A judicialização na saúde
Dados do Ministério da Saúde demonstram que os custos com a judicialização aumentam ano a ano e, somente em 2014, os gastos da União com ações judiciais superaram R$ 843 milhões.
quinta-feira, 23 de julho de 2015
Atualizado em 22 de julho de 2015 09:46
A judicialização na área da saúde tem despertado grandes debates, especialmente quanto à legitimidade do Poder Judiciário em interferir nas políticas públicas de saúde e obrigar o poder público a arcar com tratamentos ou medicamentos de determinado cidadão que busca o meio judicial para ver suas necessidades atendidas, mesmo que esta necessidade esteja fora dos protocolos do SUS.
Os dados do Ministério da Saúde demonstram que os custos com a judicialização aumentam ano a ano e, somente em 2014, os gastos da União com ações judiciais superaram R$ 843 milhões.
Em 2009, foram propostas 10.486 ações judiciais contra a União para obtenção de algum tipo de assistência à saúde. Esse número cresceu 491% em 5 anos, atingindo 62.020 ações judiciais em 2014, sendo que a maioria dessas demandas está relacionada ao acesso a medicamentos.
A busca pela tutela judicial decorre, principalmente, das garantias constitucionais dadas aos cidadãos, previstas nos artigos 196 a 200 da Constituição Federal, regulamentados pela Lei 8.080 de 1990, que instituem um sistema público de saúde universal, integral, igualitário e gratuito.
Por outro lado, o sistema de saúde brasileiro é extremamente desfragmentado e subfinanciado, o que acarreta grandes problemas estruturais e limitações financeiras para atender a demanda da população, representando um verdadeiro obstáculo ao exercício dos direitos constitucionalmente garantidos.
A recente política de saúde brasileira também não favorecerá a redução do fenômeno da judicialização. Como bem observa o professor Mário Scheffer, "os fundamentos políticos e econômicos do Sistema Único de Saúde (SUS) foram abalados no início de 2015, com a aprovação da Emenda Constitucional no 86 (EC 86), que cristaliza o subfinanciamento do SUS, e da Lei nº 13.097, que permite a participação de empresas e do capital estrangeiro, direta ou indiretamente, nas ações e cuidados à saúde"
A deficiência na incorporação de novas tecnologias também é um grande obstáculo para garantir o princípio da integralidade do sistema de saúde brasileiro.
A primeira tentativa do Ministério da Saúde para tentar criar um processo de incorporação de novas tecnologias foi em 2006, com a criação do CITEC - Comissão de Incorporação de tecnologias, o qual tinha por atribuição analisar a incorporação ou retirada de tecnologias de saúde, revisão de diretrizes clínicas, protocolos terapêuticos e assistenciais.
No entanto, entre 2006 e 2008, a atuação do CITEC representou pouco avanço na política de incorporação de novas tecnologias ao SUS.
A deficiência na incorporação de novas tecnologias ao SUS, e o consequente crescimento da judicialização, fez com que o Supremo Tribunal Federal promovesse, em 2009, uma audiência pública, a fim de viabilizar um debate com a sociedade civil, profissionais de saúde, gestores do governo e a comunidade científica.
O debate motivou a criação da lei 12.401/11, a qual instituiu a CONITEC - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS - e buscou assegurar a transparência e a possibilidade de participação da sociedade civil nos processos de incorporação.
No entanto, o atual mecanismo de incorporação de novos medicamentos ao SUS ainda é ineficiente. Conforme divulgado pela Folha de São Paulo1, entre março de 2012 e março de 2015, foram feitos 225 pedidos ao CONITEC para incorporação de novos medicamentos. Desses, apenas 171 foram avaliados e 55% foram rejeitados.
Dos medicamentos incorporados pelo CONITEC, apenas 13% tinham menos de 5 anos de mercado. Isso demonstra que a maioria dos medicamentos levam, no mínimo, 5 anos para serem incorporados aos protocolos do Sistema Único de Saúde e estarem efetivamente disponíveis aos usuários.
Diante deste cenário, o Poder Judiciário tornou-se a instituição capaz de viabilizar ao cidadão, individualmente, o acesso ao tratamento ou ao medicamento não contemplado pelos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS.
O Poder Judiciário deve funcionar como um fórum do princípio de atuação independente, e no caso das ações envolvendo saúde, deve ter como objetivo garantir a proteção dos princípios constitucionais essenciais à personalidade, como o da Dignidade da Pessoa Humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Portanto, a jurisdição bem exercida, dentro dos limites legais, é antes uma garantia para a democracia do que um risco.
Impõe-se, todavia, uma observação final. A importância do Judiciário como o protetor dos direitos individuais não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo.
Por isso, o debate democrático, o aprimoramento da gestão do sistema de saúde e principalmente a ampliação dos meios de financiamento do SUS, são, certamente, os meios capazes de aproximar a oferta de saúde aos princípios constitucionais, ou seja, tornar o sistema público de saúde efetivamente universal, integral e igualitário. Este é o caminho mais eficaz de combater a tão malfadada judicialização.
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1 Folha de São Paulo, 04 de maio de 2015.
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Referências
AITH, Fernando; BUJDOSO, Yasmin; NASCIMENTO, Paulo Roberto; DALLARI, Sueli Gandolfi. Os princípios da universalidade e integralidade do SUS sob a perspectiva da política de doenças raras e da incorporação tecnológica. Revista Direito Sanitário, São Paulo v.15 n.1, p. 10-39, mar./jun. 2014.
GOMES, Vanessa Santana; AMADOR, Tânia Alves. Estudos publicados em periódicos indexados sobre decisões judiciais para acesso a medicamentos no Brasil: uma revisão sistemática. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 31(3):451-462, mar, 2015.
SCHEFFER, Mário. O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 31(4):663-666, abr, 2015.
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*Rafael Robba é advogado especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva Sociedade de Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Santo Amaro, pós-graduado em Responsabilidade Civil pela FGV, mestrando em Saúde Coletiva no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.