A vinculação (ou não) dos quotistas de FIPs a cláusulas de arbitragem contratadas pelo administrador
O tratamento conferido pela CVM aos FIPs, sem embargo de eventual discussão quanto à sua adequação jurídica e mesmo legalidade, temas que não são objeto deste artigo, traz certas dificuldades práticas, que repercutem diretamente na arbitragem.
sexta-feira, 18 de julho de 2014
Atualizado em 17 de julho de 2014 10:00
De acordo com a Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP), a indústria de private equity e venture capital investiu mais US$ 26 bilhões no Brasil desde o ano de 2011,1 sendo os Fundos de Investimento em Participação (FIPs) um dos principais veículos para tais investimentos.
Não obstante a sua ausência de competência para dispor, fora dos estreitos limites da lei 6.385/76, sobre questões atinentes a Direito Civil e Comercial, a CVM, ao regular a constituição, administração e funcionamento dos FIPs pela instrução 391, conceitua o FIP, em linha com a lei 4.728/65, como "uma comunhão de recursos", sem personalidade jurídica, constituída sob "a forma de condomínio fechado". E na instrução 409, a qual se aplica aos FIPs em caráter suplementar, a CVM estabelece que os quotistas responderão apenas subsidiariamente às obrigações do FIP, conferindo ao patrimônio do fundo caráter especial.
O tratamento conferido pela CVM aos FIPs, sem embargo de eventual discussão quanto à sua adequação jurídica e mesmo legalidade, temas que não são objeto deste artigo, traz certas dificuldades práticas, que repercutem diretamente na arbitragem.
Imagine-se a seguinte hipótese: um FIP celebra, com cláusula compromissória, acordo de acionistas em que há previsão de que seus signatários não terão participação em sociedades concorrentes. Não obstante, um quotista do FIP posteriormente adquire relevante participação no capital votante de sociedade concorrente. Nesse cenário, os demais signatários do acordo de acionistas, se quiserem discutir o seu descumprimento, deverão demandar aquele quotista do FIP em juízo arbitral ou estatal?
Tal pergunta leva, necessariamente, a uma outra questão: admitindo-se que o FIP, como dispõe a instrução 391, teria natureza jurídica de condomínio, sendo, pois, desprovido de personalidade jurídica, as obrigações assumidas pelo administrador em nome do FIP vinculariam diretamente todos os quotistas? Ou seria possível o entendimento de que o FIP seria espécie de universalidade de Direito e assumiria obrigações em nome próprio, sem vincular seus quotistas, cuja responsabilidade ficaria limitada a perdas financeiras que superassem o patrimônio líquido?
Embora a CVM, em linha com a lógica econômica de tal veículo, tenha a tendência de tratar o FIP (e os fundos de investimento em geral) como ente dotado de uma espécie de quasi personalidade jurídica, a regulamentação sobre o tema não é clara nem tampouco há jurisprudência consolidada sobre o assunto, sendo questionável a compatibilidade de tal posição com o tratamento conferido ao condomínio simples pelo Código Civil. Mas as dúvidas não param por aí.
Ainda que se entendesse que as obrigações assumidas pelo administrador vinculariam os quotistas individualmente considerados, seria lícita a imposição à generalidade de quotistas do FIP de cláusula compromissória constante de contrato firmado pelo administrador em nome do fundo, sem que tais quotistas tenham expressa e formalmente manifestado sua renúncia pessoal à jurisdição estatal?
Por outro lado, caso se adotasse a tese contrária e se considerasse que obrigações assumidas pelo administrador não vinculariam individualmente os quotistas, seria lícita, na hipótese ilustrativa acima, a "desconsideração" da quasi personalidade jurídica de FIP com apenas um único quotista ou com número bastante reduzido de quotistas para se submeter esses quotistas à cláusula compromissória firmada pelo administrador em nome do fundo? A discussão sobre a possibilidade de "desconsideração" teria que ser submetida primeiramente ao juízo arbitral, por força do princípio da competence-competence?
Outra questão tormentosa diz respeito à possibilidade de inclusão de quotistas que não participaram de processo arbitral envolvendo o FIP na respectiva execução de sentença quando o fundo não contar com patrimônio líquido suficiente para fazer face à sua condenação. A responsabilidade subsidiária prevista na instrução 409 autorizaria tal inclusão e a extensão dos efeitos de sentença arbitral a quotistas que não foram parte do processo?2
Todas essas questões estão sujeitas a controvérsia, porquanto não há consistente orientação jurisprudencial a seu respeito.
Portanto, diante desse contexto de incertezas, havendo interesse em não se sujeitar os quotistas a cláusula compromissória firmada pelo FIP, convém que se insira na respectiva cláusula, ad cautelam, expressa disposição nesse sentido. Por outro lado, havendo interesse em vincular os quotistas, seria recomendável, a fim de se evitar controvérsias, inserir previsão expressa nesse sentido, que deverá ser por eles subscrita.
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1 Veja mais: https://exame.abril.com.br/mercados/noticias/private-equity-atingiu-r-80-bilhoes-em-2012-dizabvcap
2 Ilustrativamente, confiram-se (i) os AIs 0002085-66.2014.8.19.0000 e 0069053-15.2013.8.19.0000, nos quais o TJRJ entendeu pela ilegalidade da inclusão do devedor subsidiário no polo passivo de execução quando ele não participou do processo de conhecimento, e (ii) os AIs 0042634-55.2013.8.19.0000 e 0020559-22.2013.8.19.0000, em que o TJRJ entendeu pela possibilidade de inclusão do devedor subsidiário no polo passivo da execução de sentença, a despeito de ele não ter participado do processo de conhecimento.
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* Guilherme Leporace e Luisa Coelho são advogados do escritório Lobo & Ibeas Advogados.