As aberrações da lei 13.146/2015
"A vulnerabilidade do indivíduo não pode nunca ser desconsiderada pelo ordenamento. Isso é óbvio."
terça-feira, 11 de agosto de 2015
Atualizado às 08:24
1. A lei 13.146, de 6 de julho de 2015
A comunidade jurídica brasileira recebeu, atônita, a lei 13.146, de 6 de julho de 20151, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência e introduz diversas alterações em nosso ordenamento.
No Direito Civil, a mais profunda mudança concentra-se nos arts. 3º e 4º do Código Civil de 2002, relativos à incapacidade2.
Pelo (ainda vigente) art. 3º, são absolutamente incapazes: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Com a nova lei (art. 114) todos os incisos desse artigo foram revogados, exceto o que se refere aos menores de 16 anos. Estes continuam a ser absolutamente incapazes para os atos da vida civil.
O art. 4º foi também modificado. A redação ainda em vigência determina que são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II- os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.
Pela nova redação (dada também pelo art. 114 da lei) são considerados relativamente incapazes os ébrios habituais e os viciados em tóxico e aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.
A situação é inconcebível.
Os portadores de deficiência mental passam a ter plena capacidade, podendo inclusive casar, constituir união estável e exercer guarda e tutela de outrem. Isso vem afirmado explicitamente no art. 6º da lei 13.146/2015:
"Art. 6º. A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas".
Imagine-se um indivíduo deficiente e que tenha idade mental calculada em 10 anos. Ele, sendo faticamente maior de 18 anos, será tão ou mais capaz que outro indivíduo, não deficiente, de 17 anos.
Os sujeitos em estado de coma - absolutamente impossibilitados de manifestar vontade - passam a ser relativamente incapazes.
Não se fala mais em prodigalidade. Fica o instituto, ao que tudo indica, abolido do aparato protetivo da lei civil.
Estarrecidos diante dessa lei, que traz outras tantas aberrações, teceremos breves apontamentos sobre o assunto. Talvez poucos tenham pensado que fosse ainda preciso "desenhar" para os desavisados o significado dos arts. 3º e 4º do código civil. Mas, como tudo indica que o legislador se esqueceu do próprio significado de sua missão, a tarefa se nos impõe.
Este artigo inaugura uma pequena série de considerações acerca da nova Lei.
2. O atentado aos arts. 3º e 4º do Código Civil de 2002.
O eixo do sistema de capacidade de fato (ou de agir) da pessoa natural é a cognoscibilidade e a autodeterminação3, de forma que é plenamente capaz para os atos da vida civil aquele que compreende e se autodetermina, e que, portanto, tem pleno poder de gerenciar sua vida, seus negócios e seus bens4. O discernimento5 está à base desse instituto.
Aquele que não compreende e nem se autodetermina precisa ser rigorosamente protegido, e até mesmo de si próprio6. O código civil volta a atenção, assim, para esses indivíduos que, por variadas causas, não têm discernimento ou aptidão para a manifestação de vontade7, e devem interagir socialmente em igualdade de condições por meio de representação e/ou assistência. Assim, ao absolutamente incapaz, por não ser apto aos atos da vida civil8, dá-se representante, que fala, age e quer pelo seu representado9. Ao relativamente incapaz confere-se assistente, e ambos praticam em conjunto os atos jurídicos.
Estando a vontade juridicamente apreciável na base dessa sistemática protetiva, é claro que o pareamento de condições para a atuação social precisa ser estimulado por esses institutos. A vulnerabilidade do indivíduo não pode nunca ser desconsiderada pelo ordenamento10. Isso é óbvio.
Porém, infelizmente, a lei 13. 146/2015, ao mutilar os artigos 3º e 4º do Código, desguarnece justamente aquele que não tem nenhum poder de autodeterminação. Trata-se de "autofagia legislativa".
Pelo antigo sistema (entenda-se por antigo o texto de lei ainda em vigor, porém em vias de revogação), como afirmamos, são incapazes absolutamente os menores, enfermos ou deficientes sem qualquer discernimento e todo aquele que não consegue expressar de forma alguma sua vontade. Essa inaptidão que informa o inciso III do art. 3º, aliás, independe da causa orgânica11. Basta que exista12, já que, afetada a inteligência, é de se presumir a incapacidade13 para governar a si mesmo.
De toda sorte, estão protegidos aqueles que infelizmente têm idiotia (menos que 25 de Q.I.), imbecilidade (de 25 a 50 de Q.I.)14, os que estão em situação de coma, os que estão em grau avançado de Alzheimer, Parkinson, e outras tantas doenças degenerativas. Aliás, todos eles estão no mesmo do rol do menor de 16 anos, que muito embora tenha alto grau de cognoscibilidade, não tem maturidade emocional.
Agora, por incrível que pareça, ou foram alçados por força do novo artigo 4º, inciso III, à condição de relativamente capazes, o que significa que uma pessoa em coma tem maior poder de autodeterminação e maior livre arbítrio do que um jovem de 15 anos (Estatuto do Jovem, art. 1º)15; ou, no caso dos deficientes mentais, à condição de capazes.
Parece incrível o dispositivo legal. Aterrorizante, na verdade. O seu pretenso alvo de proteção é, ao mesmo tempo, sua maior vítima!
Levada a pessoa em coma à qualidade de relativamente incapaz, o negócio praticado por ela passa a ser meramente anulável (art. 171, I do CC/02), em não sendo provada a simulação (art. 167, paragrafo 1º). Não haverá mais a tutela do art. 166, inc. I16.
O sujeito acometido por esse mal passa a ser assistido. Como é possível apenas assistir aquele que não manifesta qualquer vontade? Estará tal negócio sujeito a prazo decadencial? Estará sujeito à confirmação?
Já os deficientes mentais, levados à plena capacidade, poderão negociar validamente17. Há aí algum indício de proteção?
Muitas são as questões, pois a pobreza de qualidade da lei 13.146/2015 tem força para destruir um aperfeiçoadíssimo sistema protetivo.
E, já não bastasse a gravidade do erro do legislador, a doutrina entrou a despejar impropriedades. Lendo alguns artigos de renomados autores sobre o assunto, chega a gerar perplexidade a maneira como o assunto é tratado18. A lei é aplaudida explicitamente por criar uma suposta "inclusão" dos deficientes.
De fato, ela os inclui, jogando-os no grupo dos capazes, isto é, daqueles que não recebem a proteção consubstanciada no sistema das incapacidades. Os inclui para desprotegê-los e abandoná-los a sua própria sorte.
Quem se importa se com isso a pessoa com deficiência - acometida pelos males que expusemos - sofrerá? O importante mesmo é fazer uma lei que, formalmente, proclame a igualdade e despeje uma saraivada de princípios desprovidos de significado.
Embora tenhamos grande apreço pela cientificidade da argumentação - o que de modo algum nos retira a sensibilidade de seres humanos e sociais (diferentemente do legislador, que não prezou por qualquer das duas) -, arriscamo-nos a elaborar uma singela lista com os "alvos maiores" da lei 13.146.
De uma tacada o legislador "assassinou":
i) a proteção aos deficientes;
ii) o sistema das incapacidades;
iii) Os direitos humanos19;
iv) todos os pontos normativos que a nova lei modifica (e não são poucos).
Nada demais, não é? Apenas jogaram pela janela elementos - aliás diversos entre si - que formam a base que até hoje serviu para proteger certo grupo de pessoas. E que grupo é esse? Justamente aquele que o legislador se propôs a defender.
A grande pergunta que remanesce é a respeito do motivo da revogação dos artigos 3º e 4º do código civil (a maior parte deles, ao menos).
Se a dignidade da pessoa humana é o eixo do sistema - como se proclama a torto e a direito - engessar o poder do juiz de proteger de forma plena alguém acometido por uma situação incapacitante é garantir essa dignidade?
O que protege melhor, a flexibilidade ou a rigidez? A possibilidade do amplo exercício do estado de direito por meio da jurisdição ou a sua inibição?
Façamos um esforço mínimo de racionalidade. As ideias mais funestas buscam se concretizar sob o manto da ética e moralidade. O diabo nunca se apresenta com chifres e tridente; normalmente aparece como um anjo de luz.
E, em relação à lei 13.146/2015, uma de duas: ou alguém se descontrolou e fez o que não deveria, ou alguém nasceu mal-intencionado e fez, vejam só, o que não deveria. A certeza fica na incorreção do ato, que jamais poderia ter saído do papel. Aliás, não deveria ter sequer entrado no papel!
Pensávamos em fazer uma troça (de mau gosto, é bem verdade) com a situação dos "inventores" dessa nova lei, dizendo que deveriam ser tidos por absolutamente incapazes. Mas, a considerar o conteúdo da norma, isso é impossível, pois já passaram todos dos 16 anos (cremos).
De todo modo, está aí a novidade. Publicada e solenemente aguardando o momento de produzir seus portentosos efeitos. Que os céus nos protejam, já que o legislador, abrindo a porta para uma enxurrada de absurdos, permitiu que o Direito fugisse por alguma janela.
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No próximo artigo, vamos expor mais detidamente o fundamento das incapacidades, apresentando um pouco do direito comparado e da legislação internacional de direitos humanos, na tentativa de mostrar com clareza o quão absurda é a lei 13.146/2015.
Bibliografia
ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil. Introdução. Teoria Geral. As Pessoas. Os Bens, 3.ed., São Paulo, Saraiva, 2010, v.1.
CHAVES, Antonio, Capacidade civil, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 13, São Paulo, 1977.
CHINELLATO, Silmara Juny, comentários ao art. 3º, in A. C. Costa Machado (org.) e S. Chinellato (coord.), Código Civil Interpretado, 8.ed., Barueri: SP, Manole, 2015.
DUARTE, Nestor, Comentários aos arts. 3º e 4º, in PELUSO, Cezar (coord.), Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência, 7.ed., Barueri: SP, Manole, 2013.
LARENZ, Karl, Derecho Civil - Parte General, trad. ao esp. por M. Izquierdo y Macías-Picavea, Madrid, EDERSA, 1978.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha, Lei 13.146 acrescenta novo conceito para capacidade civil.
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RIZZARDO, Arnaldo, Parte Geral do Código Civil, 3.ed., Rio de Janeiro, Forense, 2005.
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SIMÃO, José Fernando, Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte I).
STERNBERG, Robert H., Handbook of intelligence, Cambridge University Press, 2006. Acesso em 10/8/2015.
STOLZE, Pablo, O Estatuto da Pessoa com Deficiência e o sistema jurídico brasileiro de incapacidade civil.
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2Este primeiro texto tem por objetivo específico dimensionar de forma tímida o artigo 114 do Estatuto em questão, que na primeira parte modificou parcialmente os referidos dispositivos do Código Civil.
3Por isso é que, por exemplo, aqueles que são afetados por debilidade mental precisam ser protegidos pelo direito, eis que seu conhecimento e sua vontade não estão em equilíbrio com tais aptidões nos indivíduos não acometidos por essas enfermidades. Sobre isso v. F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, atualizado por J. Martins-Costa, J. Cesa Ferreira da Silva e G. Haical, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 315, t. I.
4Somente dispõe de capacidade em plenitude aquele que possui inteligência e compreensão e que é dono de si (K. Larenz, Derecho Civil - Parte General, trad. ao esp. por Miguel Izquierdo y Macías-Picavea, Madrid, EDERSA, 1978, p. 105).
5A. Chaves, Capacidade civil, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 13, São Paulo, 1977, p. 2.
6J. O. Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral. Introdução. As Pessoas. Os Bens, 3.ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 140, v. 1.
7S. Chinellato, comentários ao art. 3º, in A. C. Costa Machado (coord.) e S. Chinellato (org.), Código Civil Interpretado, 8.ed., Barueri: SP, Manole, 2015, p. 35.
8"A gravidade, nesses casos, há de ser tal que não deixe possibilidade de discernir, embora ocorrentes intervalos lúcidos(...)". (N. Duarte, comentário ao art. 3º, in PELUSO, Cezar (coord.), Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência, 7. ed., São Paulo, Manole, 2013, p. 18).
9C. M. Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, 25.ed., Rio de Janeiro, Forense, 2012, p. 229, v.1.
10Não é de se ignorar que a lei, assim, tutela diversos indivíduos tidos por vulneráveis (criança e adolescente; jovens; consumidor; mulher sob violência doméstica; idosos e agora os deficientes).
11C. M. Silva Pereira, Instituições cit., p. 235.
12N. Duarte exemplifica dizendo que, nessa categoria (inciso III do atual art. 3º do CC/02) "tanto pode se incluir o surdo-mudo que não tem condição de declarar a vontade por outro modo, como a pessoa enferma sem consciência, mesmo que venha a recuperá-la" (Código Civil Comentado cit., p. 18)
13A. Rizzardo, Parte Geral do Código Civil, 3.ed., Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 203.
14R. H. Sternberg, Handbook of intelligence, Cambridge University Press, 2006, p. 142. A obra pode ser consultada aqui: . Acesso em 10/8/2015.
15"Lei 12.852/2013. Art. 1º. Esta Lei institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. § 1º. Para os efeitos desta Lei, são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade."
16"CC/02. Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; (...)"
17José Fernando Simão, criticando a lei, dá diversos exemplos de situações novas e já absurdas. A título ilustrativo, selecionamos a seguinte passagem de seu artigo: "Sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente capaz, poderá celebrar negócios jurídicos sem qualquer restrição, pois não se aplicam as invalidades previstas nos artigos 166, I e 171, I do CC. Isso significa que hoje, se alguém com deficiência leve, mas com déficit cognitivo, e considerado relativamente incapaz por sentença, assinar um contrato que lhe é desvantajoso (curso por correspondência de inglês ofertado na porta do metrô) esse contrato é anulável, pois não foi o incapaz assistido. Com a vigência do Estatuto esse contrato passa a ser, em tese, válido, pois celebrado por pessoa capaz. Para sua anulação, necessária será a prova dos vícios do consentimento (erro ou dolo) o que por exigirá prova de maior complexidade e as dificuldades desta ação são enormes. Trouxe, nesse aspecto, o Estatuto alguma vantagem aos deficientes? A mim, parece que nenhuma, pois deixou o deficiente a mercê de pessoas sem escrúpulos e com maior dificuldade para invalidar negócios jurídicos (...)" (Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade - parte I.
18A título de exemplo, as considerações feitas por Pablo Stolze, para quem "este importante Estatuto, pela amplitude do alcance de suas normas, traduz uma verdadeira conquista social. Trata-se, indiscutivelmente, de um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis" (O Estatuto da Pessoa com Deficiência e o sistema jurídico brasileiro de incapacidade civil. Também causam espécie as considerações de Rodrigo da Cunha Pereira, que aplaude a nova lei, por vê-la alinhada à dignidade da pessoa humana (Lei 13.146 acrescenta novo conceito para capacidade civil. Este autor conclui seu texto afirmando que "Esta nova compreensão da capacidade civil é uma boa tradução e incorporação da noção e valorização da dignidade e dignificação do humano (...)". Discordamos, por óbvio. Essa nova capacidade civil, na verdade, atenta contra a dignidade da pessoa humana, pois retira a proteção de quem mais precisa.
19Demonstraremos isso na próxima coluna.
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*Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.
*Bruno de Ávila Borgarelli é estudante de Direito da USP e pesquisador jurídico.