A Lei de Locações Prediais Urbanas frente ao nCC
Começa a ganhar força o debate sobre certas disposições da Lei de Locações Prediais Urbanas (nº 8.425 de 18.10.1991 - Lei de Locações) frente à vigência do Código Civil instituído pela Lei nº 10.406 de 10.1.2002 (NCC), que estariam conflitando com novos conceitos e alterações introduzidas por este diploma.
quinta-feira, 17 de julho de 2003
Atualizado em 16 de julho de 2003 13:54
A Lei de Locações Prediais Urbanas frente ao novo Código Civil
Claudio Taveira
Ivandro Ristum Trevelim*
Começa a ganhar força o debate sobre certas disposições da Lei de Locações Prediais Urbanas (nº 8.425 de 18.10.1991 - Lei de Locações) frente à vigência do Código Civil instituído pela Lei nº 10.406 de 10.1.2002 (NCC), que estariam conflitando com novos conceitos e alterações introduzidas por este diploma.
Até o advento do NCC, existia certa tranqüilidade com relação à aplicação da Lei de Locações, pois há muito vigorava o Código Civil de 1916 (CC 1916), ficando clara a idéia da posterioridade daquela em relação a este. Além do mais, a Lei de Locações não consistiu na primeira experiência legislativa destinada a regular as locações comercias e residenciais urbanas, havendo outras experiências anteriores.
É normal, portanto, que surja alguma dúvida de interpretação quando uma lei em plena vigência é acometida com a instituição de um novo Código Civil, mormente o fato que este regula a vida civil da sociedade, inclusive estipulando sobre a locação de coisas, bem como de contratos acessórios a ela, como os de garantia (i.e. fiança).
No entanto, eventuais incompatibilidades devem ser rapidamente dissipadas, para que se restaure o pressuposto de harmonia e consistência do sistema jurídico, bem como em nome da segurança nas relações estabelecidas, visto que o próprio sistema possui os instrumentos para refutar a antinomia jurídica1.
Lei Especial e Lei Geral
Assim, vejamos como agiu bem o legislador ao atentar à manutenção do sistema de normas sobre a locação de imóvel urbano, resultado de décadas de experiência na convivência entre locador e locatário.
A Lei de Locações é considerada uma lei especial, pois regula toda uma matéria (locações prediais urbanas) por inteiro. Isto dá a conotação de sua importância social, inclusive sendo seus artigos considerados cogentes, ou seja, não podem ser objeto de disposição entre as partes.
Por sua vez, o NCC apresenta os princípios básicos da vida civil, os quais nem sempre coincidem exatamente com as várias espécies contratuais existentes, que não raro possuem regulamentação específica. Caso a lei especial apresente alguma lacuna, deve-se recorrer subsidiariamente à lei geral.
A melhor doutrina manifesta-se no sentido de que as normas sobre a locação de coisas do NCC consistem em disposições gerais aplicáveis à locação de móveis, sendo subsidiariamente aplicadas às locações de imóveis urbanos. Ou seja, no tocando às locações prediais urbanas, os artigos do NCC são aplicáveis naquilo que não conflitarem com a lei especial2.
A lei especial anterior prevalece sobre a lei posterior geral, observada a regra lex posteriori generalis non derogat priori especiali. A única possibilidade de uma norma geral posterior superar uma especial anterior ocorreria na hipótese da mesma reformular integralmente a matéria, o que não aconteceu no caso da locação no NCC.
A primazia da Lei de Locações fica ainda bastante clara, vis-à-vis a redação do artigo 2.036 do Livro Complementar das Disposições Finais e Transitórias do próprio NCC:
"Art. 2.036. A locação do prédio urbano, que esteja sujeita a lei especial, por esta continua a ser regida."
Não são regidas pela Lei de Locações somente aquelas expressamente indicadas no parágrafo único do Artigo 1º3.
Acreditando ser este o prisma pelo qual a questão da regulamentação da locação predial urbana deva ser entendida frente o NCC, passaremos a discorrer sobre os seguintes pontos de importância, sem prejuízo de outras discussões que possam surgir: (i) a onerosidade excessiva em contrato de locação; (ii) a fiança como modalidade de garantia às obrigações do locatário; e (iii) a vigência do contrato de locação em caso de alienação do imóvel a terceiros.
O NCC cuidou introduzir às disposições do ordenamento civil o principio, já defendido há algum tempo pela doutrina e acatado pelos tribunais, consistente na revisão das condições do contrato em caso de ocorrência de eventual onerosidade excessiva para uma das partes.
Nos termos dos Artigos 478 e 479 do NCC, nos contratos de execução continuada, se a prestação de uma das partes se torna excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato, sendo que esta poderá ser evitada com a modificação eqüitativa das condições do contrato.
Percebe-se que já surge interesse em invocar e aplicar os preceitos mencionados acima como justificativa para a redução do valor do aluguel, sob a alegação que o mesmo se tornou excessivamente oneroso.
Ora, a Lei de Locações já estabelece em seu âmbito a possibilidade das partes rediscutirem e repactuarem o valor do aluguel. O próprio Artigo 18 determina que as partes podem, a qualquer tempo, renegociar o valor do aluguel, e caso não seja possível atingir uma solução amigável para a disputa, o Artigo 19 prevê que a cada três anos, tanto o locador quanto o locatário podem recorrer ao judiciário objetivando a reavaliação do valor do aluguel para padrões praticados no mercado (ação revisional).
Essa preocupação já existia, aliás, na legislação anterior (Lei nº 6.649/79), que previa o prazo de cinco anos para a ação revisional, o qual foi reduzido a três na atual sistemática.
Que o mercado imobiliário apresenta momentos de alta e outros de baixa é fato que nada tem de extraordinário ou imprevisível, mas a própria Lei de Locações estabeleceu os parâmetros da revisão do valor do aluguel, de forma a justamente evitar que a onerosidade excessiva ocorra, tanto em prejuízo do locatário (sujeito a valores altos em momentos de mercado em baixa), como para o locador (sujeito valores defasados face o investimento realizado).
Deve ser ressaltado o equilíbrio do legislador de 1991 ao estabelecer o procedimento acima descrito, evitando que o mercado ficasse sujeito à insegurança e instabilidade no que se refere aos valores dos alugueis, o que teria efeitos catastróficos para o crescimento e desenvolvimento do setor.
Por isso de todo louvável que inexista conflito entre o disposto nos artigos 478 e 479 do NCC e 19 da Lei de Locações, pois na verdade este último perfeitamente se adequa aos primeiros, na verdade até se antecipou a eles, estabelecendo no caso específico do mercado imobiliário de locações, qual o procedimento a ser adotado de maneira a evitar eventual onerosidade excessiva para ambas as partes, sem causar prejuízo à segurança jurídica dos negócios.
Gerou controvérsia o seguinte artigo do NCC:
"Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor."
A celeuma instalou-se em razão do Artigo 39 da Lei das Locações estabelecer que qualquer garantia da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, salvo se disposto em contrário.
Assim, caso fosse entendida a aplicação do Artigo 835 do NCC aos contratos de locação, poderia o fiador exonerar-se da fiança nos contratos prorrogados por prazo indeterminado, ficando descoberto o locador no tocante à garantia ao cumprimento das obrigações do locatário.
No entanto, esta nos parece uma discussão inócua, pois os Tribunais já vinham se posicionando contra a existência de uma obrigação sem limitação de tempo. Isto porque a fiança é considerada contrato de caráter benéfico e desinteressado, não comportando interpretação extensiva:
"Locação. Fiança. Prorrogação do contrato sem anuência dos fiadores. Exoneração. Possibilidade.
A jurisprudência da Corte vem-se firmando no sentido de não se admitir interpretação extensiva ao contrato de fiança, daí não poder ser responsabilizado o fiador por prorrogação de prazo do contrato de locação, a que não deu anuência, mesmo que exista cláusula de duração da responsabilidade do fiador até a efetiva entrega das chaves. Recurso conhecido e provido."
[Recurso Especial nº 275668/SP, Quinta Turma do STJ, 7.12.2000]
Também na hipótese de novo prazo, termos e condições ajustados por aditamento contratual celebrado entre locador e locatário, sem o comparecimento do fiador, a Superior Tribunal de Justiça entende que "o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento que não anuiu" (Súmula nº 214 de 23.9.1998).
Mesmo na hipótese de previsão contratual que a fiança estende-se até a efetiva devolução do imóvel, independentemente de notificação ou concordância prévia do fiador, o entendimento da jurisprudência deixa claro que o fiador poderá pleitear a exoneração.
Desta forma, o citado Artigo 835 veio, na verdade, reproduzir o entendimento já assentado na jurisprudência, conforme verificado acima.
Menos controvertida é a questão da vigência da locação em caso de alienação do imóvel locado a terceiros. Determina o Artigo 8º da Lei de Locações que pode o terceiro adquirente denunciar a locação, exceto se esta for celebrada por prazo determinado, contendo o contrato cláusula de vigência e estiver o mesmo averbado junto à matrícula do imóvel.
Nesse sentido, continua prevendo o Artigo 576 do NCC que se a coisa for alienada durante a locação, o adquirente não ficará obrigado a respeitar o contrato, se nele não for consignada a cláusula de sua vigência no caso de alienação, e não for levado a registro.
Na sistemática do NCC foi acrescentado parágrafo ao artigo 576 do NCC para especificar que em se tratando de coisa móvel, deverá o contrato ser levado ao Registro de Título e Documentos do domicílio do locador e em se tratando de imóvel, na respectiva circunscrição imobiliária.
De todo o exposto, percebemos que agiu com critério o legislador no tocando às relações de locação predial urbana comerciais e residenciais ao instituir o NCC, evitando conflitos desnecessários e a instabilidade do sistema jurídico, em benefício da segurança das relações jurídicas.
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* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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