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Uma modesta ode ao alcaide de São Paulo: o grande herói das ciclovias

O imediato sucesso da adoção das bicicletas como meio de transporte de massa será tal grande que brevemente será necessário criar para elas a lei do rodízio.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Atualizado em 10 de dezembro de 2014 14:37

O prefeito de São Paulo merece todos os encômios porque ele está dando à cidade o maior presente que ela já ganhou desde que José de Anchieta botou seus pés por aqui. As ciclovias que alegremente estão se espalhando pelas ruas e avenidas da nossa capital são tudo o que precisávamos. No meu caso foi uma completa surpresa. Viajei por dois dias em um fim de semana e quando voltei, lá estava uma bela ciclovia na porta do meu prédio. Que maravilha!

Vejam que se fala de surpresa quanto às ciclovias e seu traçado somente para nós os simples mortais. O senhor prefeito e sua equipe certamente já vinham estudando esse projeto desde criancinhas e se tiveram já que fazer algumas adaptações no seu traçado, foi simplesmente por causa da reclamação infundada de alguns comerciantes argentários, que somente pensam em ganhar dinheiro, na contramão do interesse público.

Há um grupo de gente rica inconformada (bando inútil de coxinhas que só serve para pagar impostos), que não deseja abrir mão do luxo dos seus automóveis, lutando contra a modernidade e se mostrando a favor do caos no trânsito e da poluição que aumentam cada vez mais. Mas os inimigos das ciclovias estão errados, basta ver alguns dos benefícios dessa iniciativa sem par (e sem ímpar).

Dizem os inconformados que não foram avisados da chegada das ciclovias para que pudessem defender os seus interesses egoístas. Eu também não sabia de nada, mas presente é assim mesmo. Tem que ser de surpresa. Se este não pode ser devolvido, paciência.

Vejam o meu caso. Beirando os setenta eu serei obrigado a largar uma vida sedentária e passar a usar a bicicleta para o trabalho (ainda não deixei este vício) e lazer. Desta forma minha saúde certamente ficará muito melhor. Não importa se enfrentarei calor, chuva ou frio. É só uma questão de adaptação e de boa vontade.

Vejam lá. Bem cedinho, quando for dar aula nas Arcadas eu pegarei minha bike, descerei a minha rua até a Francisco Matarazzo e virarei à direita rumo ao centro. Dobrarei à direita no Largo do Arouche, pegarei a São Luiz, passarei pelo Teatro Municipal e pronto, cheguei à Faculdade.

Deixarei a magrela no antigo estacionamento dos carros e, como estarei um pouco suado, eu tomarei um banho no chuveiro que o Diretor providenciará, pegarei o meu terno que terei deixado guardado no meu armário e irei feliz para a minha aula. Só preciso sair uma horinha mais cedo, já que de carro eu faço o mesmo trajeto em 15 minutos pelo Minhocão.

Depois da aula eu seguirei para o escritório na Paulista. Tiro o terno, boto outra vez a minha indumentária de ciclista, desço a Riachuelo até o Anhangabaú e pego a Nove de Julho. Terei apenas um probleminha, que é a subida para a Paulista, um pouco íngreme. Sem problemas, o senhor prefeito certamente colocará uma cremalheira na base da Nove de Julho, onde engatarei a minha bicicleta, o que me permitirá chegar ao MASP. Pronto, mais dois palitos e estou no escritório. Deixo a bike no estacionamento, tomo outro banho, troco de roupa (precisarei ter um guarda-roupa variado para os clientes não pensarei que sou desmazelado) e estou pronto para o trabalho. Na volta para casa é só alegria, pois será uma pequena viagem até Perdizes, pegando a Paulista, a Dr. Arnaldo, a Cardoso de Almeida em uma amigável descida e estarei de volta ao lar.

Seu eu fizer o contrário, ou seja, primeiro o escritório e depois a Faculdade, precisarei somente de uma cremalheira para subir aquela ladeirinha que começa no Pacaembu até chegar à Dr. Arnaldo.
Somente vai ficar um pouco complicado o dia em que eu tiver de visitar um cliente no Centro Empresarial que fica pra lá de Santo Amaro. Mas bastará sair umas três horas mais cedo do que o horário da reunião, tomar bastante água no caminho e esperar que o cliente também tenha um chuveiro para que eu possa tomar um banho, caso contrário o odor do recinto poderá não se tornar muito agradável. E também não tem problema com a roupa. Eu sempre poderei levar um terno na minha mochila para me trocar, não me esquecendo de um bom desodorante e de uma colônia refrescante. Nesse dia eu chegarei um pouco tarde em casa, na volta, mas nada que não compense o bem público que deve ser buscado por todos os paulistanos.

Tenho outra solução. Posso ir de bike até a estação Barra Funda do Metrô, entro com ela no vagão, juntamente com centenas de outros adeptos desse insigne meio de transporte e sigo até a Praça da Sé, dando um jeito de subir com o meu veículo as escadas rolantes. Fácil, Fácil. Da Faculdade para o escritório eu posso pegar de novo o metrô na Sé, descer no Paraiso e seguir pela Paulista. Nenhum problema.

Tem outro benefício que os inimigos do senhor prefeito não estão enxergando. Eu não terei condições de receber mais visitas na minha casa, a não ser que elas venham de bicicleta, metrô ou ônibus. Acabaram as vagas de automóveis na rua e os estacionamentos (nada baratos) estão cheios de dia e de noite fecham lá pelas onze horas. Assim sendo, não precisarei tolerar parentes e amigos chatos que vêm filar minha comida e minha bebida, especialmente aquela cunhada chata. Mesmo porque está difícil fazer compras por perto, já que não se pode mais parar de carro na frente das lojas. Ficarei então tranquilo em casa com minha cara-metade assistindo televisão.

Se um teimoso desejar aparecer de carro na minha casa, terá de procurar uma vaga bem longe da minha porta e, se for de noite, quando voltar para pegar o carro, se ele ainda estiver por ali, será certamente assaltado. Bem feito, quem mandou não vir de bicicleta, que poderá amarrar com uma corrente no poste em frente ao meu prédio? Até os meus sogros que estão beirando os noventa podem muito bem fazer isto, vindo lá do Tucuruvi.

Ah, dirão os críticos, as pessoas mais idosas poderão usar os táxis. Claro, é só pagar por eles, pois certamente se multiplicarão pela cidade dado o aumento da procura. Menos carros particulares, mais taxis. Uma simples conta de trocar seis por meia dúzia.

Também poderei ir facilmente de bicicleta para visitar minha filha que mora do outro lado das Perdizes. Vai ser um pouquinho difícil. Todo mundo sabe que o bairro é defeituoso, cheio de ladeiras, metade para cima, outra metade para baixo, não sem bem por que. Poderia ter ladeira somente para baixo. Mas nada é impossível. Eu descerei a João Ramalho até a Apiacás, pegando uma subidinha à esquerda até a Bartira e virando à direita um pedaço. Ali até os carros sofrem para subir em primeira, mas eu já estarei suficientemente forte para que as minhas pernas e o meu coração possam dar conta do recado. Na volta a subida da João Ramalho até a Ministro Godoi poderá me criar certo aumento das batidas do coração, tudo muito bem controlável.

Eu só não entendo muito bem uma coisa. Lá em Brasília o governo central tem incentivado a indústria automobilística, isentando de impostos a compra de carros, multiplicando o crédito e fazendo com que estejam sendo construídas no Brasil algumas das maiores fábricas do mundo. Afinal de contas elas geram muitos empregos. E por aqui o senhor prefeito parece que os tornou os inimigos públicos número um da cidade. Deve ser uma ligeira falta de sintonia. Mas e daí? Eu posso ajudar o governo federal comprando um carro e deixando que ele fique guardado na própria fábrica. Num feriado prolongado ou nas minhas férias, por exemplo, eu posso ir buscá-lo de bicicleta para fazer uma viagem.

Alguém falou que algumas mães que têm filhos pequenos na escola terão dificuldades para levá-los e buscá-los de bike. Muito simples. Existem aquelas bicicletas compridas que podem carregar mais de um passageiro. E também será muito fácil adaptar nelas um side car, aquele acessório lateral que se costumava adaptar nas motos, como se via nos antigos filmes de guerra. Pronto, está resolvido o problema. Ali as crianças pequenas poderão ser facilmente acomodadas e o peso extra será somente um estímulo para que as mamães cuidem melhor de sua saúde.

Ah, mais uma coisa. Lá em cima eu falei do Minhocão, essa monstruosidade que nos foi legada por um prefeito desavisado. Os nossos bravos vereadores decretaram a sua morte no prazo de quatro anos. Felizmente poderemos nos livrar dele. Afinal de contas somente serviu para deteriorar a vizinhança, ainda que hoje seja usado por uma media de seis mil veículos por hora.

Derrubado o Minhocão, quem desejar fazer a ligação leste-oeste, terá as bicicletas, o metrô e os ônibus como substitutos aptos para toda essa gente. E o prefeito com toda a sua engenhosidade terá quatro anos de prazo para arrumar uma solução para o problema, junto com o dinheiro necessário.

Mas o custo de botar o Minhocão abaixo será muito alto. Milhões e milhões de reais, tendo ainda que se achar um lugar para depositar os milhões de metros cúbicos de entulho que surgirão de sua derrubada. Sem falar que o caos no trânsito local fará da confusão das línguas na antiga Babilônia uma brincadeira de criança. Que tal, então, transformá-lo em uma via exclusiva para bikes, toda colorida e ajardinada? De Aricanduva à Lapa serão só umas pedaladas e os moradores não terão mais barulho nem poluição nas suas janelas. Até acho que eu deveria aproveitar agora e comprar por ali uns imóveis na baixa, esperando a grande valorização que certamente se seguirá.

Viva as ciclovias! Com elas São Paulo está se ombreando às cidades mais progressistas da Europa, como Amsterdã e certamente irá superar Nova York como cidade amiga das bicicletas. Se por lá não existe ladeira, estamos dando mais um exemplo de superação das circunstâncias que fazem dos paulistanos verdadeiros vencedores.

O imediato sucesso da adoção das bicicletas como meio de transporte de massa será tal grande que brevemente será necessário criar para elas a lei do rodízio.

O nosso prefeito e seus secretários estão dando o exemplo. Agora somente andam de bike para lá e para cá, por toda a cidade. Quando muito eles a trocam pelo metrô e pelos ônibus. Tchau. Minha magrela está me esperando com o meu cardiologista do lado.

Ave prefeito! Os que vão morrer ensopados nas chuvas vindouras, do coração, de gripe, de frio ou de insolação a bordo de suas bikes vos saúdam.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito da USP.

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