A urgência de um novo marco legal para o processo expropriatório no Brasil
É inadiável a necessidade de que seja repensado o vigente e ultrapassado modelo de supressão forçada da propriedade privada pelo Estado.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
Atualizado em 21 de janeiro de 2015 14:32
Se, por um lado, algumas áreas de atuação estatal têm continuamente se modernizado e se adequado aos novos tempos e a toda a dinâmica sócio-econômica envolvida, a exemplo da atividade de regulação do mercado e de fomento de setores socialmente estratégicos, por outro, causa espanto a persistência, no que diz respeito a outras áreas de atuação, de regimes legais editados em contexto histórico tão distante do atual e, consequentemente, amplamente incompatíveis com a ordem jurídica instaurada sobretudo após a edição da Constituição de 1988.
Nesse cenário, destaca-se o decreto-lei 3.365, de 21 de junho de 1941, que, apesar de editado ainda na vigência da Carta Constitucional de 1937, consiste, até hoje, no estatuto básico de regência da atividade estatal expropriatória, seja pela sua aplicação direta aos casos de utilidade pública (como, por exemplo, a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos, ou a construção de distritos industriais), seja pela sua aplicação subsidiária a outras modalidades de desapropriação, a exemplo das que são voltadas para finalidades tidas como de interesse social.
Inegável, portanto, a importância que ainda tem a prerrogativa estatal expropriatória, sem a qual, muitas vezes, seria impensável a satisfação dos mais variados bens de interesse da coletividade necessários para o bem-estar social. Ou, ainda, a efetivação de inúmeros projetos de infraestrutura imprescindíveis no permanente cenário de crescimento e desenvolvimento urbano.
No entanto, uma breve análise histórica evidencia a disparidade entre esse regime jurídico que existe desde o início da década de 40 do século passado (ressalvadas algumas poucas alterações posteriores no texto da norma), e a atual ordem constitucional.
Isso porque a Carta de 1937, outorgada pelo então Presidente Getúlio Vargas, deu início a uma era de poder conservador e autoritário, instaurando-se um Governo forte, militarista e centralizador. Pode-se destacar, por exemplo, como umas das marcas do regime instituído à época, a possibilidade de edição de decretos-lei pelo próprio Presidente da República, que concentrou em suas mãos o poder de governar, excluindo a atuação democrática do Parlamento, das Assembleias estaduais e das Câmaras Municipais.
Já no âmbito da Administração Pública, foi criado o DASP - Departamento Administrativo do Serviço Público, responsável pela reforma administrativa e ao qual foi conferido, por decreto-lei, amplos poderes. Resultou, assim, na instituição de um poder central (equiparável a um "superministério"), cuja atribuição consistiu, principalmente, no controle do serviço público visando à modernização da máquina administrativa.1
Nesse sentido, a corrente ideológica autoritária, que influenciou a implantação do Estado Novo na figura de Getúlio Vargas, assumiu, segundo o relato do historiador BORIS FAUSTO:
A perspectiva do que se denomina modernização conservadora, ou seja, o ponto de vista de que, em um país desarticulado como o Brasil, cabia ao Estado organizar a nação para promover dentro da ordem o desenvolvimento econômico e o bem-estar geral. O Estado autoritário poria fim aos conflitos sociais, às lutas partidárias, aos excessos da liberdade de expressão que só serviam para enfraquecer o país.2
Voltado, portanto, de um lado, para a modernização do país, sobretudo através da industrialização3 nacional, e, de outro, para o controle social, seja pela censura aos meios de comunicação, seja pela elaboração de sua própria versão da história, instaurou-se, à época, um Estado próximo do pensamento organicista, em cujo comando se encontrava o poder pessoal do presidente, então representante da principal instância decisória acerca das resoluções mais fundamentais do país.4
Isso porque a legitimidade do autoritarismo estatal fundava-se na ideia de que o indivíduo era, essencialmente, uma parte do todo social, de forma que o bem de cada um só se realizaria quando assegurado o bem comum5. E, da teoria moral organicista, típica de regimes totalitários, decorre justamente a noção de superioridade intrínseca do bem comum, assegurado pelo Estado, sobre as liberdades individuais.6
Já no que diz respeito especificamente ao tratamento conferido ao instituto da desapropriação, a ordem constitucional instaurada naquele contexto pouco inovou em relação ao regime jurídico anterior, com a importante ressalva de que restou suprimida a exigência de que fosse justa a indenização que caberia ao particular expropriado, remetendo à legislação ordinária a função de regular os limites e o conteúdo do exercício do direito de propriedade7. Foi então editado, nesse contexto "não-democrático", justamente o famigerado decreto-lei 3.365/41, vigente e amplamente aplicado até os dias de hoje.
A norma em questão, formulada em sintonia com os objetivos e valores políticos daquele momento histórico, ainda confere ao Estado, por exemplo, o poder expropriatório para fins de segurança nacional e de defesa do Estado, conceitos jurídicos indeterminados que abrem, enquanto "interesses superiores da coletividade", um amplo espaço decisório para o administrador público. Ao mesmo tempo, é vedado ao Judiciário interferir no "mérito" da decisão administrativa que culminará na supressão da propriedade privada, na medida em que a norma lhe impede de verificar, no âmbito da própria ação judicial expropriatória, a existência e a legitimidade em concreto da hipótese de utilidade pública alegada pela autoridade competente.
O decreto-lei estabelece, ainda, que os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação pelo particular afetado, mesmo que fundada em nulidade do procedimento de desapropriação ou, pior ainda, tenha sido obtida a propriedade por meio de simples esbulho possessório (conhecido como "desapropriação indireta"), sem observância de qualquer processo legal. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em meras perdas e danos8. Não se poderia deixar de mencionar, por fim - ainda que os exemplos aqui não se esgotem -, a ampla liberdade que a norma confere para que o administrador lance mão da imissão provisória na posse, que implica a expulsão antecipada do particular do seu imóvel sem que ainda finalizado o processo que declara a perda definitiva da propriedade.
É clara, portanto, a nota de autoritarismo que até hoje persiste nas práticas expropriatórias sistematicamente reproduzidas pela Administração com respaldo no regramento vigente, o que nos leva à seguinte perplexidade: por que razão um regime legal instituído em contexto histórico tão afastado da noção garantística que atualmente prevalece segue sendo aplicado, tanto por orientação de nossa doutrina, como do Judiciário, com status de estatuto básico do instituto da desapropriação?
Dessa constatação revela-se indiscutivelmente urgente a edição de um novo marco legal que respeite as necessárias garantias individuais, notadamente: (i) a proteção da moradia, enquanto direito ligado à capacidade de auto-realização e desenvolvimento do indivíduo; (ii) a proporcionalidade da medida expropriatória, consistindo na ultima ratio à disposição do Poder Público para o alcance de determinadas finalidades social ou economicamente relevantes; (iii) o direito à justa e prévia indenização, isto é, à verdadeira recomposição econômica do particular anteriormente à efetiva perda da propriedade; e (iv) o direito ao devido processo legal, com todas as garantias daí decorrentes, que incluem desde a possibilidade de real participação e interferência dos indivíduos afetados na decisão administrativa de desapropriar até a possibilidade de que seja reexaminada tempestivamente, na esfera judicial, a legitimidade da medida extrema.
Mas enquanto não sobrevier o novel regime, a única solução que, no momento, parece subsistir consistiria na rejeição de uma mera leitura acrítica e automática do regime decorrente do decreto-lei 3.365/41, que não passe pelo filtro da Constituição, cujas normas e valores devem, como amplamente sabido, irradiar sobre todo o ordenamento jurídico9-10. E a desapropriação, enquanto uma das principais expressões da força estatal e da consequente sujeição do particular, não poderia ser excluída dessa nova dinâmica.
A atuação do intérprete e aplicador da norma, portanto, seja no âmbito da própria atuação administrativa, seja na esfera da intermediação judicial, torna-se fundamental para a compatibilização do único e obsoleto instrumento legal que tem à sua disposição com a série de garantias individuais hoje assegurada ao particular em face do Estado, buscando-se um novo fundamento capaz de legitimar a atuação expropriatória além da simples justificativa que se sustenta na suposta superioridade a priori do interesse público sobre os "meros" interesses particulares ou no poder de império do Estado.
Para tanto, o uso argumentativo da ponderação, somente através da qual é possível alcançar uma solução otimizadora e conciliadora entre os interesses que se opõem em cada caso concreto, revela-se como técnica capaz de legitimar a decisão expropriatória, permitindo que sejam adotadas medidas intermediárias, pelas quais tanto os interesses do proprietário individual como os do ente público podem ser preservados em alguma medida.
Porém, diante da abertura que a análise ponderativa confere ao intérprete, sua racionalidade, por outro lado, dependerá, de forma que reste assegurada uma atuação pública mais justa, isonômica, eficiente e controlável, da adoção de certos parâmetros objetivos e previamente fixados em abstrato, dentre os quais poderíamos listar, por exemplo: (i) a avaliação da natureza em concreto do direito de propriedade envolvido, apurando-se sua jusfundamentalidade, hipótese em que o direito merecerá maior grau de tutela pelo aplicador da norma; (ii) a observância do princípio da isonomia, com enfoque na justa repartição dos encargos e benefícios sociais, sobretudo garantindo-se a adequada compensação dos danos sofridos pelo expropriado; (iii) a verificação do grau de eficiência da medida, isto é, sua vantajosidade econômica, principalmente quando for mais grave o risco de que a resistência dos envolvidos inviabilize o projeto público; (iv) o respeito aos limites impostos à restringibilidade do direito, notadamente à reserva de lei formal, à proporcionalidade da decisão e à preservação do núcleo essencial do direito de propriedade caracterizado pela garantia constitucional à moradia; e (v) a avaliação da natureza e da relevância econômico-social do interesse que se quer atender com a utilização da via expropriatória.
Em resumo, o que se pretende demonstrar, com todo o exposto, é a inadiável necessidade de que seja repensado o vigente e ultrapassado modelo de supressão forçada da propriedade privada pelo Estado, voltado prioritariamente para os interesses tutelados pelo Estado em detrimento, muitas vezes, de direitos individuais consagrados, pela nossa ordem constitucional, como fundamentais.
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1 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. p. 378.
2 Ibid. p. 357.
3 "O Brasil, até então, basicamente agrário e exportador, foi-se transformando numa nação urbana e industrial. Promotor da industrialização e interventor nas diversas esferas da vida social, o Estado voltou-se para a consolidação de uma indústria de base e passou a ser o agente fundamental da modernização econômica. O investimento em atividades estratégicas, percebido como forma de garantir a soberania do país, tornou-se questão de segurança nacional." PANDOLFI, Dulce. Apresentação. In: PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999. p. 10.
4 FAUSTO, Boris. Op. cit. p. 368.
5 "Ao analisarmos as práticas autoritárias do governo Vargas, verificamos que um dos seus principais objetivos era transformar as classes em massa, o individual em coletivo". CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Estado Novo, o Dops e a ideologia da segurança nacional. In: PANDOLFI, Dulce (org.). Op. cit. p. 328.
6 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 82.
7 "Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...) 14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício;" (trecho não grifado no original).
8 Como afirma, nessa mesma linha, José Carlos de Moraes Salles, "(...) é necessário, entretanto, não perdermos de vista o fato de que foi editado ao tempo em que vigorava a carta Constitucional de 1937, outorgada pelo Estado Novo, contendo, portanto, as conhecidas restrições que os regimes ditatoriais costumam impor aos direitos individuais. Essa Carta, ao contrário do que preceituava a Constituição Federal de 1934 (§ 17 do art. 113) e a posterior Constituição da República de 1946 (§ 16 do art. 141), só aludia à indenização prévia em caso de desapropriação e não à indenização prévia e justa, como o faziam aquelas outras e a atual (art. 5º, XXIV, da CF de 1988). Destarte, sob o guante da Carta outorgada de 1937, a justiça da indenização não era preceito constitucional obrigatório, de sorte que o legislador ordinário podia permitir-se a redação de normas legais como a inserta no parágrafo 25 da Lei de Desapropriações". SALLES, José Carlos de Moraes. p. 533-534.
9 Como bem nota André Gustavo Corrêa de Andrade, não se deve "excluir a importância da pesquisa histórica para o processo de interpretação de um texto legal. O exame das diversas etapas que levaram à produção de um texto normativo revela-se, muitas vezes, exercício valioso para a tarefa hermenêutica". ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dimensões da interpretação conforme a Constituição. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. (org.). Constitucionalização do Direito. A Constituição como lócus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 111. Também na Espanha é amplamente discutida a obsolescência da principal norma que rege o regime jurídico expropriatório no país, a LEF - Ley de Expropiación Forzosa, cuja edição remonta ao ano de 1954, anterior, portanto, à edição da sua Constituição democrática de 1978. BAUTISTA, Rafael Fernández. Las Alternativas a la Expropiación Forzosa. Navarra: Editorial Arazandi, 2009. p. 18.
10 Paulo de Oliveira Lanzellotti destaca, a esse respeito, com base nos ensinamentos de Lenio Streck, que a atividade de hermenêutica não existe sem relação social, "devendo a interpretação levar em conta o contexto histórico vivenciado no momento da aplicação do texto ao caso concreto, a fim de se viabilizar a compreensão de seu sentido". BALDEZ, Paulo de Oliveira Lanzellotti. A imprescindibilidade do uso da Constituição na efetiva e justa solução dos litígios. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. (org.). Op. cit. p. 261.
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*Jéssica Acocella é advogada e coordenadora na Área de Administração do BNDES e mestre em Direito Público pela UERJ.