Revisão Constitucional e Direitos Sociais
Tramita pelo Congresso Nacional a PEC 157/03, de autoria do deputado Luiz Carlos Santos (PFL-SP), já aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em agosto de 2005, que prevê a realização de uma Assembléia de Revisão Constitucional, formada por deputados e senadores, a ser instalada em 1° de fevereiro de 2007.
quinta-feira, 9 de março de 2006
Atualizado em 8 de março de 2006 12:36
Revisão Constitucional e Direitos Sociais
Jorge Luiz Souto Maior*
Tramita pelo Congresso Nacional a PEC 157/03, de autoria do deputado Luiz Carlos Santos (PFL-SP), já aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em agosto de 2005, que prevê a realização de uma Assembléia de Revisão Constitucional, formada por deputados e senadores, a ser instalada em 1° de fevereiro de 2007. Nos termos do substitutivo do deputado Michel Temer (PMDB-SP), o "quorum" para aprovação do texto "revisional" seria por votação da maioria absoluta dos membros de cada Casa, em votações separadas, em dois turnos de discussão e votação. Ainda nos termos do substitutivo, o texto aprovado deve ser submetido a um referendo popular, no primeiro domingo de junho de 2007, e só depois poderá ser promulgado. Finalmente, a PEC determina a realização da revisão constitucional a cada dez anos.
A este respeito pronunciou-se (em 8 de fevereiro de 2006, na audiência pública da comissão especial da Câmara dos Deputados, que analisa a Proposta de Emenda Constitucional,) o quase ex-ministro do STF, Nelson Jobim, no sentido de que a Constituição Federal deve mesmo sofrer uma "lipoaspiração", para eliminar, do texto, o detalhamento de temas que são meramente de Direito infraconstitucional, como a regulamentação do ICMS. A medida, afirmou, contribuiria para que o debate político se encerrasse no Congresso Nacional e não se estendesse ao Judiciário. Com a autoridade do chefe supremo do Judiciário, Jobim disse que o processo de revisão constitucional é político. "Sou contrário a outorgar-se o poder de elaborar uma Constituição a juristas ou acadêmicos", proclamou. E completou, dizendo: "Isso é função exclusiva da perspectiva política da nação e não, da percepção acadêmica a partir de teses de mestrado".
Mas, disse mais o Ministro Jobim: "Quando se constitucionalizam temas de competência de lei, os senhores [parlamentares] outorgam poder à magistratura", advertiu, sobretudo quando o texto aprovado no Congresso, exatamente, para conseguir aprovação, contém ambigüidade: "Essa ambigüidade transfere, aos juízes, o poder de decidir o que os senhores não decidiram", constatou. "Os senhores deixam um leque imenso de interpretação e, aí, começam a se estabelecer os conflitos, que são decorrentes da falta de entendimento no corpo parlamentar; imaginem isso transferido para a Constituição", alertou.
Coincidência, ou não, recentemente, no STJ, proferiu-se decisão no seguinte sentido:
"Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja". (Trecho do voto do Ministro Humberto Gomes de Barros, do STJ, a respeito da "doutrina" - AgReg, em ERESP n. 279.889-AL).
Duas manifestações aparentemente sem nenhuma ligação e até de certo modo contrastantes, mas que revelam, em comum, um profundo desprezo pelo trabalho acadêmico (doutrinário), como se o estudo não gerasse nenhum benefício para a sociedade e para a construção do direito ou que pudesse ser desprezado pelo simples poder de fazê-lo.
A diferença entre os dois reside no fato de que para o Ministro Jobim, deve-se limitar o poder dos juízes, enquanto para o Ministro Humberto Gomes, o poder dos juízes não deve nenhuma explicação a ninguém, visto advir do poder constitucional de julgar.
Por razões distintas, os dois, no entanto, "data venia", cometem o mesmo equívoco, qual seja, o de desprezarem o trabalho acadêmico e o seu papel essencial na construção do direito. Ao assim agirem, entretanto, cometem um erro ainda maior, o de esquecerem que na solução dos conflitos sociais o juiz aplica o direito, que é um conceito muito mais amplo do que a lei, em sentido restrito, e que, portanto, está muito acima das forças políticas de grupos, ainda mais quando se pensa no direito social.
O entendimento do que vem a ser o direito, ademais, só pode ser obtido pelo estudo metódico e cuidadoso da doutrina, aliado a exames de ordem histórica, sociológica, filosófica e, sobretudo, humanista. Quem sabe só o texto da lei, não conhece o direito. E quem decide um conflito apenas com o argumento do poder, na verdade, despreza o direito e, por conseguinte, desrespeita a própria ordem constitucional que lhe confere tal poder. O poder de julgar não é personalíssimo. Não é atributo da personalidade. É o exercício de uma função constitucionalmente estabelecida, para que se aplique o direito ao caso concreto.
Aliás, equívoco de igual natureza, embora em sentido inverso, é o de considerar que o estudo acadêmico possa desprezar o que se passa na vivência prática do direito que se verifica nos juízos de primeiro grau e nos tribunais, como aludiu, recentemente, o Diretor da Faculdade de Direito da USP, Eduardo Cesar Silveira Vita Marchi, em entrevista publicada na Folha de São Paulo, até porque, não se pode negar, um dos pontos mais marcantes de toda teoria jurídica é o do seu acatamento pela jurisprudência.
O fato é que, ao desprezar a doutrina, para afirmar o seu poder, o juiz, paradoxalmente, acaba limitando o seu próprio poder. E o acadêmico, que não considera as particularidades das condições existenciais de sua teoria, sobretudo nas questões de natureza processual, acaba pregando no deserto.
Além disso, tentar negar, como fez o Ministro Jobim, o poder dos juízes de proferirem de forma independente suas decisões e buscar diminuir a importância da atividade jurisdicional na construção do direito, o que implica valorar as regras em conformidade com a realidade social, podendo mesmo significar interferência nas políticas públicas de Estado, no que tange ao cumprimento dos preceitos contidos nas normas jurídicas, constituem um grave atentado ao Estado Democrático de Direito.
Lembre-se, a propósito, que a divisão de poderes é organizacional. O poder do Estado é um só. O cumprimento dos direitos sociais é dever do Estado e não de uma ou de outra de suas divisões organizacionais. Na inércia de uma deve agir a outra e, principalmente, o Judiciário.
Só o desprezo ao estudo acadêmico, aliás, é que pode motivar manifestações como estas, que não resistem sequer, como se diz no meio rural, "a um dedo de prosa" jurídica.
Analisemos, uma a uma, as manifestações.
Primeiro, a do Ministro Humberto Gomes.
De sua decisão, é possível extrair a idéia de que qualquer decisão vale, desde que tenha sido proferida por um juiz. O juiz decide conforme seu pensamento e ponto. Não deve satisfação a ninguém.
Não é bem assim.
Mesmo tendo poderes para interpretar a lei, o juiz possui como limite o ordenamento jurídico. O juiz pode ultrapassar o limite da lei, mas deve fundamentar, juridicamente, sua decisão. Esta fundamentação se fará com base em linguagem jurídica, extraída da concepção do direito enquanto ordenamento. Desse modo, quanto maior o domínio da linguagem jurídica e, portanto, da idéia do direito como ciência, construção tipicamente doutrinária, maior o leque de atuação do juiz, pela via da jurisprudência.
Claro, a doutrina não é uma exclusividade dos acadêmicos. Uma decisão judicial pode ser uma referência doutrinária, mas assim será não pelo atributo do poder de decidir, e sim pelo domínio da técnica jurídica.
Partindo da idéia do direito como ciência, todos que trabalham com o direito devem conferir a este ramo do conhecimento uma necessária coerência sistêmica e, por conseqüência, somente as decisões que a respeitam, segundo uma avaliação tipicamente acadêmica, são, então, fontes do direito, embora possam ter validade para a solução do caso concreto. Esta autoridade da decisão judicial, para ser reconhecida, doutrinariamente, como fonte do direito, depende, evidentemente, dos argumentos jurídicos utilizados, extraídos da própria lógica do sistema. Não sendo assim, a decisão tem valor como técnica de solução do conflito, mas não tem a força de integrar o sistema como uma de suas fontes. Este, ademais, é o aspecto democrático que envolve a atuação jurisdicional.
Elemento importante, portanto, da consideração da jurisprudência como fonte do direito é o da receptividade.
As decisões judiciais, mesmo as do Supremo Tribunal Federal, embora tenham autoridade para a solução do caso concreto, não se revertem em autênticas fontes do direito, no sentido científico e mesmo da "praxis", quando se reconhece, publicamente, que as razões políticas da decisão sobrepujaram as razões jurídicas, desprezando frontalmente a realidade social e os princípios fundamentais de direito, sobretudo quando ligados aos direitos humanos, agasalhados pelas Declarações e Tratados Internacionais e, por conseqüência, são rechaçadas pelo mundo jurídico (ex. Súmula 330, do TST).
Quando se pensa o direito como dado histórico, principalmente no aspecto constitucional, esta visão é essencial, para que a cultura de um povo, que se consagra como direito fundamental, mesmo sem uma lei que a assegure, seja respeitada, valendo lembrar que lhe devem respeito também os legisladores e políticos em geral.
O fato é que a formação de um "direito jurisprudencial", que tem por base o advento de uma decisão judicial, baseada no mero argumento da autoridade, desprezando os aspectos jurídicos que se lhe apresentam, e que, unicamente pelo prisma da autoridade se impõe no meio jurídico, sendo, assim, seguida de forma irrefletida pelos demais membros do Judiciário e acatada, sem avaliação crítica, pela doutrina, como fonte do direito, impede"a evolução da ciência jurídica, ainda que em termos da "praxis" possa ter algum efeito aparentemente benéfico, representando, por outro lado, a limitação do poder do juiz, pois o mesmo resultado, com bons argumentos jurídicos, poderia ser produzido, contribuindo, assim, para o aprimoramento do direito.
Ademais, olvida o Ministro Gomes de Barros que se deve à doutrina a transmutação do juiz, de mero "escravo da lei" ("la bouche de la loi", como se dizia na época de Napoleão) a verdadeiro "intérprete do direito" com poderes para reconhecer a normatividade dos princípios e fazer valer normas constitucionais no caso concreto, em vez de simplesmente "aplicar um silogismo" típico do positivismo acrítico, que se reduzia a "afirmar que as leis válidas devem ser obedecidas incondicionalmente, ou seja, independentemente do seu conteúdo"1.
O Ministro Gomes de Barros, portanto, volta-se contra a relevante fonte de seu poder, valendo, pois, a crítica construtiva que se faz à sua decisão, para que o Judiciário, como um todo, não se deixe influenciar por uma tal "doutrina", pois que isto representaria grande diminuição do poder dos juízes, afinal, sob o aspecto jurídico formal, as leis e as Constituições não se alteraram de um estágio do direito para o outro, tendo sido as teorias elaboradas, discutidas e consolidadas, que garantiram ao magistrado o poder de "fazer justiça" no caso concreto, ao invés de atuar como "burocrata" ou "batedor de carimbos", como era o juiz na visão positivista clássica do direito.
Vejamos, agora, o argumento do Ministro Jobim.
Ao desprezar a ciência acadêmica, o Ministro Jobim escorregou no conceito fundamental do que é uma Constituição (e pensar que ele é o chefe da instituição guardiã da Constituição), atribuindo-lhe apenas um caráter político.
Durante muito tempo, com base na teoria de Lassale, dizia-se que a Constituição não significava mais que um pedaço de papel. Acreditava-se que as questões constitucionais não seriam questões jurídicas, e sim problemas de ordem política.
Como diz Konrad Hesse2, no entanto, o "Direito Constitucional não está obrigado a abdicar de sua posição enquanto disciplina científica. Se a Constituição jurídica possui significado próprio em face da Constituição real, não se pode cogitar de perda de legitimidade dessa disciplina enquanto ciência jurídica".
O próprio Hans Kelsen incorporou a Constituição ao ordenamento jurídico, fixando-a como fundamento de validade de todas as demais normas e vinculando-a ao dado histórico do qual ela adveio, que seria, assim, a norma fundamental.
Pode-se, é verdade, discutir se na Constituição existem, ou não, normas de caráter programático, que dependeriam, assim, para sua eficácia, da existência de condições econômicas necessárias para sua viabilidade (corrente à qual não me filio), mas não se pode negar que, mesmo sem eficácia plena, as normas constitucionais, sobretudo os seus princípios, possuem força normativa dentro do ordenamento, impulsionando tanto a atividade jurisdicional como a do próprio legislador infraconstitucional.
Como explica Konrad Hesse, "a concretização plena da força normativa constitui meta a ser almejada pela Ciência do Direito Constitucional. Ela cumpre seu mister de forma adequada não quando procura demonstrar que as questões constitucionais são questões do poder, mas quando envida esforços para evitar que elas se convertam em questões de poder (Machtfragen). Em outros termos, o Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, propiciando, assim, o desenvolvimento da dogmática e da interpretação constitucional. Portanto, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung), que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa."3
Além disso, no Estado Democrático de Direito o acesso à justiça e, conseqüentemente, o poder que se confere aos juízes para aplicarem, com independência, o direito (constituído, fundamentalmente, pelas normas constitucionais e seus princípios) é essência da identificação de um povo consigo mesmo, ou, em outras palavras, da preservação das conquistas da humanidade na construção de um mundo em que o respeito aos valores de uma sociedade mais justa não esteja na dependência da vontade política de grupos dominantes.
Uma revisão constitucional, portanto, com base na necessidade de diminuição do alcance das decisões judiciais é duro golpe às conquistas sociais.
Vale acrescentar que ao defender uma proposta de revisão constitucional, fora dos parâmetros fixados pela Constituição, que se faria, pura e simplesmente, em votação por maioria absoluta dos membros de ambas as casas do Congresso (o que facilita, sobremaneira, a retirada de direitos), mais uma vez, o Ministro Jobim (pois que já o fizera por ocasião da publicação do texto da Constituição, ao inserir artigo não aprovado pela Constituinte, conforme reconheceu, recentemente), faz pouco caso da Constituição, e, por conseguinte, do povo brasileiro e da própria Instituição que encabeça.
A proposta por si só, sem adentrar o seu mérito, é inconstitucional, pois uma vez promulgada a Constituição, as suas alterações devem seguir os trâmites fixados na própria Constituição.
A Constituição pode sofrer alteração, seguindo-se os requisitos fixados no seu artigo 60, ou seja, por Emenda Constitucional, que exige votação em dois turnos em cada Casa do Congresso e aprovação por três quintos dos votos dos respectivos membros (§2o.).
Além disso, não se pode por Emenda Constitucional remoer questões tratadas na chamadas cláusulas pétreas, dentre elas os direitos e garantias fundamentais, nos termos, do inciso IV, do § 4o., do art. 60.
A Constituição somente previu possibilidade de Revisão nos termos do art. 3o., do ADCT, o que já se consumara em 1993, com a edição de seis Emendas de Revisão.
Lembre-se, ademais, que além das proibições expressas de alteração da Constituição, menciona a doutrina a existência de limitações implícitas, incluindo-se nestas últimas a impossibilidade de lei infraconstitucional, de qualquer espécie, modificar o procedimento fixado na Constituição para a sua modificação.
Neste sentido, têm-se, curiosamente, as lições do próprio Michel Temer, que é o autor do substitutivo à proposta revisional que tramita no Congresso:
"Finalmente, é proibição implícita aquela atinente ao procedimento de criação da norma constitucional, em nível derivado. Isto porque o constituinte estabeleceu procedimento rígido para a reforma e em grau determinado. Não pode o órgão a quem se atribui a competência reformadora modificar o critério de rigidez estabelecido pelo legislador constituinte"4.
Assim, alterar a Constituição fora dos parâmetros estabelecidos na Constituição não tem outra designação possível: é golpe; um atentado contra a ordem jurídica constitucional.
O Poder Judiciário tem o dever de impedir que isto venha a acontecer e não se colocar em sua defesa, como fez o Ministro Jobim, pois que isto representa deixar a sociedade sem ter como se defender, juridicamente, de um assalto à Constituição.
O Congresso, vale lembrar, não possui poder constituinte originário (ao qual se poderia atribuir uma feição política, mas nunca irrestrita, pois o dado histórico, principiológico, que se integra, naturalmente, ao direito, mesmo sem norma expressa, sobretudo na perspectiva dos direitos humanos, constitui limite intransponível à vontade do próprio constituinte originário e este limite não é político é jurídico). O poder do Congresso, de criar normas constitucionais, é derivado e, portanto, deve seguir os padrões jurídicos fixados na própria Constituição, estando, por isto mesmo, sujeito ao controle de constitucionalidade, que é, como diz Paulo Bonavides, "fruto de uma feliz reflexão acerca da supremacia da Constituição sobre as leis ordinárias"5.
Mas alguém poderia contra-argumentar: e não se poderia instituir uma nova assembléia constituinte ? Sim, mas para que isto aconteça devem existir situações fáticas que requeiram e justifiquem a reformulação do próprio Estado. As razões dessa nova Constituição devem, portanto, ser amplamente discutidas no âmbito da população (na qual se incluem, por óbvio, os acadêmicos).
Uma revisão constitucional não se pode instituir fora dos padrões constitucionais. A proposta neste sentido, no fundo, tenta disfarçar o seu real objetivo de refazer por completo a Constituição, sem obedecer aos parâmetros necessários para tanto.
A alegação de que a Constituição "possui regras demais" é apenas retórica para se escamotear um propósito obscuro. Mesmo desconsiderando a Constituição, se fosse para discutir seriamente a proposta de revisão, seria essencial que os seus defensores colocassem as cartas abertas na mesa e dissessem quais as normas que pretendem extrair da Constituição, para que isto ficasse claro nos debates. Um cheque em branco para o Congresso (com votação de maioria, ainda que absoluta) mexer livremente na Constituição é dos maiores absurdos jurídicos que já se ouviu falar.
De todo modo, mesmo sem afirmar quais seriam os verdadeiros propósitos da revisão, mas desconfiando, deixa-se aqui, desde já, para os revisionistas, um recado: as cláusulas pétreas da Constituição não podem ser alteradas e nelas se incluem os direitos fundamentais, dentre os quais encontram-se os direitos sociais (arts. 6o. a 9o.) da Constituição Federal, pois conforme bem pontua Paulo Bonavides, "só uma hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e democrático de direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada, que tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição (arts. 1o., 3o. e 170) e que, conforme vimos, fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica 'direitos e garantias individuais' (art. 60, 4o., IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais" .
Assim, para se passar por cima da Constituição não bastarão argumentos políticos retóricos, ter-se-á, primeiro, que ter muita força policial para reprimir a defesa corporal pela população de sua Constituição e, segundo, o apoio institucional para a imposição de atos arbitrários contra juízes e acadêmicos que neguem, em concreto, qualquer efeito jurídico a eventual assalto formal aos direitos sociais. Para esta luta, no entanto, é essencial que se unam juristas de todos os níveis (juízes, advogados, procuradores, promotores, acadêmicos). Não há lugar, neste momento, para uma distensão, da qual alguns políticos mal-intencionados de plantão se valerão, para tentar levar adiante esta proposta indecente da revisão constitucional.
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1 Norberto Bobbio, Jusnaturalismo et posititivisme juridique (trad. Michel Guéret), in. Essais de Téorie de Droit. Paris: L.G.D.J., 1998, P.44, apud BUSTAMANTE, Thomasda Rosa de. Argumentação contra legem: a teoria do discurso e a justificaçãojurídica nos casos mais difíceis. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.13.
2 Konrad Hesse, A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1991, p 26.
3 Ob. cit., pp. 26-27.
4 Elementos de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 1997, p. 36.
5 Curso de Direito Constitucional, Malheiros, São Paulo, 1997, p. 275.
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*Juiz do Trabalho, titular da 3a Vara do Trabalho de Jundiaí/SP. Professor livre-docente de Direito do Trabalho, da Faculdade de Direito da USP.
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