Na esquina da Ipiranga com a avenida São João
De um lado, aqueles que depositam sua última esperança em encontrar uma moradia na selva de pedra. De outro, o Estado em defesa do constitucionalmente tutelado direito de propriedade.
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Atualizado às 08:05
Nesse mês de setembro, acompanhamos, mais uma vez, um cenário que, infelizmente, tem se repetido com alguma frequência: o conflito entre moradores sem teto que ocuparam um hotel abandonado, de propriedade privada, no centro da capital paulistana e policiais militares que estavam a garantir o cumprimento de mandado judicial determinando a reintegração da posse. De um lado, aqueles que depositam sua última esperança em encontrar uma moradia na selva de pedra. De outro, o Estado em defesa do constitucionalmente tutelado direito de propriedade.
Sem entrar no mérito da análise histórica do tema e de eventuais desvios de ação cometidos por cada um dos lados, simplista e maniqueísta seria meramente buscar, nessa disputa, vítimas e culpados. O Poder Judiciário, chamado a intermediar o conflito de interesses, aplica a lei positivada, determinando o cumprimento das medidas judiciais cabíveis. A força policial cumpre seu dever de assegurar a ordem e a estabilidade social. O particular busca preservar seu direito de propriedade, não lhe sendo exigível qualquer ato de liberalidade em sentido contrário. E o morador de rua "invasor" luta pelo seu último refúgio.
Na verdade, o cerne do debate é prévio e muito mais profundo e complexo. Tal conflito, que opõem grupos sociais contrastantes, nada mais é do que uma consequência - infelizmente - quase que inevitável das distorções históricas ligadas aos mecanismos de aquisição do direito de propriedade fundiária no Brasil ocorridas desde o período colonial1, que persistem diante da ineficiente e ainda precária política estatal de gestão da expansão e ocupação urbanas, agravadas tanto pelo intenso processo de adensamento e verticalização das cidades, como pela notória exclusão de determinados grupos do processo de desenvolvimento urbano.
Isso porque raros são os esforços governamentais que buscam soluções concretas e definitivas para o histórico dilema social da carência de habitação popular urbana, que, colocada em dados, traduz-se, só na municipalidade de São Paulo, em 6.765 indivíduos em situação de rua e 7.713 em centros de acolhida da capital, segundo o último censo de 20112. São dados, assim, que tornam indiscutivelmente prioritária a busca estatal por instrumentos efetivamente capazes de reduzir o grave déficit habitacional.
A realidade contrasta, porém, com os inúmeros mecanismos jurídicos que vêm sendo contínua e legalmente colocados à disposição do agente público para enfrentar tal cenário de forma efetiva.
Só o Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) estabelece vinte diferentes mecanismos de regulação urbana voltados principalmente para o desenvolvimento da política habitacional3, dentre os quais destacam-se instrumentos voltados para o fomento da colaboração privada na satisfação das necessidades sociais, substituindo-se uma atuação rigorosamente interventora por uma relação de parceria entre Administração Pública e agentes privados, tais como: (i) a instituição de zonas especiais de interesse social - ZEIS; (ii) a concessão de uso especial para fins de moradia; (iii) a criação de operações urbanas consorciadas; e (iv) a legitimação da posse4. E, como última ratio, a lei estabelece, ainda, com respaldo constitucional, a possibilidade de serem desapropriadas aquelas propriedades que não atenderem, nessa ordem, ao parcelamento, à edificação e à utilização compulsórios.
No próprio município de São Paulo, por exemplo, a elaboração do Plano Diretor Estratégico (lei 13.430/2002) - que estabelece, no seu art. 81, como uma das ações estratégicas da Política Habitacional, a aplicação, nas ZEIS, dos instrumentos relativos à regularização fundiária e, quando couber, a concessão especial para fim de moradia, previstos no Estatuto da Cidade (inciso VII) -, culminou, com a posterior edição da lei 13.885/2004 (lei municipal de Uso e Ocupação do Solo), na criação de quatro categorias de ZEIS, a saber: (i) áreas ocupadas por favelas ou loteamentos precários, para regularização fundiária (ZEIS 1); (ii) áreas desocupadas, para provisão habitacional (ZEIS 2); (iii) áreas com concentração de cortiços e oportunidades imobiliárias para produção de habitação social, localizadas em regiões providas de infraestrutura (ZEIS 3); e (iv) áreas desocupadas em regiões de preservação ambiental, necessárias ao desadensamento de loteamentos e favelas a serem urbanizados na proximidades (ZEIS 4)5. A citada Lei de Uso e Ocupação do Solo do Município de São Paulo define, assim, no art. 136, os tipos de imóveis que se enquadram especialmente nas definições de ZEIS:
I. os lotes e glebas não edificados; II. os terrenos ocupados por favela; III. os imóveis utilizados como cortiço; IV. as habitações coletivas precárias; V. os conjuntos habitacionais irregulares ocupados por moradores de baixa renda; VI. as edificações deterioradas; VII. os lotes e glebas com área superior a 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) nos quais o coeficiente de aproveitamento não atingiu o mínimo definido para a zona onde se situam, excetuados os terrenos utilizados por postos de abastecimento de veículos e por equipamentos urbanos de infraestrutura que não exijam edificações; VIII. as edificações em lotes ou glebas com área do terreno superior a 500m² (quinhentos metros quadrados) e que tenham, no mínimo, 80% (oitenta por cento) de sua área construída desocupada há mais de cinco anos, excetuados os casos em que ações judiciais incidentes sobre o imóvel tenham impedido ou impeçam a ocupação; IX. os parcelamentos do solo e loteamentos irregulares ocupados por moradores de baixa renda.
O intuito da norma paulista foi, assim, tornar estas áreas mais atrativas para o setor privado, facilitando as parcerias com o Estado no provimento de habitação popular6. Conforme destacam RENATO CYMBALISTA e ISADORA TSUKUMO, a partir desse contexto:
Havia a expectativa de que a aplicação das ZEIS, em conjunto com outros instrumentos, contribuísse para a ampliação da oferta de imóveis, a preços que viabilizassem um número maior de empreendimentos, a custos compatíveis com os programas habitacionais em implantação no Centro de São Paulo7.
Já na cidade de Porto Alegre, no ano de 2002, foi instituído o denominado "urbanizador social", com o objetivo de se criarem incentivos para o empresário privado, atraindo-o para uma parceria na atividade de parcelamento regular do solo. Esse processo se deu através de uma relação privilegiada com o empreendedor privado, criando-se um procedimento administrativo diferenciado voltado para a admissão de vantagens na sua tramitação e na flexibilização dos padrões urbanísticos. Tais prerrogativas só seriam legítimas, porém, na medida em que o parcelamento fosse destinado especificamente à população de baixa renda. Ou seja, em contrapartida aos benefícios conferidos a tais empreendedores denominados de "urbanizadores sociais", lhes caberia oferecer à municipalidade compensações, tais como a construção de equipamentos urbanos, comunitários ou de geração de renda, bem como a comercialização direta de parte dos lotes com adquirentes de baixa renda indicados pelo próprio ente estatal parceiro.8
Uma das maiores experiências nesse sentido foi desenvolvida, em Porto Alegre, no contexto do "Projeto Integrado Desenvolvimento Sustentável Lomba do Pinheiro", instituído através da lei municipal 9.162/2003 como um instrumento regulatório de incentivo à produção de lotes urbanos regulares para fins de disponibilização, por preços acessíveis, à população de baixa renda, criando-se, sem a necessidade de se recorrer a mecanismos mais drásticos, um inovador modelo de parcelamento do solo e de urbanização, evidentemente apoiado no princípio da solidariedade. Isso porque, em um cenário ideal de implementação, buscou combinar diferentes diretrizes e instrumentos de cooperação entre Poder Público e particular, voltados para a geração de habitação de interesse social, para o combate à irregularidade e aos malefícios urbanos e ambientais do loteamento clandestino e para a equidade na distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização da cidade.
De fato, alguma dose de criatividade e vontade política são capazes de, senão resolver definitivamente, ao menos reduzir consideravelmente o problema. Uma experiência nesse sentido, extraída do Direito Comparado, é paradigmática. Na Inglaterra, foi implementada, em 1992, política habitacional através da criação de uma agência independente denominada Empty Homes Agency, que se tornou responsável por fomentar a reutilização de residências desocupadas9, inclusive incentivando a locação dos imóveis subaproveitados por meio, dentre outras alternativas, da intermediação do órgão municipal local, com o qual o proprietário pode celebrar um contrato de arrendamento por, aproximadamente, cinco anos.
Já se o imóvel desocupado não estiver em boas condições de preservação, abre-se ao proprietário a possibilidade de solicitar perante alguma associação de habitação (housing association) um subsídio financeiro para que com ele possa providenciar a renovação do bem. E, em contrapartida, celebra-se um contrato de arrendamento a um baixo custo, permitindo que o proprietário preserve o bem em seu domínio, mesmo que não disponha de recursos financeiros suficientes, sendo, simultaneamente, incentivada a sua reutilização eficiente para fins de moradia popular.
No entanto, se o proprietário não recorrer voluntariamente a qualquer uma dessas soluções que lhe são disponibilizadas e o imóvel permanecer por mais de seis meses desocupado, sujeitar-se-á à perda temporária da posse mediante a aplicação das denominadas "ordens de gestão de residências desocupadas" (empty dwellings management orders), previstas na Housing Act de 2004, e que permitem às autoridades locais utilizar temporariamente a propriedade particular por meio da instituição de uma espécie de aluguel forçado em prol de inquilinos de baixa renda. Tais ordens são, a depender do caso concreto, "provisórias" (com duração de até um ano) ou "finais" (por um período máximo de sete anos), podendo, porém, ser revogadas com o consentimento dos ocupantes.
Incompreensível, portanto, diante do rico leque de possibilidades que podem ser arquitetadas pelo Poder Público para fins de gestão e financiamento do desenvolvimento urbano, a persistente existência de imóveis - como o referido hotel situado na proximidade da famosa esquina da Av. Ipiranga com a Av. São João, no movimentado centro da cidade de São Paulo - completamente abandonados ou desocupados, sem qualquer função ou utilidade social sendo-lhes conferida, em contrariedade ao que estabelece de forma contundente nossa Constituição.
Mister, assim, que novas formas de gestão urbana sejam chamadas a integrar de forma mais ampla e complexa estratégias eficientes de política habitacional, sobretudo através de mecanismos redistributivos capazes de atrair a colaboração dos próprios agentes privados na superação do grave problema de moradia que assola, desde sempre, o país.
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1Não nos aprofundaremos na análise histórica envolvendo a luta pelo direito de moradia no Brasil, ligada às disfunções históricas no processo de aquisição da propriedade privada urbana e à consequente exclusão de grande parcela da população. Para um aprofundamento do tema a partir de uma análise focada principalmente no processo histórico desenrolado na cidade de São Paulo, cf. HOLSTON, James. Cidadania Insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
2Dados disponíveis. Acesso em 16 set. 2014.
3Tais instrumentos estão arrolados no inciso V do art. 4º do estatuto, que tem, como algumas de suas diretrizes gerais, a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; a cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; bem como a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização (art. 2o, incisos II, III e IX da norma).
4Para uma análise detalhada dos referidos institutos, cf. CYMBALISTA, Renato; TSUKUMO, Isadora Tami Lemos. Terra Urbana para habitação social: alternativas à desapropriação na experiência brasileira. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (coord.). Revisitando o instituto da desapropriação. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
5Ibid. p. 106-107. Conforme relatam os autores, "Em 2002, foi realizado um levantamento de campo pela Secretaria de Habitação na área central, visando identificar áreas com concentração de cortiços, moradias precárias e oportunidades imobiliárias no Centro de São Paulo. Como 'moradias precárias' foram identificadas as habitações unifamiliares com mau estado de conservação - especialmente das instalações sanitárias e elétricas - e com grande quantidade de moradores. O conceito de oportunidade imobiliária buscou identificar conjuntos de imóveis, terrenos subutilizados, ou vazios, alguns à venda ou aluguel e estacionamentos - com potencial de transformação em empreendimento habitacional, mediante reforma ou construção nova. (...). No Centro, além dos perímetros resultantes dos levantamentos da SEHAB, foram indicados vários edifícios vazios e terrenos com possibilidade de transformação em habitação social. As indicações foram incorporadas à lei, desde que não localizadas em zonas consideradas de interesse do setor imobiliário ou próximas a áreas valorizadas da cidade. Ou seja, um dos principais critérios para a demarcação de perímetros foi a localização em áreas consideradas desvalorizadas dentro do anel central."
6Ibid. p. 110.
7Ibid. p. 111. Os autores destacam, ainda, os resultados obtidos com a adoção de tais intrumentos, cujos objetivos não teriam sido integralmente atingidos por motivos de ordem tanto conceitual, quanto prática, como, por exemplo, a localização das áreas demarcadas (que não seriam efetivamente zonas desvalorizadas), bem como a falta de vontade política dos sucessivos governos municipais na sua implementação.
8Art. 8º da Lei Municipal 9.162/2003, que dispõe sobre "a parceria da Administração Municipal com os empreendedores considerados urbanizadores sociais".
9Conforme pesquisa estatística disponibilizada pela própria agência responsável, até novembro de 2012, eram 710.000 imóveis desocupados na Inglaterra, sendo que, desses, 259.000 tratavam-se de imóveis desocupados de longo-prazo (long-term empty), assim considerados aqueles que se encontram vazios há mais de seis meses. Dados disponíveis em:
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*Jéssica Acocella é advogada da área de Administração e Departamento de Licitações do BNDES.