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A tentativa de usar o Poder Judiciário como ferramenta de "moratória" da dívida assumida

Juiz gaúcho faz interessante explanação sobre o grau de endividamento irresponsável do brasileiro e a tentativa de usar o Poder Judiciário como ferramenta de "moratória" da dívida assumida

Magistrado faz interessante explanação sobre o grau de endividamentos dos brasileiros.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Atualizado em 11 de maio de 2015 16:34

Em sentença de Ação Ordinária aforada por pessoa física que contraiu várias dívidas junto às instituições financeiras demandadas, magistrado faz interessante explanação sobre o grau de endividamentos dos brasileiros no geral e o uso do expediente de ações judiciais para tentar decretar a "moratória" das dívidas contraídas.

Nesse contexto, vejamos um trecho da aludida sentença:

[...] Inicialmente, ressalto que dois são os princípios regentes do Direito Contratual, o da Autonomia da Vontade e o da Obrigatoriedade, os quais prescrevem que as pessoas têm ampla liberdade de contratar e se entabularem um contrato ele fará lei entre as partes, ressalvada a quaisquer dos contratantes o direito de exigir o seu cumprimento. Destaco, também, que a avença só poderá ser alterada pelo Poder Judiciário excepcionalmente, sob pena não mais haver segurança jurídica nos negócios.

Em posição contrária, existe o Princípio da Revisão dos contratos, sendo que hodiernamente, a possibilidade de revisão contratual consta no artigo 478 do CC, que apregoa: "nos contrato de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato".

Por sua vez, o CDC também trata do tema e prevê, em seu artigo 51, inciso IV, ser nula de pleno direito cláusulas contratuais que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".

Na prática, o que se vê é que, há mais de uma década, pessoas que se valem do crédito de cheque especial de suas contas, financiam a aquisição de um bem ou se valem do limite de seu cartão de crédito ingressarem com ações buscando a revisão dos contratos firmados alegando a nulidade de diversas cláusulas por petições iniciais padronizadas que, na maioria das vezes, são elaboradas, inclusive, sem o conhecimento do pactuado.

De se ressaltar que a opção pelo débito automático em conta-salário/benefício previdenciário se traduz em benefício ao contratante, pois dispensa outras garantias exigíveis quando da tomada do empréstimo e, via de regra, apresenta juros e prazos vantajosos para o mutuário.

Essas demandas, aliás, são responsáveis por grande parte do abarrotamento do Poder Judiciário.
Há anos, existem propagandas na rádio e internet de profissionais que prometem reduzir o valor das dívidas contraídas com bancos e administradoras de cartão de crédito.

Ou seja, é fato público e notório que existe discussão acerca da validade das cláusulas contratuais estipuladas em contratos com bancos e administradoras de cartão de crédito.

Nessa senda, penso que, nos tempos modernos - em que há tanto acesso à informação -, se alguém se vale de um contrato desse tipo no momento em que deseja obter uma vantagem e, de fato, obtém (usa o crédito, adquire o bem etc.) não pode, depois de já ter recebido a contra-prestação, discutir esse contrato.

Isso porque não se verifica, no caso concreto, a existência dos "supervenientes acontecimentos extraordinários e imprevisíveis" nem de cláusulas "abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade" referidos, respectivamente, pelo CC e CDC como ensejadores da revisão contratual.

O que tem ocorrido é que as pessoas contratam, rapidamente obtêm o crédito, consomem e depois refletem sobre as obrigações que assumiram ou vão se inteirar sobre elas. As pessoas têm pressa em adquirir bens e não pensam em quanto isso vai custar. Por vezes, apenas examinam o valor de cada parcela e não o valor do contrato como um todo. E é óbvio que o crédito fácil e rápido, concedido sem maiores critérios, custa caro, pois o risco de inadimplência é alto.

Diante desse panorama, aqueles que se valeram de uma vantagem não podem pretender, depois de já terem se aproveitado dela, diminuir suas obrigações.

Tem mais. Nas demandas declaratórias/indenizatórias/revisionais ajuizadas, via de regra, é formulado pedido de não inscrição ou exclusão do nome da parte autora em cadastros de devedores ainda que ela esteja inadimplente em relação ao débito principal, parcela da dívida que, obviamente, não há como ser afastada. Aliás, em muitas demandas, é deferido o depósito em juízo do valor que a parte entende ser devido, mas esses depósitos não são feitos na maioria dos casos.

O que se percebe disso é que pessoas estão ingressando com ações revisionais não porque realmente acreditam na tese de abusividade das cláusulas contratuais (até porque os tribunais superiores já afastaram teses desse tipo, pelo menos, em relação a maior parte das cláusulas), e sim para obter uma espécie de "moratória", pois, enquanto o processo tramita, acreditam que não precisam fazer pagamentos ao credor e permanecem com o nome "limpo", conduta nada louvável.

E com a prática de revisar contratos que as pessoas sabiam ou poderiam saber que têm cláusulas pouco vantajosas (mas que decidiram entabular porque tiveram vantagens) e impedir que o nome dessas pessoas seja inscrito em rol de devedores mesmo que elas estejam, de fato, inadimplentes, vai-se criando a "cultura da inadimplência".

Obviamente, quem suporta os prejuízos dessa "cultura" não são os bancos e administradoras de cartão de crédito, e sim as pessoas que se valem ou precisam de crédito e que cumprem suas obrigações, pois os juros e encargos moratórios precisam ser estabelecidos em valores maiores de um modo geral em face do elevado risco da inadimplência.

Assim, há que se ponderar, ainda, que instituições financeiras e administradoras de cartão de crédito visam o lucro e que o bom desempenho de empresas é relevante ao desenvolvimento econômico do País, sendo que o serviço prestado por essas instituições é o empréstimo de dinheiro e o preço desse serviço engloba os juros, taxas e encargos previstos para a hipótese de mora.

Imagine-se a situação de um consumidor que vai a um estabelecimento comercial, decide comprar um produto e paga o preço estipulado pelo vendedor. Depois de refletir, ele chega à conclusão de que o produto estava caro. Ele teria direito de retornar à loja e pedir a diminuição do preço? Evidentemente que não, pois o negócio jurídico foi perfeitamente entabulado. É por isso que as pessoas fazem pesquisa de mercado, buscam a melhor oferta, negociam descontos, esperam por uma liquidação ou até mesmo deixam de comprar o bem.

O mesmo raciocínio deve ser aplicado à compra do serviço de fornecimento de crédito. Antes de obter o crédito, o consumidor precisa pensar se o negócio interessa, se está disposto a pagar pelos juros cobrados, se não é o caso de procurar alguma instituição que financie por preço menor, que cobre taxas bancárias mais favoráveis etc. A mesma cautela que deve existir no momento de adquirir qualquer produto em uma loja, por exemplo, deve existir antes de se pensar em utilizar crédito concedido por terceiro.

Nesse ponto, é pertinente que não se ignora a situação de que muitos consumidores têm pouca instrução, mas isso não justifica que não arquem com as consequências de suas escolhas, pois qualquer pessoa, antes de se envolver em uma contratação acerca de algo que desconhece, precisa buscar informações e se acautelar. Permitir que alguém que não se preparou para uma negociação possa rever a obrigação que assumiu em um contrato é incentivar que as pessoas continuem despreocupadas em entender os negócios nos quais se envolvem. [...]

O desabafo do juiz é oriundo do processo 0000777-92.2013.8.21.0155 em trâmite na 1ª vara Cível de Porto Alegre/RS, sendo que não se aplica a fundamentação especificadamente ao caso em concreto já que esse versa sobre alegada fraude bancária e não revisional de contrato bancário com suposta via de tentar decretar a moratória da dívida.

Todavia, a explanação do magistrado é bem pertinente aos dias de hoje, seja porque aponta o temerário grau de endividamento assumido por muitos, especialmente nos anos de crescimento acentuado da economia brasileira, seja porque isso tem impactado o judiciário com o aumento significativo de demandas sob pretexto de abusividade ou desconhecimento dos termos do contrato havido, quando na verdade muitas vezes essas demandas mascaram a clara intenção de usar do judiciário como expediente para decretar a "moratória" da dívida assumida.

De qualquer sorte, em tempos de crise e frente a essa provocação do intrépido magistrado, corretas duas conclusões:

  • Necessária a reflexão sobre a saúde financeira do brasileiro e a necessidade latente de uma guinada na sociedade num todo para uma reeducação financeira geral que alce o país ao nível de países de 1º Mundo, os quais incentivam o consumo, mas incentivam o consumo consciente para o bem da respectiva economia;
  • Em vias reversas, essa reeducação financeira certamente irá refletir no judiciário com diminuição de demandas despropositadas, desafogando esse para que se ocupe com questões efetivamente necessárias e urgentes dentro de um Estado Democrático de Direito.

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*Marcio Alexandre Cavenague é advogado Gestor de Contratos do escritório Küster Machado - Advogados Associados.

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