Imóvel rural sem matrícula adquirido por usucapião deve averbar reserva legal
A discussão nunca havia chegado ao STJ e o posicionamento adotado pela Corte foi pioneiro no estudo dessa matéria.
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Atualizado em 24 de agosto de 2015 13:19
Em recente julgamento de Recurso Especial (REsp), a Terceira Turma do STJ condicionou o registro de imóvel rural sem matrícula adquirido por usucapião à averbação da reserva legal ambiental.
A controvérsia chegou ao STJ por meio de recurso interposto pelo Estado de São Paulo contra decisão do TJ/SP que entendeu que, por não haver previsão legal nas hipóteses de aquisição originária de imóvel, não seria necessária a averbação da reserva legal.
Antes da análise do mérito da decisão, para melhor explicar o cenário estudado, é necessária a definição e estruturação de alguns pontos.
A averbação da reserva legal na matrícula do imóvel estava prevista no artigo 16, § 8º, do antigo Código Florestal (lei federal 4.771/65), nos seguintes termos:
Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo:
§ 8º. A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código.
Há, também, previsão na Lei dos Registros Públicos (lei federal 6.015/73), nos seguintes termos:
Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:
II. a averbação:
22. da reserva legal;
A discussão sobre a aquisição originária por usucapião de imóvel sem matrícula nunca havia chegado ao STJ e o posicionamento adotado pela Corte foi pioneiro no estudo dessa matéria.
O Relator do REsp, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, aplicou o princípio hermenêutico in dubio pro natura, conduzindo seu raciocínio no seguinte sentido:
O caso é de usucapião de imóvel rural sem matrícula, não sendo, portanto, uma transmissão de propriedade, mas, sim, uma aquisição originária.
O STJ possui firme jurisprudência de que a averbação da reserva legal seria condição para o registro de qualquer ato de transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel rural, porém sem precedentes sobre a hipótese de aquisição originária.
O instituto da reserva legal ostenta natureza 'propter rem'. Vale dizer, é inerente ao direito de propriedade ou posse de bem imóvel rural. Constitui obrigação de todo e qualquer proprietário ou possuidor de imóvel rural, já que adere ao título de ou à posse.
A reserva legal, portanto, é uma das características intrínsecas ao direito de propriedade ou posse de imóvel rural e constitui uma limitação administrativa diretamente conectada com o princípio da função socioambiental da propriedade.
A especialização da reserva legal é dever do proprietário, possuidor ou do adquirente do imóvel rural.
No caso em estudo, o imóvel rural foi adquirido por usucapião e, por isso, deve cumprir exigência legal de averbar a área de reserva legal na matrícula do imóvel.
Como não há previsão legal expressa nesse sentido e decorreu de interpretação jurisprudencial da Corte, o STJ aplicou o princípio hermenêutico in dubio pro natura para o caso, interpretando que, na impossibilidade de aplicação literal de lei, a interpretação do conjunto normativo deve ser aquela que se revela a mais favorável ao meio ambiente.
Trata-se de uma exceção à regra hermenêutica de que as normas limitadoras de direitos, como são as normas ambientais, devam ter interpretação estrita. Tal exceção é justificada, segundo o Ministro Sanseverino, pela magnitude da importância do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 1º, inciso III c/c artigo 225, ambos da Constituição Federal).
O antigo Código Florestal apenas previa a transmissão, desmembramento e retificação da área de imóvel rural. Interpretar o dispositivo legal de forma estrita levaria à conclusão de que aquisição originária estaria excluída da necessidade de averbação da reserva legal no ato do registro.
Porém, entendeu o Relator que é possível extrair outro sentido do texto, tomando a palavra "transmissão" em sentido amplo, denotando o ato de passar algo a outrem, de modo a abranger também a usucapião, que pode ser considerada uma "transmissão" da propriedade por força de sentença.
Esse sentido mais amplo está em sintonia com o princípio in dubio pro natura, pois, havendo diversos sentidos de um dispositivo legal, deve-se privilegiar aquele que confere maior proteção ao meio ambiente.
Tendo em vista a mudança legislativa com o advento do novo Código Florestal (lei federal 12.651/12), a forma de publicidade da reserva legal ambiental também foi alterada.
O novo Código Florestal instituiu o Cadastro Ambiental Rural (CAR) que é um registro eletrônico, obrigatório para todos os imóveis rurais, formando base de dados estratégicos para o controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas e demais formas de vegetação nativa do Brasil, bem como para planejamento ambiental e econômico dos imóveis rurais, passando a ser dispensada a averbação no cartório de registro de imóveis.
Tal modificação está prevista no artigo 18, do novo Código Florestal, que está assim disposto:
Art. 18. A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.
O artigo 29, por sua vez, veio assim escrito:
Art. 29. É criado o Cadastro Ambiental Rural - CAR, no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente - SINIMA, registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.
O Relator entendeu que a nova legislação florestal é aplicável ao caso, sendo plenamente possível e necessário condicionar o registro da sentença de usucapião ao prévio registro da reserva legal no CAR.
Essa interpretação foi acompanhada pelos demais ministros da Terceira Turma, que deram provimento ao recurso para condicionar o registro da sentença de usucapião ao prévio registro da reserva legal no CAR.
O STJ, cumprindo com seu dever constitucional previsto no artigo 105, inciso III, alínea c, da Constituição Federal, julgou matéria com nuances nunca antes analisadas pela Corte e deu interpretação à lei federal, aplicando o princípio hermenêutico in dubio pro natura.
O caso em análise possui uma peculiaridade interessante, uma vez que parte considerável e bastante relevante do julgado trata de matéria de direito público (direito ambiental) aplicada em matéria essencialmente de direito privado (usucapião). O caso foi analisado pela Terceira Turma do STJ, especializada em direito privado.
A interface de tais matérias revela a importância e a crescente demanda na Corte Superior de questões envolvendo direito ambiental, cada vez mais presentes tanto em matéria de direito público, tratando essencialmente das questões ambientais, como, também, sua aplicação nas áreas de competência do direito privado, sendo sempre necessária a observância e cumprimento de suas regras para um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.
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*Pedro Luiz Serra Netto Panhoza é especialista em direito imobiliário e sócio do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados.