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Nemo tenetur se detegere, por Eudes Quintino

Nemo tenetur se detegere

O exercício do direito de não produzir prova contra si mesmo não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada.

domingo, 28 de junho de 2015

Atualizado em 26 de junho de 2015 15:28

A população brasileira, após o alargamento das liberdades públicas introduzido pela CF, vem acompanhando com muito interesse, tanto pelos jornais, televisão e informativos midiáticos, os acontecimentos sociais e políticos que exigem uma definição jurídica das condutas dos envolvidos. Chegam até proporcionar debates entre os leigos que procuram um ajustamento condizente com as regras populares, uma vez que são desconhecedores das normas técnicas. Bem salientou Ross quando afirmou que "a ideia de justiça parece ser uma ideia clara e simples, dotada de uma poderosa força motivadora. Em todas as partes parece haver uma compreensão instintiva das exigências de justiça. As crianças de tenra idade já apelam para a justiça se uma delas recebe um pedaço de maçã maior que os pedaços das outras".1

Nem sempre qualquer pessoa do povo, de acordo com a abrangente legitimidade conferida pelo CPP, aceita as decisões proferidas pela justiça, por entender que carecem de uma fundamentação lógica e que venham ao encontro do anseio popular. É o que acontece, por exemplo, com o autuado em flagrante por prática de delito grave, e a justiça concede a liberdade provisória. Enquanto a cultura do brasileiro pende pela prevalência da prisão, a justiça cuida em confirmá-la somente se for necessária e conveniente, com o embasamento legal correspondente.

Nesta linha de inconformismo popular, o silêncio do acusado em seu interrogatório, é sintoma de confissão de culpa, pois a regra de que quem cala consente deve ser aplicada como resposta judicial adequada. É sabido e faz parte da cultura popular que, aquele que tomou conhecimento de uma acusação e diante dela se calou, consentiu. Uma vez que não se defendeu e teve oportunidade para tanto, o seu silêncio passa a ser incriminador. O julgamento popular é instantâneo, produz coisa julgada e se torna rapidamente imutável, sem qualquer chance de reversão.

Mas, na realidade, não prevalece o adágio popular, pois o Direito é fruto de um sistema jurídico devidamente regulamentado e assentado em princípios e regras que vão se aperfeiçoando com o passar do tempo, sempre visando atender de forma justa e correta os reclamos sociais.

O direito ao silêncio é tutelado constitucionalmente e o acusado pode se recusar a responder às perguntas que venham incriminá-lo. Cinge-se na esfera do também preceito constitucional da ampla defesa, corolário inseparável dos direitos da personalidade, assim denominados por Pontes de Miranda. Não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando for convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino.

Ao leigo passa a impressão de que a postura de indiferença, de antipatia e de arrogância daquele que está sendo inquirido, representa um deboche aos representantes do povo encarregados da arguição e já proporciona um julgamento antecipado. Diante de tal cena, a população brasileira, aquela que não conhece a técnica jurídica, vê dinamitar e implodir os conceitos tão arduamente construídos pela crença popular e, no exercício de sua indignação, conclui, de forma frustrada, que o direito individual deve prevalecer sobre o coletivo, mais uma vez desprestigiado.

A Carta Constitucional estende os braços para o princípio da presunção da inocência, que guarda estreita vinculação com a regra do nemo tenetur se detegere (ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo), direito assegurado nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana no instituto do privilege against self-incrimination (privilégio da não autoincriminação). O exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada. E a liberdade do cidadão somente pode ser limitada em nome de outra liberdade mais prevalente, no critério estabelecido por seres iguais e livres, com liberdade de escolha.

O silêncio pode se estender até a fase judicial quando do interrogatório do acusado e o juiz, depois de cientificá-lo do inteiro teor da acusação, irá observar que "o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa".2 Conforme salienta Tourinho Filho, com sua incontestável sabedoria, de um modo geral "todos reconhecem ser o interrogatório meio de defesa. Sendo-o, evidente que o réu pode preferir calar-se. E o Juiz nem sequer pode tirar ilações desse silêncio contrárias ao réu, tal como disposto em lei, pois do contrário estaria neutralizando a Defesa, cerceando-a grosseiramente".3

Incumbe ao Estado, por meio de seus agentes persecutórios, demonstrar a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas espúrias, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira. É a reserva que assegura ao cidadão o direito de não realizar provas contra si mesmo.

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1 Ross, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2000, p. 314.
2 Parágrafo único do artigo 186 do Código de Processo Penal.
3 Tourinho Filho. Processo penal, vol. 2.. Ed. rev. de acordo com a Lei 12.403/2011. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 566.


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Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, Reitor da Unorp/São José do Rio Preto.

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