O Conselho Constitucional Francês
O primeiro questionamento que surge a quem se propõe a analisar a justiça francesa situa-se na independência e autonomia do Poder Judiciário local. Apesar da anunciada condição, no País, do Executivo, Legislativo e Judiciário, a indagação justifica-se, porque a legitimidade do poder está intrinsecamente vinculada ao voto;
segunda-feira, 6 de março de 2006
Atualizado em 3 de março de 2006 13:41
O Conselho Constitucional Francês
Antonio Pessoa Cardoso*
O primeiro questionamento que surge a quem se propõe a analisar a justiça francesa situa-se na independência e autonomia do Poder Judiciário local. Apesar da anunciada condição, no País, do Executivo, Legislativo e Judiciário, a indagação justifica-se, porque a legitimidade do poder está intrinsecamente vinculada ao voto; assim, muitos franceses têm os juizes como simples funcionários públicos, aplicadores da lei, fundamentalmente, porque os magistrados não necessitam da busca do voto para conquista do poder.
O sistema judiciário da França repousa sobre princípios e sobre o direito escrito, editado pelas leis, tais como os códigos, os tratados, convenções e diretivas européias e internacionais. Faz parte do sistema romano-germânico que privilegia a lei e não reconhece a jurisprudência como fonte do direito.
Diferentemente da Suprema Corte americana ou do Supremo Tribunal Federal, a Corte ou Conselho Constitucional (Conseil Constitutionnel) foi criado somente pela Constituição de 1958 com o fim de zelar pelo perfeito funcionamento das instituições francesas. No País, não havia controle de constitucionalidade judicial, porque o trabalho do legislador, status conquistado em função do voto, não era submetido ao Judiciário, composto por funcionários, não escolhidos pelo povo; havia, então, então, supremacia à lei.
O modelo constitucional francês não segue os princípios de iguais tribunais europeus ou americanos e não tem parâmetro no mundo contemporâneo, porquanto possui funções eminentemente políticas, movimentado através da iniciativa do Presidente da República, do Primeiro Ministro, do Presidente da Assembléia, do Senado ou de sessenta deputados e senadores; pessoa física não tem legitimidade para suscitar o controle de constitucionalidade.
Compete ao Conselho fundamentalmente zelar pela regularidade das eleições presidenciais, pelo bom andamento dos referendos, pelo processo de elaboração das leis e pela constitucionalidade das leis orgânicas; pela adequação de seu conteúdo com as normas constitucionais e pela solução dos litígios envolvendo o pleito parlamentar. A declaração de inconstitucionalidade de qualquer texto legal implica na não promulgação da lei. A constitucionalidade é presunção jure et jure.
Em 1997, o presidente Jacques Chirac sancionou lei que modificava o serviço militar obrigatório antes do prazo de 15 dias, tempo convencionado pelo costume parlamentar para o Conselho analisá-la; oito dias após a promulgação da lei, sessenta congressistas impugnaram-na perante o Conselho Constitucional e não surtiu o efeito desejado, porque vigente a lei, precluso o direito de questionamento.
A "justiça constitucional", à qual se submetem Executivo e Legislativo, impõe respeito aos direitos fundamentais do cidadão, aparecidos na Europa depois da 2ª guerra mundial. O controle da constitucionalidade das leis na França não surgiu com a queda da monarquia, mas timidamente apareceu com a Constituição de 1946 que instaurou a IVª República; foi criado um Comitê Constitucional, que, na verdade, não funcionou, a ponto de entre 1946/1958, só ter sido convocado uma única vez; a despeito disto, foi dado o passo inicial para profundas mudanças no direito constitucional da França.
Apesar dos debates travados, firmou-se o entendimento do caráter jurisdicional do Conselho Constitucional, que se tornou a mais alta Corte do País; no contencioso administrativo a supremacia é do Conselho de Estado (Conseil d'Etat), competente para reexaminar julgamentos de conflitos de causas em que a administração é parte; auxiliar na redação de projetos de leis, nas ordenanças e decretos do próprio Conselho e na interpretação de textos administrativos; a Corte de Cassação (Cour de Cassation) é o mais alto tribunal na ordem judiciária propriamente dita.
A Corte ou Conselho Constitucional, inicialmente desacreditado, porque com funções bastante reduzidas, se impôs na organização judiciária francesa para tornar-se instituição de profundo respeito na defesa da ordem constitucional e dos direitos fundamentais do cidadão. A Corte não se manifesta sobre questão de fato, mas sua atuação limita-se à matéria de direito. A Reforma de 29 de outubro de 1974 ampliou os poderes do Conselho Constitucional.
O controle de constitucionalidade distanciou-se sobremaneira do sistema europeu, no qual o compromisso do juiz é mais com a Constituição do que com a lei; o povo, os juristas e os doutrinadores franceses não aceitam o entendimento de invalidade da lei após sua promulgação; desde a Revolução Francesa, 1789, prevalece o dogma da soberania da lei sem submissão ao controle judicial, porque predominante a compreensão de ser ela expressão da vontade do povo e porque se temia cair no "gouvernement de juges"; as normas vigentes não são sujeitas a reparos pelo Conselho; optou-se pelo controle prévio e concentrado das leis, antes mesmo de sua promulgação.
Na década de 70, o presidente Giscard d'Estaing tentou modificar a competência do Conselho, conferindo-lhe poderes para tomar a iniciativa de controlar a constitucionalidade da lei, mesmo depois de promulgada; não obteve êxito e continuou imperando o sistema de absoluto respeito ao legislador.
O Conselho Constitucional é formado por nove membros, sendo três escolhidos pelo Presidente da República, três pelo Presidente da Assembléia Nacional e três pelo Presidente do Senado. Para não coincidir a mudança de todos os membros, a cada três anos, são indicados três membros. Observe-se que a competência para nomeação não pertence aos parlamentares, mas aos presidentes da Assembléia e do Senado. O presidente do Conselho é nomeado pelo presidente da República e os ex-Presidentes são membros natos do Conselho, apesar de não assumirem seus assentos; Vincent Auriol e René Coty, na IV República, foram os únicos ex-Presidentes que tornaram-se membros do Conselho na condição de ex-Chefes de governo; não se aponta outros casos, porque eles próprios reconhecem, como políticos, a dificuldade que têm para guardar imparcialidade nos julgamentos. Apesar disto, em 1993, não passou a proposta de revisão constitucional para excluir os ex-Presidentes do Conselho Constitucional. Registre-se que os juristas são minorias na composição da Corte.
O mandato dos membros da Corte tem duração de nove anos sem recondução. Há incompatibilidades que impedem a nomeação de qualquer cidadão, a exemplo do exercício de mandato político.
Na França, diz-se que, para cada tipo de litígio, existe um tribunal. É a expressão que consagra o grande número de tribunais e atesta o enorme valor emprestado à especialização. Criaram uma corte especial, denominada de Alta Corte de Justiça, formada por parlamentares e destinada somente para julgar o presidente da República, que responde apenas pelo crime de alta traição; para julgar os membros do governo instalaram a Corte de Justiça da República, composta por três magistrados da Corte de Cassação, completada por parlamentares.
As decisões do Conselho não são sujeitas a recurso de qualquer natureza e devem ser respeitadas por todas as autoridades francesas, na área administrativa e jurisdicional.
A 15ª Constituição francesa, de 1958, dedica-se mais à regulamentação das relações entre os poderes públicos do que à enunciação dos direitos fundamentais. É composta da Constituição propriamente dita, 89 artigos e de textos que a integram: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, 17 (dezessete) artigos e preâmbulo da Constituição de 1946, 18 (dezoito) parágrafos. O preâmbulo trata de direitos econômicos e sociais, completando os direitos fundamentais.
O STF julga em torno de 100 mil casos por ano; a Suprema Corte decide não mais que 100 demandas e a Corte Constitucional francesa soluciona aproximadamente 350 processos. Este fato somado a tantos outros mostra a singularidade do Judiciário brasileiro. Na França, nos Estados Unidos e em outros paises, o governo não engarrafa o tráfego do Judiciário, 80% das causas que tramitam na Justiça, originam-se do poder público; somente o Brasil confere ao magistrado atividades paralelas, além de julgar. Estes e muitos outros argumentos mostram a absoluta impropriedade de comparação do Judiciário do Brasil com o de outros países.
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* Juiz em Salvador
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