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A liberdade de contratar no âmbito da representação comercial

Faz-se pertinente analisar até que ponto as partes de um contrato podem exercer a liberdade de estabelecer disposições contratuais que divirjam do que prevê a legislação.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Atualizado em 3 de dezembro de 2014 16:19

É sabido que a lei 4.886/65 foi criada para suprir a falta de regulamentação da atividade de representação comercial e que a intenção do legislador sempre se inclinou em prol da tutela dos interesses do representante comercial, em detrimento dos interesses do representado.

Tal orientação protetiva, de caráter social, tem como um de seus alicerces o conceito de hipossuficiência do representante comercial (que se funda principalmente na figura da pessoa natural como representante comercial) e foi incrementado com o advento da lei 8.420/92, e até mesmo confirmado com o tratamento dado às correlatas figuras do agente e do distribuidor pelo CC vigente.

Via de consequência, não obstante o fato de que os contratos de representação comercial, de agência ou distribuição são, na essência (e sem levarmos em consideração, obviamente, as distorções de tais institutos comumente encontradas) contratos civis e comerciais bilaterais firmados entre partes independentes, autônomas, não subordinadas entre si e, portanto, responsáveis cada qual pelo risco de seu próprio negócio, o microssistema legislativo afeto ao tema (a lei 4.886/65, conforme alterada lei 8.420/92, e o CC) contém conceitos e dispositivos visando promover a proteção do lado teoricamente mais vulnerável da relação.

Nessa linha, temos, por exemplo, disposições contidas na legislação mencionada que visam assegurar ao representante (ou ao agente ou ao distribuidor) (i) não somente o recebimento da remuneração contratada (comissão ou, no caso do distribuidor, geralmente um valor de margem de revenda), mas a manutenção de uma certa cadência e constância desses recebimentos e (ii) a obtenção de indenização na hipótese de denúncia imotivada, em patamar não inferior àquele estabelecido por lei.

Diante de tal cenário, faz-se pertinente analisar até que ponto as partes de um contrato de representação comercial, de agência ou de distribuição podem exercer a liberdade de contratar e estabelecer disposições contratuais que divirjam do que prevê a legislação.

Em primeiro lugar, evidentemente, não há como avaliar referido exercício de liberdade contratual de maneira uniforme, não somente em função do dinamismo das relações, mas porque as proteções ao representante, ao agente e ao distribuidor contidas nas mencionadas leis podem ter maior ou menor carga de flexibilidade a depender do contexto fático.

Contudo, é possível, de plano, identificar como uma das claras finalidades da legislação afeta à matéria a de impedir a derrogação por contrato de determinados direitos do representante, agente ou distribuidor expressamente previstos em lei. Assim, é com razoável conforto que podemos concluir como prática fadada à declaração de nulidade o afastamento por disposição contratual, de plano, do direito ao recebimento de indenização na hipótese de denúncia imotivada pela parte contratante. Melhor sorte, certamente, não terá a disposição contratual que estabelecer para tal indenização um critério de cálculo do qual resulte valor inferior ao que seria devido caso a regra da lei fosse aplicada.

Por outro lado, a despeito do contexto acima considerado, ainda podemos enxergar alguns cenários dentro dos quais a livre manifestação da vontade das partes poderá se sobrepor à inclinação protecionista inicial (e que vão além das questões sobre as quais a lei nada dispõe), especialmente nos casos em que a representação comercial, o agenciamento ou a distribuição são exercidos por pessoas jurídicas.

Podemos tomar como exemplo a possibilidade de composição acerca do valor indenizatório final a ser recebido pelo representante na hipótese de denúncia imotivada. A despeito da existência de um patamar mínimo legalmente estabelecido para a referida indenização, e ainda que este patamar (ou outro, superior) esteja previsto em contrato, nada impede que, por ocasião do efetivo recebimento da indenização, as partes legitimamente acordem no sentido de que o valor de fato pago pelo representado será inferior.

O representante é o proprietário do crédito decorrente da indenização, o qual, por sua vez, é um direito privado e disponível, sendo perfeitamente defensável a validade e eficácia de um acordo firmado entre representante e representado que implique, como efeito final, a renúncia ao recebimento de parte de tal crédito.

Note-se que não se trata, aqui, de renúncia do direito à indenização ou ao patamar indenizatório mínimo estabelecido por lei, e sim, uma vez adquirido o referido direito (o que só ocorre com a denúncia imotivada do contrato pelo representado), de manifestação livre de vontade das partes concretizada por meio de acordo que tem como efeito prático a concordância do representado com o recebimento de indenização inferior àquela que seria devida. O acordo gira, portanto, em torno do crédito e não do direito à indenização propriamente dito.

Podemos emprestar este viés de raciocínio, que procura validar o exercício da liberdade contratual no âmbito das relações contratuais sujeitas a regramento cogente, para a avaliação de outros cenários atinentes à representação, agência ou distribuição, tais como, por exemplo, discussões envolvendo a validade da quitação escrita dada pelo representante ou a eficácia jurídica da alteração de percentuais de comissões acordada por escrito entre agente e agenciado, praticada sem oposição por anos a fio.


Contudo, em qualquer caso, devemos considerar a situação concreta em análise, já que as peças do conjunto fático (por exemplo, o grau de interdependência entre as partes, o arcabouço documental em que funda a relação, a duração do contrato e os valores envolvidos) são elementos essenciais na determinação da plausibilidade e validade das decisões e ações das partes.

O ato de contratar no âmbito das relações jurídicas de representação, agência ou distribuição deve ser encarado como um exercício de equilíbrio entre as limitações impostas pela legislação relativa ao tema, a vontade e a real intenção das partes e a necessidade de fomento negocial, objetivando soluções que atendam ao espírito da lei sem inviabilizar as relações comerciais e o mercado correspondente.

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*Rochelle Ricci é advogado do escritório Machado Associados Advogados e Consultores.

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