A jornada de trabalho dos servidores públicos cujos dependentes são pessoas com deficiência
A necessidade de se tutelar os direitos dos servidores públicos responsáveis por pessoas com deficiência se torna ainda mais premente quando o dependente é uma criança.
terça-feira, 23 de junho de 2015
Atualizado em 22 de junho de 2015 10:01
Por meio do decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, foi promulgada a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, assinada em 30 de março de 2007 e ratificada pelo Brasil em 1º de agosto de 2008.
Em linhas gerais, o documento assegura a dignidade das pessoas com algum tipo de deficiência, para que participem plenamente da sociedade em igualdade de condições com as demais. Este propósito está inserido no art. 1º, segundo o qual:
O propósito da presente Convenção é o de promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade.
Este foi o primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado no rito estabelecido pelo §3º do art. 5º da Constituição, que determina:
§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
Em outras palavras, foi a primeira convenção internacional aprovada pelo Brasil com força de emenda constitucional e, portanto, os direitos nela assegurados adquiriram o status de direitos fundamentais.
Uma vez equiparada à norma constitucional, a Convenção adquiriu primazia sobre a legislação infraconstitucional e, consequentemente, a capacidade de derrogar dispositivos conflitantes.
Neste artigo, será analisado se as disposições da lei 8.112/90, que regulamentam a jornada de trabalho dos servidores públicos federais, são ou não oponíveis aos direitos e às garantias previstos pela Convenção.
Estabelece o art. 19 da lei 8.112/90:
Art. 19. Os servidores cumprirão jornada de trabalho fixada em razão das atribuições pertinentes aos respectivos cargos, respeitada a duração máxima do trabalho semanal de quarenta horas e observados os limites mínimo e máximo de seis horas e oito horas diárias, respectivamente. (Redação dada pela Lei nº 8.270, de 17.12.91)
A jornada de trabalho de oito horas diárias pode ser excepcionada nas hipóteses do art. 98, que concede horário especial ao servidor com deficiência, independentemente de compensação de horário, e estende tal faculdade ao servidor cujo filho, cônjuge ou dependente com de deficiência física, mediante compensação de horário. O dispositivo possui a seguinte redação:
§2º Também será concedido horário especial ao servidor portador de deficiência, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, independentemente de compensação de horário. (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)
§3º As disposições do parágrafo anterior são extensivas ao servidor que tenha cônjuge, filho ou dependente portador de deficiência física, exigindo-se, porém, neste caso, compensação de horário na forma do inciso II do art. 44. (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)
Verifica-se que, por lei, a flexibilização da jornada de trabalho só é concedida ao servidor público cujo filho, cônjuge ou dependente tenha deficiência física e mediante compensação de horário. Tais restrições, entretanto, não se coadunam com a Convenção.
Logo no art. 1º, a pessoa com deficiência é definida como:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
Ou seja, deficiência é o comprometimento da inserção social por motivos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Este conceito não diz respeito somente ao comprometimento físico, mas abarca outros tipos de impedimentos, sem que exista hierarquia entre eles.
Diante disso, a redução da jornada de trabalho do servidor público cujo filho, cônjuge ou dependente com comprometimento unicamente físico é insuficiente diante do atual conceito de deficiência, que abarca os aspectos físico, intelectual, mental e sensorial.
Essa insuficiência revela uma discriminação em relação aos indivíduos com outros tipos de deficiência, na medida em que obstrui o exercício de um direito assegurado na legislação àqueles com deficiência física.
A Convenção define discriminação no art. 2º:
Discriminação por motivo de deficiência significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;
Por adaptação razoável, entende-se:
Adaptação razoável significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais;
Impedir a redução da jornada de trabalho do servidor cujo filho, cônjuge ou dependente com deficiência intelectual, mental ou sensorial é negar uma forma de adaptação razoável de que tais indivíduos dependem para serem inseridos na sociedade em igualdade de oportunidade.
E mais. Considerando que inexiste qualquer hierarquia entre os diferentes tipos de deficiência, viola o princípio da isonomia, previsto no caput do art. 5º do texto constitucional, a proteção exclusiva à pessoa com deficiência física.
Nesse contexto, é imprescindível que a legislação se adeque às normas constitucionais, incluídos os termos da Convenção, e estenda a possibilidade de redução da jornada de trabalho a todos os servidores que possuam dependentes com qualquer tipo de deficiência.
Com base no argumento de violação ao princípio da isonomia, a Procuradoria-Geral da República propôs, em 17 de março de 2015, a ADIn 5.265, distribuída à relatoria do ministro Teori Zavascki, do STF. Em sua argumentação, sustenta a Procuradoria-Geral da República:
Qual seria a justificativa juridicamente razoável, racional ou aceitável para tornar relevante exclusivamente a deficiência física? Inexiste motivação jurídica idônea a justificar o tratamento legislativo privilegiado conferido pelo parágrafo 3º do artigo 98 da Lei 8.112/1990 à deficiência física, sem contemplar as deficiências mental, sensorial ou intelectual, o que configura, portanto, violação ao princípio da isonomia.
Diante disso, requer a declaração de inconstitucionalidade do termo física presente no §3º do art. 98 da lei 8.112/90.
Outro ponto controvertido do §3º do art. 98 da lei 8.112/90 diz respeito à necessidade de o servidor público que possui cônjuge, filho ou dependente com deficiência física compensar o horário de trabalho quando há a flexibilização de sua jornada. Esta exigência não é aplicada ao servidor com deficiência, como determinado pelo §2º do dispositivo.
O §3º do art. 98 da lei 8.112/90, apesar de se referir ao servidor que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência física, não destina a proteção obviamente ao próprio servidor, mas sobretudo ao indivíduo que está sob seus cuidados e que requer tratamento específico.
Isso porque o responsável por um indivíduo com deficiência tem que dar conta de seus compromissos e, ainda, dispensar atenção suficiente com o cônjuge, filho ou dependente que requer cuidados específicos. Assim, a concessão de horário especial é a garantia do interesse da própria pessoa portadora de deficiência.
Ora, o servidor com deficiência deve gozar de maior proteção jurídica do que a pessoa com deficiência dependente de um servidor? Certamente, não.
É uma incoerência do ordenamento jurídico o §2º do art. 98 da lei 8.112/90 proteger uma pessoa independente e detentora de cargo público e deixar desamparado um indivíduo que se encontra sob a dependência e sob os cuidados de outro.
A necessidade de se tutelar os direitos dos servidores públicos responsáveis por pessoas com deficiência se torna ainda mais premente quando o dependente é uma criança.
A esse respeito, merecem destaque os arts. 7º, 23 e 28 da Convenção:
Artigo 7º
1. Os Estados Partes tomarão todas as medidas para assegurar às crianças com deficiência o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças.
2. Em todas as ações relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá consideração primordial.
Artigo 23
Respeito pelo lar e pela família
1. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência, em todos os aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos, em igualdade de condições com as demais pessoas, de modo a assegurar que:
(...)
2. Os Estados Partes assegurarão os direitos e responsabilidades das pessoas com deficiência, relativos à guarda, custódia, curatela e adoção de crianças ou instituições semelhantes, caso esses conceitos constem na legislação nacional. Em todos os casos, prevalecerá o superior interesse da criança. Os Estados Partes prestarão a devida assistência às pessoas com deficiência para que essas pessoas possam exercer suas responsabilidades na criação dos filhos.
3. Os Estados Partes assegurarão que as crianças com deficiência terão iguais direitos em relação à vida familiar. Para a realização desses direitos e para evitar ocultação, abandono, negligência e segregação de crianças com deficiência, os Estados Partes fornecerão prontamente informações abrangentes sobre serviços e apoios a crianças com deficiência e suas famílias.
4. Os Estados Partes assegurarão que uma criança não será separada de seus pais contra a vontade destes, exceto quando autoridades competentes, sujeitas a controle jurisdicional, determinarem, em conformidade com as leis e procedimentos aplicáveis, que a separação é necessária, no superior interesse da criança. Em nenhum caso, uma criança será separada dos pais sob alegação de deficiência da criança ou de um ou ambos os pais.
5. Os Estados Partes, no caso em que a família imediata de uma criança com deficiência não tenha condições de cuidar da criança, farão todo esforço para que cuidados alternativos sejam oferecidos por outros parentes e, se isso não for possível, dentro de ambiente familiar, na comunidade.
Artigo 28
Padrão de vida e proteção social adequados
1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias, inclusive alimentação, vestuário e moradia adequados, bem como à melhoria contínua de suas condições de vida, e tomarão as providências necessárias para salvaguardar e promover a realização desse direito sem discriminação baseada na deficiência.
2. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à proteção social e ao exercício desse direito sem discriminação baseada na deficiência, e tomarão as medidas apropriadas para salvaguardar e promover a realização desse direito, tais como:
(.)
Como se vê, é primordial a proteção à criança com deficiência (art. 7º), ao seu lar e à sua família (art. 23), exigindo-se, para tanto, a garantia pelo Estado de um padrão de vida e de proteção social adequados (art. 28).
A preocupação com a proteção aos interesses da pessoa com deficiência, apesar de ter sido elevada à condição de norma constitucional pela Convenção, não é nova na legislação brasileira.
A lei 7.853/89, logo em seu art. 1º, assegura à pessoa com deficiência o pleno exercício de seus direitos individuais e sua efetiva integração social, em igualdade de tratamento e de oportunidade com as demais, nos seguintes termos:
Art. 1º Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social, nos termos desta Lei.
§1º Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.
§2º As normas desta Lei visam garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade.
Essa garantia é considerada um dever do Estado, conforme o art. 2º abaixo:
Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
No art. 9º, a legislação vai além ao impor à Administração Pública federal tratamento prioritário e apropriado às pessoas com deficiência, para viabilizar o pleno exercício de seus direitos individuais e sociais, bem como a sua completa integração social:
Art. 9º A Administração Pública Federal conferirá aos assuntos relativos às pessoas portadoras de deficiência tratamento prioritário e apropriado, para que lhes seja efetivamente ensejado o pleno exercício de seus direitos individuais e sociais, bem como sua completa integração social.
Não se pode pretender que os direitos à saúde, à educação, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, entre outros, sejam plenamente efetivados se o Estado não permitir que o responsável dispense tempo suficiente com o dependente com deficiência. Afinal, ninguém melhor do que o responsável pela pessoa com deficiência para capacitá-lo à integração social.
Nesse sentido, não há como se admitir que o servidor, cujo filho, cônjuge ou dependente tenha deficiência, compense o horário de trabalho.
Muito menos se a compensação se der pela redução proporcional de vencimentos, na medida em que as pessoas com deficiência requerem cuidados específicos que lhe permitam o desenvolvimento máximo de suas capacidade físicas e de suas habilidades mentais. Este tratamento indubitavelmente possui elevado custo e impor ao servidor responsável pelo sustento de um indivíduo com deficiência a minoração de sua remuneração inviabiliza a sua continuidade e consequentemente a efetivação dos direitos básicos de todo cidadão.
A preocupação com a inserção social da pessoa com deficiência em igualdade de oportunidades com as demais já foi externada pela jurisprudência dos tribunais pátrios. A título de exemplo, cita-se a decisão proferida pelo TRF da 1ª região, no julgamento do AI 51316-33.2013.4.01.0000/DF, que garantiu a redução da jornada de trabalho, sem redução proporcional de vencimentos, à servidora cujo filho tem síndrome de Down.
Também o TRT da 17ª região, no Processo 0000041-80.2014.5.17.0000, discutiu a necessidade de cuidados intermitentes da criança com autismo e deferiu o pedido de redução da jornada de trabalho sem redução proporcional de vencimentos da genitora.
É interessante destacar que raciocínio semelhante já foi aplicado pelo TJ/DF, no julgamento do Processo 2005.01.1.007636-5, em que se analisou a necessidade de redução da jornada de trabalho de servidor responsável por pessoa idosa. Apesar de esta situação não ter expressa previsão legal, foi prestigiado o princípio da proteção à família, inserido no art. 226 do texto constitucional, e reconhecida a condição diferenciada do idoso que o torna merecedor de proteção e de atenção específica por parte da família, da sociedade e do Estado.
Diante de todo o exposto, fica claro que é dever do Estado assegurar todos os meios de inserção social da pessoa com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial, em igualdade de oportunidades com as demais. Essa garantia atinge não só a esfera jurídico-patrimonial da própria pessoa com deficiência, como também a de seus responsáveis.
O art. 98 da Lei nº 8.112/90 deve ser aplicado em consonância com as normas e com os princípios constitucionais, especialmente com o disposto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que asseguram ampla proteção aos indivíduos com deficiências.
Disto decorrem duas consequências: primeiro, o horário especial sem compensação de jornada de trabalho, previsto no §2º do art. 98 da lei 8.112/90, deve ser estendido aos servidores cujo filho, cônjuge ou dependente tenha qualquer tipo de deficiência, seja física, mental, intelectual ou sensorial; segundo, deve ser afastada a restrição imposta pelo §3º subsequente, qual seja, a necessidade de compensação de horário.
Em termos práticos, a efetivação destas garantias se dará por meio da declaração de inconstitucionalidade do termo físico constante no §3º do art. 98 da lei 8.112/90, em sede de controle concentrado, cujo efeito é imediato e vinculante em relação a todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública federal, estadual e municipal.
Enquanto isso, pode o servidor que se encontra em alguma das situações narradas formular requerimento administrativo e solicitar a redução da jornada de trabalho sem redução proporcional de vencimentos. O pleito deve ser instruído com a maior quantidade possível de provas que demonstrem a sua condição de pessoa com deficiência ou de seu filho, cônjuge ou dependente. Na hipótese de indeferimento, deve ser analisada a fundamentação do ato administrativo e avaliada a pertinência de alguma medida judicial.
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*Júlia Pauro Oliveira é sócia da banca Torreão Braz Advogados.