Barbárie e liberdade
A liberdade, como sabemos, é um bem maior e dela não podemos nunca abdicar. Tanto a liberdade individual quanto as liberdades públicas constituem, por isso mesmo, os alicerces do Estado de Direito Democrático, sem os quais ele não se mantém.
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
Atualizado às 08:01
Na segunda metade do século passado e no atual a humanidade alcançou um extraordinário progresso científico. O mesmo, entretanto, não ocorreu com o progresso espiritual, que compreende o respeito à dignidade do homem, à vida, à saúde e ao meio ambiente.
O bárbaro atentado terrorista ao jornal frânces Charlie Hebdo comprova esse fato, devendo ser repudiado, como tem sido, por todos os países civilizados, por todas as religiões e por todos os homens de bem.
A alegada motivação dos assassinos, de vingar a figura do profeta Maomé, objeto de caricaturas consideradas ofensivas, jamais poderia justificar ato tão hediondo, covarde e cruel. A religião muçulmana prega a paz e a convivência pacífica; não, a morte e o terrorismo. Durante oito séculos de dominação na Península Ibérica, os muçulmanos respeitaram o judaísmo e os judeus.
O popular e tradicional jornal sempre teve como característica principal a de caricaturar, com humor, indistintamente e sem qualquer autocensura, chefes de Estado, políticos, pessoas públicas, figuras e líderes religiosos.
A liberdade, como sabemos, é um bem maior e dela não podemos nunca abdicar. Tanto a liberdade individual quanto as liberdades públicas constituem, por isso mesmo, os alicerces do Estado de Direito Democrático, sem os quais ele não se mantém.
Esse tema tão caro a nós, homens livres, me leva a refletir ante a pergunta: a liberdade tem limites?
Penso que sim. Desde cedo, em nossas casas e famílias, e depois na idade adulta, aprendemos que a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro.
E a liberdade do outro inclui, necessariamente, a liberdade de crença e de culto. Nesse contexto, entendo que ofender a religião de alguém, mesmo que através do humor, indiretamente pode atentar contra essa liberdade.
Lembro o lamentável episódio ocorrido há alguns anos, quando, em um programa de televisão, um (mau) pastor evangélico chutou várias vezes a imagem de Nossa Senhora Aparecida, causando justa indignação na comunidade católica.
A reparação pelas ofensas deve ser procurada, nas esferas cível e penal, junto ao Poder Judiciário, nunca pelas próprias mãos, através da violência e do assassinato. Caso as leis de um país não dêem resguardo suficiente aos que se sentem ofendidos, deverá buscar-se o aprimoramento legislativo para tais situações.
A liberdade de expressão e a ausência de censura prévia, assim como a liberdade de crença e de culto, estão previstas em nossa Constituição (CF, art. 5º, IX e VI)
O Código Penal brasileiro pune severamente, em seu art. 121, § 2º , com pena de 12 a 30 anos, o homicídio qualificado pelo recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa da vítima, como aconteceu em Paris. Mas pune também, em seu art. 140,§ 3º, a injúria consistente "na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem", com aumento de um terço se o crime é cometido " por meio que facilite a divulgação... da injúria" (art. 141, inciso III).Como já decidiu o antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, acerca da injúria na extinta Lei de Imprensa, tal tipo de crime pode ser praticado por meio de gestos, símbolos e caricaturas (Revista dos Tribunais, vol. 788, pág. 612).
Nosso Código Penal, no art. 208, caput, prevê igualmente a pena de detenção de 1 mês a 1 ano, para aquele que " escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa", ou ainda " vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso".
A legislação pátria, portanto, se de um lado, sábia e democraticamente, garante a nível constitucional a liberdade de expressão e a ausência de censura prévia, de outro, a nível ordinário, sanciona penalmente os abusos cometidos em nome dessa mesma liberdade, inclusive através da imprensa.
Felizmente, vivemos em um país laico, onde todas as religiões, suas sedes, cultos símbolos, ministros e crentes são respeitados. Católicos, protestantes, espíritas, budistas e ateus convivem harmoniosamente. Árabes e judeus têm comércios frequentemente vizinhos, sem nenhum problema, e amiúde se tornam amigos.
País abençoado, aqui também não existem - e, Deus permita, jamais existirão - terroristas que, sob um falso e de todo inaceitável pretexto religioso, tiram a vida de seus semelhantes, bem maior que nos foi dado pelo Criador.
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* Roberto Delmanto é advogado criminalista em SP.