O instituto da desconsideração da personalidade jurídica - "Disregard Doctrine" (ou "disregard legal entity")
As inseguranças do empresariado brasileiro diante de divergência na interpretação dos requisitos necessários à aplicação do Instituto da "Desconsideração da Personalidade Jurídica" no âmbito civil, tributário, consumerista e ambiental brasileiro. Vale a pena correr o risco?
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
Atualizado às 08:20
A teoria clássica do direito societário estabelece que os direitos e as obrigações de uma sociedade (neles incluídos os ativos da empresa) não se confundem com os de seus sócios (os bens pessoais de seus sócios).
"Os bens particulares dos sócios, uma vez integralizado o capital da sociedade por cotas, não respondem pelas dívidas deste, nem comuns, nem fiscais, salvo se o sócio praticou ato com excesso de poderes ou infração da lei, do contrato social ou dos estatutos" (RTJ 85/945)
A desconsideração da personalidade jurídica quebra esse paradigma pois afasta a "proteção" dada pelo escudo da personalidade jurídica da sociedade possibilitando que os sócios ou os administradores a substituam no pólo passivo de uma relação processual e assim sejam diretamente responsabilizados pelos atos da empresa.
A decisão não gera qualquer efeito em relação à sociedade em si, dita "desconsiderada", que continua sendo a responsável principal da obrigação.
Sabe-se que a pessoa jurídica tem capacidade própria; emite declaração de vontade e contrai obrigações respeitados os termos da lei e do contrato; responde civilmente por elas, inclusive com o patrimônio próprio.
Contudo, os atos que caracterizam estas declarações de vontade e a assunção de obrigações são praticados por seus gestores, representantes e administradores ou pelos próprios sócios.
O Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica está previsto no artigo 50 do CC.
De acordo com este artigo, o Juiz poderá decidir, a requerimento da outra parte, ou do Ministério Público, se for o caso, que os efeitos de determinadas relações obrigacionais sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Mas o poder discricionário do Magistrado não é ilimitado. A própria lei estabelece que a desconsideração só é cabível e assim pode (veja-se que o preceito não é congente) ser reconhecido pelo Judiciário apenas (e tão somente) quando houver abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. Nesses casos excepcionalíssimos a regra geral ainda assim pode (não deve) ser escanteada, fazendo com o que os efeitos de certas e determinadas obrigações (não são todas) da sociedade sejam estendidos aos bens particulares dos sócios ou dos administradores.
A questão é que os Tribunais estão dando interpretações divergentes ao conceito de "abuso".
Uns entendem que o abuso é caracterizado apenas quando comprovado o "desvio da finalidade social da empresa com uso indevido ou destino diferente daquele previsto no contrato social ou no estatuto", outros quando houver a "prática de atos irregulares pelos sócios ou administradores", e, finalmente, quanda há evidente "confusão patrimonial, com clara dificuldade em se distinguir ou dividir entre os patrimônios da pessoa jurídica e do beneficiário.
Os Tribunais Estaduais têm dado interpretação às premissas do artigo 50 de forma extensiva, ampliando a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica também aos casos de "dissolução irregular da Sociedade", ou seja quando esta se torna inativa, sem que tenha sido procedida regularmente a sua baixa (são as sociedades em sommeil esquecidas). Entretanto, este não é o entendimento consolidado em diversos arestos do Superior Tribunal de Justiça, que tem aplicado taxativamente os requisitos dispostos no artigo supra, ou seja, desconsiderando a personalidade jurídica de empresas apenas (e tão somente) nos casos em que restar comprovado o "desvio da finalidade" ou a "confusão patrimonial".
A divergência de entendimentos entre os Tribunais Estaduais e o STJ é algo que traz verdadeira insegurança ao empresáriado pátrio, quais as hipóteses em que poderá (novamente, o preceito não congente) ser pessoalmente responsabilizado por atos praticados pela pessoa jurídica.
Essa insegurança é ampliada diante da divergência dos requisitos necessários nas decisões de desconsideração lançadas com base no CC e no CDC e, ainda, na lei antitruste (que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a Ordem Econômica).
Tais legislações são amplas e prevêm que a desconsideração será aplicada sempre que houver "abuso de direito", "excesso de poder", "infração à lei", "fato ou ato ilícito" ou "violação dos estatutos ou contrato social", "falência, estado de insolvência", "encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados" todos caracterizados como atos de má gestão ou administração irregular.
Neste mesmo sentido, o artigo 4º da lei de Crimes Ambientais, que trata das sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, dispõe sobre a responsabilidade a lesões causadas ao meio ambiente, e afirma que "Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente", ampliando consideravelmente as hipótese de incidência desse excepcionalíssimo Instituto.
O mesmo caminho é trilhado pelo Código Tributário Nacional, que prevê, como hipótese passível de responsabilização pessoal dos sócios, diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias, os atos praticados com "excesso de poder", "infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos". Tendo o assunto sido sumulado pelo STJ (súmula 435) dispondo que haverá desconsideração nos casos de "dissolução irregular da sociedade", que poderá, inclusive, ser presumida caso a empresa deixe de funcionar em seu domicílio sem comunicação aos órgãos competentes o novo endereço de sua sede.
Ademais, dentre as alterações do novo Código de Processo Civil, pendentes de aprovação pelo Congresso Nacional, está prevista a manifestação da pessoa jurídica e/ou dos sócios, no prazo de quinze dias, quando houver pedido expresso de desconsideração, exercendo, portanto seu direito de defesa e do contraditório, antes que qualquer constrição seja deferida. Mais ainda, faculta-se ao sócio ou ao adminitrador, o direito de honrar a obrigação, de quitar a dívida, reservado, em direito de regresso, executar, nos próprio processo, a sociedade (que permenece sempre como principal responsável pelo cumprimento de suas obrigações).
Outro instituto que, embora sem previsão legal, vem sendo utilizado é a desconsideração da personalidade jurídica dita "inversa", utilizada basicamente para coibir o desvio de bens. Tal instituto é comumente utilizado no caso de cônjuge que transfere os bens para a sociedade com o fim de fraudar a partilha na hipótese de separação ou sucessão.
Outro ponto que ainda causa muita discussão é a aplicação do Instituto da desconsideração a todo um Grupo Econômico, a fim de alcançar a pessoa jurídica fraudadora, acobertada pelas demais sociedades agrupadas.
Verifica-se, portanto que inexiste um conceito propriamente definido para englobar todas as áreas do Direito e que possa ser utilizado pelo empresário, a fim de analisar seu risco antes de constituir uma empresa. Ao contrário, este deve ter ciência da divergência de entendimento dos Tribunais e dos requisitos utilizados para nas hipóteses de desconsideração, no âmbito civil, do consumidor, tributário e ambiental, e agora matrimonial.
O empresariado brasileiro, principal meio de geração de empregos e crescimento da econômia do país, que se depara com as notórias e inúmeras obrigações para manter o seu negócio regular, sejam elas de natureza tributárias, trabalhistas ou intrínsecas ao mercado, tem ainda que conviver com o risco de ver seu patrimônio pessoal ameaçado.
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* Ana Gabriela Nunes integra a equipe do Contencioso Cível do Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados.