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma das características da realidade jurídica é, como se vê a sua sociabilidade, a sua qualidade de ser social"16.
A ciência jurídica torna o direito viável. Ora, se o direito é um fenômeno social, a ciência jurídica também tem a sua função social.
A ciência jurídica para Maria Helena Diniz17 exerce funções relevantes não apenas para o estudo do direito, como também para a aplicação jurídica. Torna o direito viável como elemento de controle do comportamento humano. Permite flexibilidade interpretativa das normas e propicia adequação das normas no momento de sua aplicação.
Isso quer dizer que a ciência do direito procura auxiliar os aplicadores do direito procurando enunciar logicamente respostas aptas a solucionar os problemas jurídicos sem causar perturbação social.
Entretanto, a ciência jurídica tem um problema central que é a chamada decidibilidade. O jurista ao analisar as questões centrais dos aplicadores do direito, tenta encontrar respostas sobre decisões legislativas, judiciais, administrativas e contratuais18.
Para resolver a questão da decidibilidade temos que levar em consideração que o jurista, ao estudar o direito na sua tríplice dimensão, deve criar um sistema dinâmico, múltiplo, aberto e prospectivo. Com isso está aberto para elementos novos.
O pensamento científico jurídico é obrigatoriamente tecnológico, ou seja, a ciência do direito está ligada à técnica científica. São exemplos de técnicas científicas a serem utilizadas pelos juristas: o conhecimento e o domínio dos meios para chegar a um fim; o uso correto do vocabulário jurídico; a formulação de definições; o uso correto de técnicas interpretativas; o uso de técnicas integrativas; o uso de técnica corretivas19.
Além disso, o jurista também pode utilizar outra técnica para resolver a questão da decidibilidade que é a chamada tópica. Tópica: é a técnica de pensar por problemas. O jurista, em seu raciocínio jurídico irá problematizar através de uma relação entre perguntas e respostas. A tópica é composta da dogmática e da zetética. A argumentação dogmática é a pergunta e a resposta a si mesmo. A zetética é a problematização daquelas respostas20.
Tercio Sampaio Ferraz21 Junior utiliza alguns modelos teóricos para encarar a questão da decidibilidade. Como trata-se de um adepto da teoria tridimensional do direito apresenta três modelos teóricos inter-relacionados: um modelo teórico analítico, um modelo teórico hermenêutico e um modelo teórico empírico.
O modelo analítico encara a decidibilidade como uma relação hipotética entre hipóteses de conflito e hipóteses de decisão. Assim, trata-se de uma sistematização de regras para a obtenção de decisões possíveis22.
O modelo hermenêutico trata a decidibilidade sob o ângulo de sua relevância significativa. Trata-se de uma relação entre hipótese de conflito e hipótese de decisão23.
O modelo empírico trata a decidibilidade como uma questão de condições empíricas de possibilidade de uma decisão hipotética para um conflito hipotético24.
Com isso, conclui-se que os modelos teóricos têm também função: de organização, ou seja, o jurista cria um sistema múltiplo e aberto, estudando normas fatos e valores, organiza o sistema mediante proposições; de interpretação, quer dizer, o jurista pode interpretar uma norma optando por várias técnicas interpretativas, descobrindo critérios normativos para o preenchimento de lacunas e correção de antinomias; e, de previsão, ou seja, o jurista tem que prever hipoteticamente a decisão que daria em um certo caso concreto25.
Desta forma, ensinam, dizem como deve ser feito e delimitam as possibilidades abertas pela questão da decidibilidade26.
E também, conforme leciona Tercio Sampaio Ferraz Junior27, a combinação dos modelos analítico, hermenêutico e empírico, preenche as diversas funções sociais da dogmática jurídica.
4 - Conclusão
A ciência do direito para Tercio Sampaio Ferraz Junior28 é constituída por uma arquitetônica de modelos, como uma atividade que os subordina entre si tendo em vista o já mencionado problema da decidibilidade. Como estes problemas se caracterizam justamente por uma ausência de solução, a ciência jurídica é constituída por uma série de teorias que guardam unidade no ponto problemático de sua partida. Tais teorias tem uma função social e natureza tecnológica, sendo assim, a doutrina. Com isso, o agrupamento de doutrinas transforma a ciência do direito em dogmática jurídica.
A ciência do direito é, no entender de Maria Helena Diniz29 um instrumento de viabilização do direito, ou seja, uma agência de socialização por permitir a integração do homem e da sociedade num universo coerente.
Desta forma, a função social da ciência jurídica está na limitação da variação da aplicação do direito e no controle de consistência das decisões. O jurista deverá sempre, com isso, adequar o direito às valorações sociais vigentes30.
Bibliografia
DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009.
_________________. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1988.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2010.
_________________. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo, 1998.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
REALE, Miguel. O direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1992.
_________________. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2011.
_________________. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2003.
TELLES JUNIOR, Gofredo. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2011.
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2 Tércio Sampaio Ferraz Junior, A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 107
3 Miguel Reale, Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 321
4 Idem.
5 Ibidem, p. 322.
6 Maria Helena Diniz, A ciência jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 2.
7 Miguel Reale. Lições preliminares de direito, p. 1.
8 Maria Helena Diniz, A ciência jurídica, p. 4.
9 Gofredo Telles Junior, Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2011, p.374.
10 Idem, p. 381.
11 Ibidem, p. 375 e 382.
12 Miguel Reale. Lições preliminares de direito, p. 64, 65, 66 e 67.
13 Hans Kelsen, Teoria pura do direito,. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 79.
14 Miguel Reale, O direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 120.
15 Miguel Reale, Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 612 e 613.
16 Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 2.
17 Maria Helena Diniz, Compendio de introdução à ciência do direito, p. 180.
18 Idem, p. 177
19 Idem, p. 179.
20 Ibidem p. 178.
21 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo, 1998, p. 120.
22 Idem, p. 121
23 Ibidem.
24 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Função Social da Dogmática Jurídica, p. 121.
25 Maria Helena Diniz, Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 178.
26 Idem, p. 180.
27 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Função social da dogmática jurídica, p. 124.
28 Tercio Sampaio Ferraz Junior, a ciência do direito, p. 107 e 108.
29 Maria Helena Diniz, Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 180.
30 Idem, p. 181.
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*Luciana de Paula Assis Ferriani é advogada. Professora de Direito Civil. Graduada pela PUC/SP. Mestre pela PUC/SP. Doutoranda pela PUC/SP.