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As "bondades perversas"

Ou "Como Programas Sociais sem Porta de Saída Podem Arruinar a Economia e Envergonhar o Direito Empresarial"

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Atualizado em 30 de maio de 2014 14:07

Não "Ave César" porque os que vão pagar a conta te maldizem.
(ouvido de algum anônimo)

Recentemente o governo concedeu, entre outras menos visíveis, mais uma bondade inteira e meia bondade no mesmo dia (meia bondade é, isto sim, uma maldade inteira). Ou seja, aumentou o valor do "bolsa família" em 10% e a tabela do imposto de renda em 4,5%. A primeira acima da inflação oficial e a segunda bem abaixo. Como toda dona de casa sabe muito bem diante da banca de verduras, legumes e carnes do supermercado, o teto da meta da inflação já foi furado há muito tempo, dando para ver o meteoro econômico gigantesco que está caindo rapidamente sobre nossas cabeças.

De cunho evidentemente eleitoral, a estratégia adotada pelo governo não é nem sequer original, como sabem os que conhecem a história de Roma, quando a plebe ignara era manipulada com pão e circo.

Nossa economia está mais entupida de programas sociais do que fígado de ganso destinado a morrer em benefício do foie gras. A semelhança é que a economia e o ganso certamente morrerão. A diferença está em que a morte de um sistema econômico doente como o nosso é mais longa e dolorosa.

Programas sociais em si mesmos são mecanismos válidos para a solução de determinadas crises. O problema está na dose e no seu tempo de duração. Se o favor for elevado demais para certos setores da sociedade, o custo para o resto da nação torna-se insustentável. Quando dura muito tempo e, o que é mais grave, na medida em que não existam incentivos diretos e indiretos para o resgate social e econômico dos destinatários, dá-se nascimento a gerações seguidas de esmoleres profissionais, satisfeitos com o pouco que têm, porque isto não lhes custa qualquer trabalho. Como se sabe, em física quando se deseja tirar um corpo do estado de inércia para o de movimento é preciso que sobre ele se aplique uma determinada força em algum sentido, determinado pelo vetor correspondente. Ora, o trabalho é o resultado da anulação da inércia.

A este respeito conta-se a história de dois contumazes preguiçosos deitados placidamente em redes armadas sob a sombra de uma árvore frondosa à beira de uma estrada. Em dado momento passa um carro em desabalada carreira e quando a poeira assenta os dois compadres enxergam uma nota de cem reais caída do outro lado da estrada.

- Compadre, você viu aquilo?

- Vi, disse o outro.

- E ocê num vai buscá?

- Eu não, to cum priguiça. Pruquê ocê mêmo num vai?

- Também tô muito cansado. Não se aperreie, quarqué hora o vento traiz ela prá cá.

Foi Monteiro Lobato quem apresentou para nós esses "Jeca Tatus", "que nada produzem, tudo consomem (ainda que seja muito pouco em termos relativos), e tal espírito é o que tem se disseminado pelo Brasil afora por meio dos tais programas sociais eternos. O famoso Zé Carioca é outra figura congênere, que vive de expedientes e à custa dos amigos. A constatação não é gratuita porque o autor destas mal traçadas tem feito uma pesquisa empírica a respeito de tal realidade.

Ninguém precisa ser um Nobel em economia para saber que essa estratégia dilapida no longo prazo a riqueza de um país (Alô, alô, Argentina e Venezuela) e é um recado altamente negativo para quem se propõe a trabalhar para viver e aumentar sua renda e seu patrimônio objetivando uma tranquilidade futura.

Ainda se acrescenta um enorme desarranjo na economia porque o governo Papai Noel atira presentes para todos os lados com a sua metralhadora giratória de "bondades", causando um estrago generalizado, que se torna impossível de consertar. E de onde vêm os presentes do Papai Noel? Não dele, mas sim do bolso dos genitores das crianças, que descobrem um dia não existirem duendes os fabricando no Polo Norte.

Tome-se o exemplo caso do famoso cubo mágico, que apresenta em cada lado nove pequenas peças divididas em seis cores, que se intercambiam em uma enorme série de possibilidades. Sabe bem o jogador que pretende recolocar em ordem as peças desorganizadas como é difícil alcançar o seu objetivo. E quando se trata da economia em um país no qual as decisões a serem tomadas são pautadas pelo atendimento à corte instalada na Ilha da Fantasia (nosso moderno Coliseu), e aos chefes dos gladiadores (os políticos e seus partidos), a tarefa de consertar o estrago se coloca no plano da impossibilidade.

Pior ainda, a oposição somente terá chance de ganhar a eleição (desastres do governo à parte) se prometer distribuir mais bondades do que o Papai Noel atual e conseguir convencer o eleitor de que ela cumprirá mesmo a promessa. É isto mesmo o que fez nestes últimos dias um dos candidatos à presidência, prometendo continuar com o tão mal falado programa "Mais Médicos" (in "O Estado de São Paulo de 07.05.2014, pg. .A7). Mais uma vez devemos atentar para as leis da física: é menos oneroso deixar um corpo seguir o seu movimento do que modificá-lo mediante aplicação de uma força contrária.

Note-se que havia um elemento perturbador no sistema heliocêntrico do governo, os coroné, donos dos currais eleitorais que precisariam ser ocupados pelos programas sociais. Mas isto foi resolvido pela física, sempre a física, mediante a criação de um vácuo perfeito. As prestações de tais programas são efetuadas por meio de cartões eletrônicos de débito da Caixa Econômica Federal e, desta forma, foram eliminados os coroné, um intermediário que era necessário paparicar e que hoje pode ser considerada figura em extinção no zoológico eleitoral.

Portadora a economia, portanto, de uma diarreia crônica, deflagrada pelas bactérias da vasta gama de programas sociais, o que isto tem a ver com a vergonha pela qual passa o Direito Empresarial? É fácil responder, bastando dois exemplos que podem ser facilmente comprovados. É só sair a campo.

Há favorecidos dos programas sociais que não se contentam somente com os benefícios por eles oferecidos que, afinal de contas, são limitados. Desta forma, muitos procuram empregos combinando com os patrões que não os registrem. A perversidade deste processo está no estabelecimento de uma cumplicidade fraudulenta entre os patrões e os empregados, que não se vê em situações normais. Nestas o patrão sempre estará sujeito a uma reclamação do empregado que buscará os benefícios da relação formal de emprego, sempre com pleno sucesso. Mas na primeira situação o empregado não terá o mínimo interesse em tal iniciativa, pois perderá o direito aos benefícios sociais, a par de ficar desempregado.

Digamos que um bolsafamilista na condição acima seja despedido e que procure a Justiça Trabalhista na busca dos seus direitos. Mesmo que em tal campo proverbialmente o empregado quase sempre tem a sua razão reconhecida, o juiz estará diante de uma fraude de natureza trabalhista e criminal. Terá de condenar o empregado e oficiar ao Ministério Público para que cumpra o seu papel punitivo dele e do patrão. Agir diferentemente seria um escárnio, pois a justiça não pode aceitar o conluio criminoso.

Outro fator está na desmoralização do direito tributário, pois os contribuintes potenciais (patrão e empregado) ficam fora do seu alcance, formando uma dupla invencível, tal qual o célebre detetive Poirot e seu amigo o Capitão Hastings. O problema estará somente em se esconder a receita tributável sonegada em tal situação, o que não será difícil porque a renda do empregado não será suficiente para acender o sinal amarelo na Receita. E quem não sabe que isto acontece todos os dias?

Mais grave ainda, forma-se um círculo vicioso, pois a renda gerada sob a sombra da cumplicidade das duas partes não serve de base para qualquer tributação. Assim fica a economia formal cada vez mais onerada quando as benesses aumentam, necessitando o governo fazer peso sempre maior nos tributos, ainda que de forma indireta, como tem acontecido precisamente com a insidiosa descorreção da tabela do imposto de renda.

Bem, contava-se no passado a história da mulher que todos os dias ia à fonte buscar água trazida em um vaso sustentado na sua cabeça. Um dia qualquer, estatisticamente, o vaso caia e quebrava. É o que fatalmente acontecerá conosco, uma hora qualquer.

Não tem jeito, não adianta procurar um substituto para os remendos que se procura usar para juntar os cacos de uma economia desarranjada. Mesmo que Ícaro tivesse trocado a cera que unia as penas de suas asas por manteiga super congelada, sob o sol inclemente ela também derreteria.

Quem viver, verá.

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* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da USP.

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