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Breves reflexões acerca do direito ao silêncio no procedimento fiscalizatório tributário

Mariana Soares de Almeida

O sistema constitucional tributário impõe a impossibilidade de garantirmos aos administrados o direito ao silêncio no curso do procedimento fiscalizatório, porque é por meio desta atividade que a Administração entra em contato com a linguagem produzida pelo particular.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Atualizado em 19 de maio de 2014 13:48

O direito ao silêncio é garantia constitucional insculpida no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, e restringe-se, na sua literalidade, ao preso, sendo que a jurisprudência hodierna, numa interpretação mais abrangente, inclui na significação deste mandamento legal a sua extensão aos acusados em geral. Nestas breves reflexões, nos propomos a delimitar a extensão desta garantia constitucional, especificamente, nos casos em que os administrados são submetidos ao procedimento fiscalizatório tributário.

Para a tratativa deste tema, é necessário que tenhamos em mente a circunstância de que é mediante a atividade fiscalizatória que as autoridades administrativas praticam atos tendentes a confirmar, infirmar ou afirmar a ocorrência e o exato contorno dos fatos jurídicos tributários que ensejam o nascimento de relações jurídicas, sejam decorrentes da incidência de regras impositivas de exações fiscais ou de deveres instrumentais.

De fato, a Constituição Federal criou os tributos que devem ser instituídos por cada ente político, através do exercício da competência tributária, editando e promulgando a legislação específica. In concretu, a depender da espécie de lançamento a que se sujeite o tributo, cabe ora ao próprio administrado, ora à Administração, aplicar os referidos preceitos impositivos, culminando na arrecadação de cifras em favor do Erário. Em ambas as hipóteses, é imprescindível o desenvolvimento da atividade fiscalizatória, como expediente apto a atestar a ocorrência do fato jurídico tributário, se realizado antes da constituição inaugural do crédito tributário e, caso concretizado posteriormente à constituição da relação obrigacional pelo próprio contribuinte, a confirmar ou infirma a atividade deste.

Logo, podemos enunciar, categoricamente, que é por meio do exercício da fiscalização que é realizada e otimizada a arrecadação da receita proveniente dos tributos. A relevância dessas quantias, por sua vez, é evidenciada pelo fato de que são empregadas para o custeio das ações do Estado1, administrador da res publica.

Consequência lógica destas sucintas, porém relevantes, ponderações, é a impossibilidade de militarmos pela aplicabilidade do direito ao silêncio na esfera procedimental fiscalizatória tributária. Admitir o contrário implicaria no reconhecimento da arbitrariedade dos cidadãos escolherem os tributos que pretendessem adimplir, pois poderiam negar o acesso do Fisco aos documentos motivadores da constituição do fato jurídico tributário.

Ademais, em que pese às disposições veiculadas pela lei 8.137/90, que tipificou penalmente determinados ilícitos tributários, não há como ser defendido posicionamento distinto, sob a justificativa de que a prestação de informações ao fisco acarretaria a punição penal do contribuinte no caso de constatação de irregularidades. Isso porque, não obstante seja a determinação da ocorrência do fato jurídico tributário parte integrante da configuração dos crimes enunciados no diploma normativo em comento, compete ainda, à acusação, a comprovação dos fundamentos concretos que revelem a presença da culpabilidade do agente2.

Decerto, no âmbito tributário, é irrelevante, em regra, a motivação que alicerça o inadimplemento da obrigação tributária, sendo pressuposto para a sua caracterização apenas a conduta, o resultado e o nexo de causalidade. Todavia, no que diz respeito à caracterização dos crimes contra a ordem tributária, é fundamental, não apenas a constituição do fato jurídico tributário, mas também, a identificação do elemento volitivo que motiva o agente.

Pragmaticamente, a consequência imposta pelo sistema normativo, no caso de configuração, em tese, de crime contra a ordem tributária, é a formulação, pelo auditor fiscal, de representação para fins penais3. A partir deste momento, passam a incidir sobre o caso normas jurídicas de duas esferas distintas do direito: tributária e penal, de modo que, dando continuidade ao procedimento de constituição do crédito tributário, é lavrado o competente auto de infração e o contribuinte é intimado, abrindo-lhe a oportunidade de se defender em sede administrativa ou judicial; e, tendo início o curso de positivação da norma penal, o Ministério Público investiga os fatos indicados pela fiscalização, buscando pelo dolo e, uma vez munido de provas que evidenciem a subsunção da situação factual ao fato típico penal, oferece a denúncia ao juiz de direito.

Dessa maneira, a comprovação da ocorrência do fato jurídico tributário que eventualmente se subsome ao fato jurídico penal, nos termos da legislação que define os crimes contra a ordem tributária, é apenas o impulso inicial para a persecução penal, que ainda prescinde da constatação de outro elemento tipificador da conduta penalmente enunciada pelo legislador, mormente a intenção do agente.

Com efeito, as esferas tributária e penal se prestam a diferentes propósitos: o plexo normativo tributário tem como fundamento último a arrecadação de tributos, mediante a aplicação de normas primárias4, constitutivas de direitos e deveres; enquanto que as disposições penais, especificamente a lei 8.137/90, visa à persecução penal de condutas desarmônicas àquelas prezadas pela sociedade, através da atuação do Estado-juiz que positiva uma norma secundária in concretu. Estas diferenças permitem-nos traçar diferentes regimes jurídicos a cada segmento do Direito e, assim, restringir a eficácia do direito ao silêncio à esfera penal. Portanto, é na busca pela prova da subjetividade do agente, empreendida pelo Ministério Público e, portanto, submetida ao regime jurídico do Direito Penal, que se outorga ao administrado, agora acusado, o direito de permanecer em silêncio, sendo-lhe garantida a máxima da não autoincriminação.

Conferindo fundamento à ideia de inaplicabilidade do direito ao silêncio no procedimento fiscalizatório, o artigo 145, parágrafo primeiro, da Constituição Federal, combinado com o artigo 195, caput, do Código Tributário Nacional, reforçam os poderes inquisitórios da Administração Tributária, proporcionando meios aos agentes fiscais para o pleno exercício da função de apurar e mensurar os fatos jurídicos tributários.

Contudo, é muito importante ressaltarmos que estes amplos poderes fiscalizatórios que elidem a aplicação do direito ao silêncio em sede de procedimento instaurado para a eventual apuração de fatos jurídicos tributários possui exceção que implica numa atenuação no rigor interpretativo deste raciocínio. Isto é, existe uma hipótese excepcional em que é plausível a alegação de uma espécie de direito ao silêncio pelo administrado submetido a procedimento fiscalizatório: esta situação é configurada quando um ente político incompetente para a arrecadação de um tributo exige a apresentação dos correlatos deveres instrumentais.

Ora, os deveres instrumentais são meios indiciários das atividades praticadas pelos administrados, eventualmente motivadoras da constituição de fatos jurídicos tributários. Desse modo, os entes políticos tributantes são partes legítimas para requerer a apresentação destes documentos, aferindo a situação factual do administrado como: sujeito que pratica fatos jurídicos tributários motivadores da constituição ex officio do crédito tributário; fiel cumpridor, ou não, da sua obrigação principal, nos casos de lançamento por homologação ou por declaração; beneficiário de alguma hipótese de imunidade, isenção ou suspensão da exigibilidade do crédito tributário. O eventual encerramento do procedimento fiscalizatório sem a constituição de uma obrigação tributária, em virtude da ausência de dados para a enunciação do fato jurídico, demonstra que os deveres instrumentais dispensam o surgimento in concretu da obrigação tributária5.

Assim, a obrigação de pagar o tributo e de submeter-se à fiscalização não são umbilicalmente associadas, de tal forma que o nascimento de uma ('obrigação tributária acessória') depende da eclosão dos efeitos jurídicos da outra ('obrigação tributária principal') no mundo fenomênico6. Por isso, os administrados em geral figuram em procedimentos fiscalizatórios, sendo-lhes imposta a apresentação de diversos deveres instrumentais, sem que seja, necessariamente, constatada a ocorrência do fato jurídico tributário.

Contudo, é imprescindível uma sintonia7 entre os tributos e os deveres instrumentais, no sentido de que estes últimos pressupõem a existência lógica da obrigação tributária. À vista disso, apenas o ente político indicado na legislação como arrecadador de determinada exação fiscal é parte fidedigna para instituir e requerer a apresentação de documentos que lhe forneçam uma camada linguística capaz de afirmar, confirmar ou infirmar a ocorrência de fatos tributáveis. Então, em que pese à obrigatoriedade, oriunda do sistema constitucional tributário, de apresentação de documentos decorrentes de deveres instrumentais à autoridade administrativa, não pode prevalecer a tese pela legitimidade de ente político incompetente para a tributação específica postular a referida apresentação8.

Em remate, o sistema constitucional tributário impõe a impossibilidade de garantirmos aos administrados o direito ao silêncio no curso do procedimento fiscalizatório, fundamentalmente, porque é por meio desta atividade que a Administração entra em contato com a linguagem produzida pelo particular, que relata fatos eventualmente relevantes para o mundo jurídico. Sem embargo, uma exceção a esta regra faz-se presente quando sujeito político exige a apresentação de deveres instrumentais relacionados a tributo que não lhe compete arrecadar.

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1 GONÇALVES, José Artur. Tributação, Liberdade e Propriedade in Direito Tributário - homenagem a Paulo de Barros Carvalho, coordenado por Luis Eduardo Shoueri. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 242.

2 Insta observar que partimos da premissa de que os enunciados prescritivos que tratam dos crimes contra a ordem tributária não preveem a modalidade culposa. (CARVALHO, Aurora Tomazini de. Direito Penal Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 157)

3 Conforme prescrevem, no âmbito federal, as Portarias da Secretaria da Receita Federal do Brasil nºs 2.439/10 e 3.182/11.

4 Em breve síntese, todas as normas em sentido estrito são organizadas na forma lógica hipotética condicional, de modo que o antecedente implica o consequente. No sistema jurídico, caracterizado pela sua coercitividade, existem (i) a norma primária, que contém na sua hipótese a descrição de um fato hipotético, prescrevendo, na sua tese, uma relação entre sujeitos com direitos e deveres materiais correlatos; e (ii) a norma secundária, que atribui juridicidade à norma primária, prescrevendo a atuação coercitivo-sancionatória dos Estado-juiz na hipótese de descumprimento daquelas. (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário - fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 34).

5 Neste sentido, são as lições de Luis Eduardo Schoueri: não é necessário que haja um tributo devido para que surja o poder de fiscalizar; ao contrário, da fiscalização pode-se concluir que nenhum tributo é devido. Mas, justamente para que se tenha tal certeza, haverá a fiscalização. Assim, por exemplo, um ente imune está sujeito à fiscalização, que investigará se os requisitos constitucionais ou da Lei Complementar, se for o caso, foram preenchidos. (SHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 721)

6 ZOCKUN, Maurício. Regime Jurídico da Obrigação Tributária Acessória. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116.

7 TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA - ISSQN. EMPRESA NÃO CONTRIBUINTE. OBRIGATORIEDADE DE EXIBIÇÃO DOS LIVROS COMERCIAIS. INEXISTÊNCIA. ART. 113, § 2º, DO CTN. I - A discussão dos autos cinge-se à necessidade, ou não, de a empresa recorrida, pelo fato de não ser contribuinte do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, ainda assim ser obrigada a exibir seus livros fiscais ao Município de São Paulo. II - Restou incontroverso o fato de que a empresa Recorrida não recolhe ISSQN aos cofres do Município de São Paulo. III - Nesse contexto, verifica-se que, mesmo que haja o Poder Estatal, ex vi legis, de impor o cumprimento de certas obrigações acessórias, a Administração Tributária deve seguir o parâmetro fixado no § 2º do art. 113 do CTN, isto é, a exigibilidade dessas obrigações deve necessariamente decorrer do interesse na arrecadação. IV - In casu, não se verifica o aludido interesse, porquanto a própria Municipalidade reconhece que a Recorrida não consta do Cadastro de Contribuintes do ISSQN. V - Mesmo que o ordenamento jurídico tributário considere certo grau de independência entre a obrigação principal e a acessória, notadamente quanto ao cumprimento desta última, não há como se admitir o funcionamento da máquina estatal, nos casos em que não há interesse direto na arrecadação tributária. VI - Se inexiste tributo a ser recolhido, não há motivo/interesse para se impor uma obrigação acessória, exatamente porque não haverá prestação posterior correspondente. Exatamente por isso, o legislador incluiu no aludido § 2º do art. 113 do CTN a expressão "no interesse da arrecadação". VII - Recurso Especial improvido. (REsp nº 539084/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/10/2005, DJ 19/12/2005, p. 214)

RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. DESCABIMENTO DA EXIGÊNCIA DO FISCO. MULTA. AFASTAMENTO. 1. A despeito do reconhecimento da independência da nominada obrigação tributária acessória, essa obrigação só pode ser exigida pelo Fisco para instrumentalizar ou viabilizar a cobrança de um tributo, ou seja, deve existir um mínimo de correlação entre as duas espécies de obrigações que justifique a exigibilidade da obrigação acessória. 2. Na hipótese, o transporte do café beneficiado, pela empresa beneficiadora - ora recorrente -, estava acobertado pelas notas fiscais de devolução e de venda da mercadoria, pelos fazendeiros, para a Bolsa de Insumos de Patrocínio, mostrando-se totalmente descabida e desarrazoada a exigência da emissão de Nota fiscal pela recorrente, sem destaque de ICMS, na qualidade de detentora da mercadoria. 3. Precedentes: REsp 539.084/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 19.12.2005; REsp 728.999/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 26.10.2006. 4. Recurso especial provido. (REsp 1096712/MG, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/04/2009, DJe 06/05/2009)

8 TRIBUTÁRIO. FISCALIZAÇÃO MUNICIPAL. APRESENTAÇÃO DE LIVROS E DOCUMENTOS FISCAIS. ESTABELECIMENTOS SITUADOS EM OUTROS MUNICÍPIOS. 1. A fiscalização municipal deve restringir-se à sua área de competência e jurisdição. 2. Ao permitir que o Município de São Paulo exija a apresentação de livros fiscais e documentos de estabelecimentos situados em outros municípios, estar-se-ia concedendo poderes à municipalidade de fiscalizar fatos ocorridos no território de outros entes federados, inviabilizando, inclusive, que estes exerçam o seu direito de examinar referida documentação de seus próprios contribuintes. 3. Recurso parcialmente conhecido e não provido. (Recurso Especial n. 73.086; Ministro João Otávio de Noronha; julgado em 17.06.2003)

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* Mariana Soares de Almeida é advogada do escritório Barros Carvalho Advogados Associados.

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