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Tráfico de órgãos e sua tipificação legal, por Eudes Quintino e Pedro Quintino

Tráfico de órgãos e sua tipificação legal

A OMS já detectou que cerca de 5% dos órgãos utilizados nas intervenções provêm do mercado negro e a incidência maior impera nas comunidades mundiais mais pobres.

domingo, 12 de outubro de 2014

Atualizado em 10 de outubro de 2014 13:34

Assim como o tráfico de drogas, o comércio clandestino de órgãos humanos para fins de transplantação, é uma prática ilegal. A Organização Mundial de Saúde já detectou que cerca de 5% dos órgãos utilizados nas intervenções provêm do mercado negro e a incidência maior impera nas comunidades mundiais mais pobres, cujos cidadãos são obrigados a vender seus órgãos.

Noticia a imprensa que em Minas Gerais, alguns médicos formavam uma equipe para realizar a remoção e transplante de órgãos irregularmente, sendo que em um dos casos resultou em diagnóstico forjado de morte encefálica.

A lei 9.434/97, que trata da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano em vida ou post mortem para fins de transplante, define, também, o diagnóstico de morte encefálica. A doação de órgãos e tecidos no Brasil é feita inter vivos, modalidade em que qualquer pessoa capaz poderá consentir e, na impossibilidade, seu representante legal, desde que se trate de órgãos duplos (rins, por exemplo) ou partes renováveis do corpo humano, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge, parentes consanguíneos até o quarto grau, ou qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. Sempre e sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4.º da Constituição Federal e da lei 9.434/97, em seu art. l.º.

A doação post mortem, por seu turno, será efetivada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, da linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo a lei que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. Permanece, no entanto, o batimento cardíaco, imprescindível para a retirada de órgãos ou tecidos. A lei 9.434/97 definiu o conceito de morte, ajustando-o à falência encefálica e não à vida biológica, regida pelo batimento cardíaco. Os românticos antigos levavam a mão no peito para vigiar as batidas do coração. Hoje, impera o racionalismo. Sem atividade encefálica, nãovida. De nada adianta, portanto, o pulsar do coração se a vida abandonou o corpo.

Em ambas as situações, exige a lei que o ato seja representativo da solidariedade humana, revestido sempre de gratuidade. Do contrário, estaria aberta a possibilidade de se realizar comércio com órgãos e tecidos humanos, fazendo com que muitos dos chamados investidores sejam atraídos pela banalização do ser humano. Às vezes, vê-se anúncio em que uma pessoa coloca à venda, alegando necessidade financeira, um de seus rins, deixando o endereço para a negociação. Cogitou-se, através de projeto legislativo, possibilitar ao presidiário servir de doador de órgãos e em troca receberia comutação de sua pena, São situações que confrontam com o princípio ético que reveste o ser humano na sua dignidade e desprestigiam a própria raça humana. O homem, conforme se vê, continua sendo lobo do próprio homem, na expressão de Thomas Hobbes1.

A rigorosa exigência legislativa tem seu fundamento no controle do procedimento médico, que com base no princípio da Justiça, proporciona a qualquer pessoa o direito de receber órgãos ou tecidos humanos, independentemente de sua situação financeira. Do contrário, somente os favorecidos teriam acesso ao procedimento regenerativo. Mesmo assim, com tamanha rigidez, o sistema vem sendo burlado e órgãos são desviados para pessoas que não se encontram listadas ou, se inscritas, não ocupam lugar de preferência.

Para as pessoas leigas, o ato, por si , de desviar órgãos humanos, constitui crime de furto. O verbo subtrair fala mais alto e dá conta da realização típica da conduta. Ocorre, no entanto, que o tipo penal faz referência a "coisa alheia móvel" e, principalmente que seja bem circulante no comércio, com valor estipulado pelas regras da oferta e procura. O órgão humano é bem extra commercium, insusceptível da realização da conduta típica descrita pelo legislador penal. Atípica, portanto, a conduta.

Desloca-se, então, para fins de adequação típica, para o ilícito previsto no artigo 211 do Código Penal, in verbis:

Art. 211 "Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele".

Parte do corpo humano vem a se aquela destacada da parte principal, mas que continua ainda sob a propriedade de seu titular, a quem caberá consentir na realização da doação. "Portanto, salienta Diniz, é possível juridicamente a disposição gratuita do corpo humano, renováveis (leite,e sangue, medula óssea, pele, óvulo, esperma, fígado) ou não, para salvar a vida ou preservar a saúde do interessado ou de terceiro ou para fins científicos ou terapêuticos."2

Ocorre que o tipo penal sub studio, remanescente que é da própria origem do Código, tem o elemento subjetivo direcionado para o dolo genérico, consistente em praticar ação que constitui a materialidade do delito, sendo irrelevante o fim pretendido pelo agente. A classificação legal, desta forma, rejeita também a norma do artigo 211 do Código Penal.

A lei 9434/97, que cuida da disposição de tecidos e órgãos do corpo humano, traz elencados nos artigos 14 a 20 vários tipos penais referentes a condutas relacionadas com remoção, compra, venda, transporte, guarda ou distribuição de órgãos humanos, assim como realização de transplante ou enxerto sabendo que as partes do corpo humano foram obtidas em desacordo com o dispositivo da lei.

Na realidade, com uma linguagem mais apropriada, o legislador desconfigurou o verbo subtrair, ligado diretamente a um bem com valor econômico e o substituiu por outro, mais técnico e específico para a atividade ilícita, que é o ato de remover. A origem etimológica dá o sentido de mover para trás, quer dizer, ajeitar para retirar algo de algum lugar, tirar, pegar, suprimir, apartar.3

Por se tratar de uma lei especial, cuidando especificamente de uma conduta humana, há relação de especialidade e, consequentemente, a lei especial afasta a incidência da norma geral. É a regra lex specialis derrogat lex generali. O novo tipo penal passa a ser mais completo e atende prontamente a necessidade legal. "Considera-se especial, adverte e ensina Toledo, (lex specialis) a norma que contém todos os elementos da geral (lex generalis) e mais o elemento especializador. Há, pois, em a norma especial um plus, isto é, um detalhe a mais que sutilmente a distingue da norma geral".4

O próprio Código de Ética Médica, em seu artigo 46, veda ao médico "participar direta ou indiretamente de comercialização de órgãos ou tecidos humanos".5 Compreende este dispositivo o ato cirúrgico da remoção.

Parece-me que, desta forma, para o ilícito que se pretende perquirir, relacionado com a remoção de órgãos humanos, a lei especial traz com sobras definições e condutas tipicamente adequadas, ajustando-se ao pensamento da biotecnologia atual.

É de conhecimento geral o desmedido interesse pelo comércio de órgãos, tecidos e partes do corpo humano que, colocados no mercado, atingem considerável soma em dinheiro. É uma verdadeira empreitada criminosa e, para tanto, conta com a participação ativa de alguns profissionais da saúde que deveriam zelar de forma eficiente pelo processo de captação e inserção dos órgãos, obedecendo, rigorosamente, a listagem dos que se encontram na filamuito tempo aguardando o procedimento e, com preferência, aqueles em situação mais precária de saúde.

Berlinguer e Garrafa, com muita propriedade, visando preservar a corporeidade da pessoa, perguntam: "Por que houve este impulso, que parece quase irresistível, à propagação e à legalização de um comércio que há apenas dez anos provoca tanta repugnância? Por que tentam alterar o significado milenar e solidário da palavra doar, que nos dicionários é definida como "dar espontaneamente e sem recompensa" ou "transmitir gratuitamente bens a um outro"6?

O ato de doar transcende a própria pessoa humana. Tanto é verdade que, na doação post mortem é vedado escolher o beneficiário. Pode ser qualquer pessoa, desde que figure na lista de espera, inclusive seu inimigo. reside a grandeza do ato. A intermediação desconfigura a espontaneidade e transforma o corpo humano em coisa negociável no mercado, cantochão da mediocridade humana.

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1Homo homini lupus, citação contida na obra Leviatã, Hobbes imagina o homem como um animal irrequieto, em de guerra contra todos.

2Diniz , Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 3. Ed. São Paulo. Editora Saraiva, 2006, p. 309.

3Verbo latino removeo, removere.

4Toledo, Francisco de Assis, Princípios básicos de direito penal. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 51.

5Resolução CFM 1931, de 17 de setembro de 2009.

6Berlinguer, Giovanni; Garrafa, Volnei. A mercadoria final. Tradução de Isabel Regina Augusto. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 149.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.




* Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, advogado, mestrando em Direito pela UNESP/Franca.


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