Em crise dentro de campo nesta Copa, Camarões tem muito que melhorar também longe dos gramados, especialmente no campo das relações do trabalho
De um lado, Camarões se compromete com o ideário de justiça social e de trabalho digno. De outro lado, a demora em promover as necessárias reformas legislativas dá azo à precarização do trabalho.
terça-feira, 24 de junho de 2014
Atualizado em 23 de junho de 2014 14:30
Em 1990, a seleção camaronesa foi aplaudida de pé ao deixar o gramado de San Paolo e encerrar sua atuação na Copa ocupando o 7º lugar. Com irreverência e jogo ofensivo, os Leões Indomáveis surpreenderam e encantaram o mundo. Além dessa campanha, o povo de Camarões pode se orgulhar de quatro títulos continentais (1984, 1988, 2000 e 2002), uma medalha de ouro olímpica (2000) e sete participações em Copas. A paixão nacional pelo futebol, no entanto, vem sofrendo percalços. Eliminado depois de duas derrotas, o time que enfrenta o Brasil no dia 23 de junho parece estar a beira de um colapso: problemas relativos ao valor da gratificação pela participação na Copa 2014; lesão do astro Eto'o que, além de estar envolvido em um escândalo sexual, parece ser o epicentro dos desentendimentos entre os jogadores; treinador e esquema tático fortemente rejeitados pela imprensa e pela torcida.
A bipolaridade não é característica exclusiva do futebol camaronês, na política e nas relações do trabalho o país também sofre pela alternância entre dois polos. O Estado moderno de Camarões foi criado em 1961, depois de uma sangrenta insurreição, pela união da República de Camarões (ex-colônia francesa que logrou sua independência em 1960) e o território meridional que estava sob a tutela britânica. Desde então, o país luta pela democratização apesar de enfrentar limites severos à liberdade de expressão. Em mais de 50 anos de existência, a República camaronesa só teve dois presidentes, sendo que o atual líder político assumiu o poder em 1982. O pluripartidarismo foi instaurado apenas em 1990 devido ao descontentamento popular. Mas, as eleições presidenciais realizadas em 1997, 2004 e 2011 são suspeitas de fraude. O país convive com um movimento separatista, alto nível de corrupção e questões relacionadas à discriminação e violência baseada em orientação sexual e identidade de gênero. No outro polo, embora não seja o suficiente para contrabalancear o quadro acima, existiu investimento na agricultura, educação, saúde e transporte. A taxa de alfabetização, por exemplo, é umas das maiores da região africana.
No que diz respeito às relações do trabalho, o fenômeno se repete. De um lado, Camarões se compromete com o ideário de justiça social e de trabalho digno, tornando-se membro da OIT em 1960 e ratificando 44 convenções, dentre as quais estão as oito convenções fundamentais. Inicia a o trabalho de revisão da legislação nacional com a finalidade de dar plena eficácia às normas internacionais.
Conta com um sistema judicial independente, embora não exista uma Justiça especializada em matéria trabalhista. De outro lado, a demora em promover as necessárias reformas legislativas dá azo à precarização do trabalho, à informalidade e a práticas antissindicais. Embora a lei reconheça a liberdade sindical, o governo impõe numerosas restrições normativas e práticas ao exercício desse direito. Alguns exemplos. Os requisitos para a obtenção de registro sindical extrapolam sua finalidade e limitam o direito de associação (número mínimo e apresentação de antecedentes criminais). A filiação de sindicatos em entidades de grau superior depende de prévia autorização do Estado. O exercício da ação sindical sem registro é sancionado com multas elevadas e pena de prisão. Não existem mecanismos para assegurar o cumprimento dos acordos resultantes de negociação coletiva. As greves só podem ser deflagradas depois de concluído um complexo procedimento de conciliação e mediação, que conta com três instâncias.
Além disso, o setor informal compreende mais de 90% da força de trabalho do país (dados do Banco Mundial) que, portanto, está excluída da tutela da legislação trabalhista.
Com tantos desafios, dentro e fora dos gramados, é difícil prever o que espera a seleção brasileira no próximo jogo. Mas, com o propósito de "encerrar" a saga da bipolaridade até aqui descrita, espero que a "Copa das Copas" seja palco para a redenção dos Leões Indomáveis. Que o mundo volte a se encantar com seu jogo, sua determinação e sua dignidade. E, ainda assim, que a seleção brasileira vença com nosso futebol bonito, dando um passo convincente em direção à taça. Sobre todo o demais, bem, fica para um próximo texto. Afinal, como dissemos no jogo passado, milagres não existem.
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* Fernanda Caldas Giorgi é advogada do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.