O lixo poderia ser um estorvo, mas não é
Lembro-me do dia em que estudantes de Direito Ambiental bem capacitados e profissionais do setor de saneamento básico indagaram-me quanto à legitimidade em se exigir licenciamento ambiental para atividades como a de tratamento de esgotos que já traziam, por sua própria natureza, benefício ambiental.
terça-feira, 21 de março de 2006
Atualizado em 20 de março de 2006 15:25
O lixo poderia ser um estorvo, mas não é
Flavia Witkowski Frangetto*
Lembro-me do dia em que estudantes de Direito Ambiental bem capacitados e profissionais do setor de saneamento básico indagaram-me quanto à legitimidade em se exigir licenciamento ambiental para atividades como a de tratamento de esgotos que já traziam, por sua própria natureza, benefício ambiental.
No exercício jusfilosófico de justificar tal exigibilidade prevista nas normas ambientais, recorri à finalidade do licenciamento ambiental enquanto instrumento da política nacional de meio ambiente que visa a prevenir danos ambientais. Logo, o fato de certa atividade ser potencialmente benéfica ao meio ambiente não é suficiente para afastar a necessidade de o empreendedor comprovar que ela resultará na melhoria da qualidade ambiental e, nesse sentido, o licenciamento ambiental vem a ser um método procedimental mediante o qual tal demonstração pode ser feita - daí a multiplicidade de formas de avaliação de impactos ambientais.
Aquela conclusão - de que a atividade capaz de refletir positivamente ao meio ambiente pode também suscitar uma verificação das condições ecológicas durante o processo de obtenção desse resultado favorável -, hoje, está mais do que evidente no caso da atividade de tratamento dos resíduos sólidos associada à geração de créditos de carbono nos moldes do Protocolo de Kyoto.
Se isso não fosse verdade, os requisitos para a emissão das Reduções Certificadas de Emissões (que são os títulos comercializáveis no mercado financeiro e que, uma vez adquiridos pelos países desenvolvidos, servem para estes quitarem parcelas de suas obrigações, de meta de redução dos níveis de gases de efeito estufa na atmosfera, perante os países compromissados com o aludido Protocolo) não seriam tão rigorosos. Claro que, no processo de decomposição dos resíduos, capturar o máximo de Metano, antes liberado em grande quantidade na atmosfera, traz benefícios para o meio ambiente. Mas não é por isso que o direito de pleitear créditos de carbono a partir do aproveitamento de tal gás está isolado de um dever de demonstração de diligência e atenção para com demais aspectos pertinentes ao meio ambiente. Veja-se que, para almejar-se o direito ao mencionado crédito de carbono, são necessárias as avaliações realizadas por entidades credenciadas (incumbidas de realizar o monitoramento do projeto de carbono e respectiva verificação e certificação), as aprovações de órgãos competentes, no nível nacional e internacional, e as não objeções do terceiro setor e das autoridades administrativas.
Assim, os projetos de carbono decorrentes do biogás, mesmo sendo proporcionadores da redução dos níveis de gases de efeito estufa na atmosfera, não estão isentos da demonstração da sustentabilidade (isto é, da presença do equilíbrio entre os aspectos social, econômico e ecológico), pois esta é o elemento perante o qual o sistema jurídico climático autoriza a transformação daquilo que era resto e sem valor (o lixo) em bem economicamente valorado (o carbono).
Esta constatação não pode ser tomada como uma dificuldade para a obtenção de créditos de carbono, mas sim como incentivo para a superação dos obstáculos de facilitação da implementação do Protocolo de Kyoto no Brasil, afinal, graças às regras rígidas intrínsecas ao Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o lixo, que era um estorvo, deixa de sê-lo.
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*Advogada do escritório Siqueira Castro Advogados
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