Banco Central: a independência é vida e não morte
"Mudar o status do Banco Central não compete ao presidente, por mais que ele queira, mas tão somente ao Congresso Nacional por meio de uma lei complementar."
terça-feira, 16 de setembro de 2014
Atualizado em 15 de setembro de 2014 11:08
"Je veux que la Banque (...) soit dans la main
du Gouvernement mais qu'elle n'y sois pas trop" .
("Eu desejo que o Banco esteja sob o controle do
Governo, mas não muito", Napoleão Bonaparte,
segundo Geneviève Iacono, "Le nouveaux status de
la Banque de France - une ètape ver l'union
economique et monetaire", Recueil Dalloz, Sirey, mar/1994).
O velho Napô sabia das coisas e é possível que se fosse vivo até tirasse o braço de dentro do casaco para apontar seu dedo acusador na direção dos candidatos ao cargo de presidente do Brasil nos próximos quatro anos. Afinal de contas eles mostram que de Banco Central não sabem nada. E essa discussão levada para os lares brasileiros pelos atores que se digladiam na telinha deve parecer muito estranha para bastante gente.
Imaginem D. Maria, do lar, ao lado do seu marido aposentado, sentados no sofá em frente à televisão, atingidos pela tempestade de diatribes que grassa na propagando política e, de repente alguém saca uma importante afirmação: "o Banco Central não pode ser independente". O outro lado responde em favor da independência do tal banco central e a celeuma está formada. Sejamos realistas, muitas donas Marias e seus maridos não conseguiram entender patavina dessa briga.
Os dois são do tempo de namorar no banco da praça e, na verdade, não gostavam muito dos bancos centrais, preferindo aqueles nos cantinhos mais escurinhos e escondidos.
Ora, o que se verifica é que os marqueteiros dos candidatos estão mais perdidos do que a formiga que passou por uma gota de pinga e não sabe mais o caminho de volta para a sua casa. O assunto da autonomia ou independência do Banco Central está fora do alcance de milhões e milhões de eleitores. Portanto, despejar essa bomba no inimigo dá em "água", como acontecia no jogo de batalha naval, largamente disputado nos bons tempos em mornas tardes de salas de aula, muito antes de ser substituído pela informática.
Minha preocupação com esse tema retrocede há mais de trinta anos e a seu respeito publiquei um primeiro texto1. Daquela data para cá tenho procurado me aprofundar nessa pesquisa que redundou em um longo estudo sobre os bancos centrais no Direito Comparado2.
Em meio à discussão sobre o lugar do Banco Central no Governo, surgiu outra a respeito de qual candidato é mais amigo dos bancos e mais vantagens deles recebeu, o que seria absolutamente inaceitável, segundo a acusadora. Essa é outra peleja que não leva a nada porque todas as sociedades modernas precisam tanto de bancos como de coveiros. Não há como viver sem eles. Alguns economistas meio louquinhos defenderam essa ideia (chamada de free banking), mas ela não pegou e não tem condições de pegar. Quem sabe o moderno governo da Coréia do Norte em sua vibrante economia adote tal sistema? É bem possível, mas eu não tenho essa informação privilegiada.
Em primeiro lugar, sem bancos a economia não funciona pela ausência de um intermediário entre quem tem dinheiro para depositar ou aplicar e quem precisa de dinheiro para o seu negócio e suas necessidades empresarias ou pessoais de crédito. E quando se forma um mercado de crédito do qual participam diversos agentes, é necessário que algum órgão estatal tome dele tome conta, caso contrário, a bagunça será total. E esse xerife é o tal afamado Banco Central. Mas a respeito da maneira como ele deve funcionar existem duas correntes principais: a dos que desejam atrelá-lo ao governo, tornando-o vassalo; e a dos que entendem que devem ser independentes ou autônomos, caso contrário seu papel será ineficaz em controlar as operações bancárias, o volume de moeda disponível no mercado, o risco que correm os agentes que dele participam, etc.
Na grande maioria dos países mais desenvolvidos os bancos centrais gozam de um razoável nível de autonomia, indo daqueles que tiram a nota 9,99 (Deutsche Bank) aos que se contentam com 7,01. Abaixo disto a nota é de reprovação, tal como o caso da Argentina hoje em dia. Menos do que 7,0 significa subordinação a um nível indesejável de dependência do governo correspondente. Como no Brasil a independência é apenas formal e não material, o nível de autonomia do nosso Banco Central tem variado ao longo dos diversos governos que conduziram nossa economia, desde que ele começou a funcionar em 1965.
Autonomia formal quer dizer que ela depende, de fato, do respeito que o governante de plantão tiver em relação ao exercício das funções daquele órgão, sem se intrometer ou se intrometendo dentro de um patamar mínimo, que não chega a rasgar a fantasia. Isto ocorreu nos dois períodos anteriores ao da atual presidência. Na gestão atual não tem havido autonomia, mas uma clara e indisfarçável subordinação do Banco Central ao governo (diga-se Ministério da Fazenda e poder central). Já no governo anterior (Meirelles), o nível deve ter se situado em torno da nota 8,0.
Sabe-se também que a inflação estourou o teto da meta e seu nível real está além do índice oficial, que tem sido manipulado por algumas jogadas criativas, mas que somente enganam Chapeuzinho Vermelho, não contando a velhinha de Taubaté que de muito tempo é falecida. D. Maria e seu marido aposentado também presenciaram essa discussão sobre o teto da meta e ficaram na mesma.
O negócio é o seguinte. Alguém fez umas contas e achou que o Banco Central deveria trabalhar para que a inflação não atingisse um máximo de 6,50% ao ano, mas que nas atuais circunstâncias o ideal seria 4.50$ (o tal do centro da meta). Mas nestes últimos tempos ela foi chutada para fora do campo, tal como fez o zagueiro Nelinho há muitos anos lá no Maracanã. Portanto, a inflação não somente está fora do centro da meta, mas está tomando impulso para chegar à lua. E como sabem muito bem a caríssima D. Maria e seu marido quando estão diante da conta do supermercado, não existe inflação boa, ela é sempre ruim. Mas pode ficar péssima, como anda agora.
Sendo a função primordial dos bancos centrais zelar pelo valor da moeda, pouquíssimos deles se ocupam do nível de emprego, que é outra praia. E para que o Banco Central possa impedir um recrudescimento da inflação ele muitas vezes precisa distribuir alguns remédios amargos no mercado, afetando a taxa de juros e o nível do crédito. Para o governante que somente pensa no curto prazo, ou seja, em se manter no poder, não se admite que aquele órgão ande por tal caminho de autonomia porque o eleitor o abandonará. Daí a briga pela sua dependência.
Mais ainda, D. Maria e seu marido também ouviram falar que os bancos públicos correriam riscos se o Banco Central fosse autônomo, em prejuízo para caríssimos programas sociais. Nossos telespectadores perplexos não devem saber, mas o governo brasileiro, juntamente com o Banco Central precisou tomar no passado medidas enérgicas para sanear o mercado financeiro nacional, o que exigiu a limpeza de bancos podres, tanto privados como públicos, por meio de dois programas: PROER e PROES. A parte mais podre era precisamente a dos bancos públicos que custaram ao país dezenas de bilhões de dólares na moeda hoje (o Banespa e o Banerj foram os campeões do concurso). Antes de tal saneamento os governadores dos estados que tinham bancos públicos faziam concorrência ao Banco Central na criação de moeda inflacionária, utilizando os recursos daquelas instituições para uso exclusivamente pessoal e/ou político.
O desaparecimento daqueles bancos púbicos estaduais, juntamente com as medidas de controle dos bancos privados, que foram tomadas pelo Banco Central no passado, foram fatores determinantes para que os efeitos da crise internacional de 2008 não tivessem afetado seriamente o mercado brasileiro. Foi bem mais do que uma marolinha, mas longe de um tsunami.
Vendo todo esse cenário, lamenta-se que temas tão relevantes sejam objeto de discussões rasteiras, que a nada levam. E o pior, para que tanta briga para se mudar o status do Banco Central, obra que não compete ao presidente, por mais que ele queira, mas tão somente ao Congresso Nacional por meio de uma lei complementar.
Ou seja, tudo o que está sendo discutido nesse campo é pura espuma, com muito pouca água.
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1A regulamentação do art. 192 da Constituição Federal (a independência do Banco Central do Brasil). Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 94, p. 35-86, 1994.
2"Centrais no Direito Comparado - O Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil - O regime vigente e as propostas de reformulação", Ed. Malheiros, São Paulo, 2005.
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* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da USP.