Com a palavra, a 7ª câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo
Colegiado irá decidir se é devida a reparação de danos a consumidores de cigarros.
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
Atualizado em 22 de janeiro de 2015 12:47
Está nas mãos dos desembargadores da 7ª câmara de Direito Privado do TJ/SP decidir se é devida a reparação de danos a consumidores de cigarros, em julgamento designado para 28 de janeiro de 2015.
A ação foi proposta há quase 20 anos, pela Associação de Defesa da Saúde dos Fumantes - ADESF contra duas multinacionais que detêm quase 80% do mercado de cigarros no Brasil. O objetivo é a condenação das empresas por danos patrimoniais e morais sofridos por fumantes e ex-fumantes, pela omissão em informar que a nicotina causa dependência física e psicológica do cigarro, bem como pela publicidade enganosa e abusiva que induziram as pessoas a fumar cigarros.
Esse julgamento poderá ter também caráter educativo. Eventual decisão favorável à ADESF será capaz de mudar a forma com que as empresas fabricantes de cigarros colocam seus produtos no mercado. Sabendo que podem ser civilmente responsabilizadas, certamente vão levar informação adequada aos consumidores, além daquelas exigidas pelo poder público com as advertências sanitárias, e pensarão duas vezes antes de fazer publicidade abusiva e enganosa.
Afinal, não é possível se admitir a existência de uma empresa sem risco, que sabidamente coloca um produto danoso no mercado e não se responsabiliza por ele ou pelos danos causados a seus consumidores, obtendo somente o bônus do negócio, e relegando todo o ônus à sociedade e aos cofres públicos. Os gastos com o tratamento de apenas 13 doenças tabaco-relacionadas é três vezes maior do que os tributos federais pagos no mesmo período pela indústria do tabaco1.
Não será a primeira vez que este Tribunal julga a responsabilidade civil de fabricantes de cigarros, e espera-se que os desembargadores sigam a mesma linha de entendimento adotado anteriormente em causas análogas2, em que acertadamente se reconheceu a esponsabilidade civil destas empresas, condenando-as a ressarcir os danos causados aos seus consumidores.
A indústria do tabaco já foi condenada nos Estados Unidos por meio da legislação que trata de Influência Mafiosa e Organizações Corruptas (the Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act - RICO), em sentença histórica proferida em 2006 pela Juíza Gladys Kessler, que condenou 9 fabricantes de cigarros. A sentença afirma que estas empresas enganaram o poder público e consumidores sobre danos associados ao tabagismo, manipulação dos níveis de nicotina, a dependência da nicotina, o marketing pra jovens, os efeitos do fumo passivo, etc.
Esta decisão baseou-se em depoimentos, inclusive de executivos da indústria do tabaco, e em milhares de documentos secretos3 que revelam como a indústria do tabaco vem, há mais de 50 anos, agindo coordenadamente, em nível mundial, para confundir e enganar a opinião pública e governos4.
Da mesma forma, relevante é o conhecimento do Master Settlement Agreement5, acordo pelo qual empresas de tabaco concordaram em mudar seus métodos de propaganda e marketing, ressarcir estados americanos das despesas médicas com o tratamento de fumantes e revelar seus documentos secretos.
"Em 1998, o Master Settlement Agreement, que encerrou um litígio judicial envolvendo 46 Estados da federação norte-americana e a indústria do tabaco, determinou o pagamento por esta de uma indenização de 250 bilhões de dólares, bem como a publicação de milhares de documentos, mantidos em segredo durante cinco decênios. Eles passaram a constituir a Legacy Tobacco Documents Library."6
É fato que o cigarro é produzido, comercializado e consumido licitamente no país, mas a licitude do negócio não autoriza ofensas graves à saúde dos consumidores e não encontra fundamento legal para excluir a responsabilidade civil das empresas rés, principalmente pela atuação historicamente deletéria da indústria do tabaco para a saúde pública, como vetor da epidemia do tabagismo que mata mais de 6 milhões de pessoas no mundo por ano.
Da mesma forma, o livre arbítrio do consumidor para aderir ao fumo não constitui causa de exclusão da obrigação de indenizar, porque é equiparado à livre iniciativa do fabricante para produzir e comercializar um produto altamente nocivo.
No processo da ADESF, foram produzidos dois laudos periciais. Em resumo, a perícia médica traz histórico da evolução das pesquisas científicas com relação à dependência ao fumo e à nicotina, bem como com relação ao tabagismo como fator causal e de risco para várias doenças, e a perícia da publicidade comprova a influência da publicidade no consumo de cigarros.
Restou demonstrado que as rés tinham conhecimento da dependência causada pela nicotina e dos malefícios do tabagismo desde pelo menos a década de 1980, e que, além de nunca inseriram em sua embalagem e publicidade informações sobre o produto cigarro, também atuaram para negar, contradizer e fomentar a dúvida sobre as evidências científicas.
As evidências científicas foram produzidas ao longo dos anos, e ficou também comprovado que o conhecimento foi sendo obtido e acumulado. Assim, não é possível afirmar que "sempre se soube que fumar faz mal à saúde", ou que tais informações são inerentes ao senso comum. Essas informações não chegam na sua integralidade ao homem médio, já que se trata de literatura médica, portanto, não acessível à população, além de ser encontrada em grande parte na língua inglesa, como constatado na perícia.
O uso de advertências sanitárias nos maços de cigarros no Brasil teve início em 1988, mas somente em 1996 as mensagens passaram a ser mais enfáticas e rotatórias, com a informação sobre a dependência causada pela nicotina. Somente em 2001 é que as imagens de advertência com esta e outras informações passaram a constar dos maços.
É preciso que o Judiciário esteja atento para a postura desleal das fabricantes de cigarros, pois além de nunca terem informado seus consumidores sobre os ingredientes e malefícios do cigarro, postura que permanece até hoje, contestam na Justiça7 a obrigatoriedade do uso das imagens e mensagens de advertências determinadas pelo poder público.
É fato que as informações sobre os ingredientes e os malefícios do tabagismo nunca serão suficientes. "O tabaco é caracterizado como produto altamente nocivo à saúde, em relação ao qual nenhuma informação é suficiente para evitar o dano. Portanto, o defeito do produto não advém da falta de informação, mas de sua concepção."8
A perícia reforça a severidade da dependência causada pela nicotina, que supera os índices de dependência de drogas como heroína, cocaína, álcool e maconha, e que apenas uma pequena parte dos fumantes consegue interromper o consumo, mesmo com o desejo de abandonar o tabagismo. Comprova-se que não há livre arbítrio para o consumidor de cigarros, o que é reforçado pela publicação da Associação Médica Brasileira9, em que se afirma que "o fumante não fuma porque quer, e sim porque precisa repor a nicotina".
Consta no preâmbulo da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, tratado internacional de saúde pública (decreto 5.658/06), o reconhecimento de que cigarros e outros produtos de tabaco "são elaborados de maneira sofisticada de modo a criar e a manter a dependência".
As estatísticas revelam que também não há livre arbítrio para a iniciação ao consumo de cigarros. Cerca de 90% dos fumantes começam a fumar na adolescência (OMS), e no Brasil, a média de iniciação ao consumo é de 13,3 anos (CEBRID 2010).
Considerando a iniciação durante o período de infância e adolescência, o tabagismo é reconhecido pela OMS como uma doença pediátrica. A idade de iniciação no tabagismo evidencia se tratar de fator que afasta o livro arbítrio. A questão do livre arbítrio e o nexo de causalidade no tabagismo são searas em que a ciência da Saúde pode e deve contribuir com subsídios ao Poder Judiciário, daí a importância da já mencionada publicação da Associação Médica Brasileira. É informação vital em ações judiciais sobre tabagismo, que se trata de um transtorno mental e de comportamento decorrentes do uso de substância psicoativa, conforme a Décima Revisão de Classificação Internacional de Doenças (CID-10). É a nicotina, encontrada na folha do tabaco, a referida substância psicoativa, pois leva à dependência, afetando o livre arbítrio do consumidor.
Ademais, o livre arbítrio do consumidor para aderir ao fumo não constitui causa de exclusão da obrigação de indenizar, porque é equiparado à livre iniciativa do fabricante para produzir e comercializar um produto que ele sabe ser inevitavelmente perigoso.
A perícia comprova a publicidade como importante fator indutor do consumo, e desconstrói a alegação das rés de que o mercado de cigarros é um mercado maduro, em que a propaganda é feita para consumidores dos concorrentes.
Restou evidente que, mesmo que não seja possível afirmar que todo fumante será dependente do cigarro e que nem todo fumante adoecerá, é severa a dependência causada pela nicotina e há incontestável potencial risco de doenças e morte causadas pelo tabagismo.
O risco da atividade tem que ser assumido. E tem que ser assumido pelas fabricantes de cigarros.
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1 (Clique aqui)2 Apelação Cível nº 379.261.4/5-00. Acesso ao acórdão: (Clique aqui)
Apelação Cível nº 260.828.4-0. Acesso ao acórdão: (Clique aqui)
3 Revelados em diversas ações judiciais norte-americanas.
4 A sentença original pode ser encontrada em: clique aqui. A decisão da Corte de Apelação, de 22 de maio de 2009, pode ser encontrada em: (clique aqui).
5 Para acesso à íntegra: (clique aqui).
6 COMPARATO, Fábio Konder. A Civilização Capitalista. pág. 279. São Paulo. Saraiva, 2013.
7 É o caso da Apelação Cível nº 2008.71.00.026898-0, Relatora Des. Marga Inge Barth Tessler, 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
8 PASQUALOTTO, Adalberto. Revista da Ajuris - Vol. 41, p. 13.
9 "Evidências Científicas sobre Tabagismo ao Poder Judiciário" - Projeto Diretrizes, página 7. Versão digital acessada no link:
(Clique aqui)
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*Adriana Carvalho é advogada e coordenadora jurídica da ACTbr - Aliança de Controle do Tabagismo.
*Claudia de Moraes Pontes Almeida é advogada do IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.
*Maria Inês Dolci é advogada e coordenadora institucional da Proteste - Associação de Consumidores.