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Desobediência da norma jurídica e a interpretação do Direito Regulatório - breves considerações

Mario Henrique da Luz do Prado e Renan Macedo Ramos

Do mesmo modo que uma criança, as normas não saberiam a quem obedecer se todos os adultos pudessem lhe dar ordens.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Atualizado em 8 de maio de 2014 13:52

A complexidade das relações sociais, e a necessidade do Estado em oferecer proteção jurídica adequada a (quase) todas as relações jurídicas, fez nascer um sem número de normas.

Legisla-se, nos dias atuais, de forma desmedida de maneira a desprestigiar a primorosa teoria tridimensional do direito, ao passo que o valor dado ao fato social (real, hipotético ou isolado - sim, às vezes desta forma) se funda numa explosão momentânea de sentimentalismo e demagogia (comumente chamada de "legislação simbólica" - ou para "inglês ver" na linguagem popular). Pensando quanto à crise legislativa e os efeitos que este superávit legislativo gera aludimos ao Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

"Crise da lei? Crise legislativa? A referência a essas crises poderá talvez intrigar o leigo, ou o observador desatento e superficial. Como falar em crise da lei, em crise legislativa, quando são tantas as leis, quando a cada instante novas leis se promulgam em toda parte?

A multiplicação das leis é fenômeno universal e inegável. Com segurança pode-se dizer que nunca se fizeram tantas leis em tão pouco tempo. No Brasil, por exemplo, durante todo o Império, foram promulgadas cerca de 3.400 leis. Durante a Primeira República, de 1891 a 1930, cerca de 2.500 leis. E de 18 de setembro de 1946 a 9 de abril de 1964, nada menos que 4.300. E de 1964 até hoje mais de 7.000 leis. Quanto a decretos-leis, foram editados de 1964 a 1988 cerca de 2.400. Já medidas provisórias, entre 1988 e a vigência da Emenda Constitucional n. 32/2001, foram promulgadas 619, com mais de 5.000 reedições. Depois da referida Emenda, cerca de 300.

Por um lado, essa multiplicação é fruto da extensão do domínio em que o governante se intromete, em razão das novas concepções sobre a missão do Estado. A lei é hoje onipresente. Não há campo da atividade humana, não há setor da vida humana, onde não esteja o governo a ditar regras. Seja para garantir a liberdade artística contra a cegueira da censura, seja para fixar as dimensões dos armários postos à disposição do operário...

Contudo, essa multiplicação é, antes de mais nada, fruto de sua transitoriedade. A maioria das leis que aos jorros são editadas destina-se a durar como a rosa de Malherbe l'espace d'un matin...

Em vez de esperar a maturação da regra para promulgá-la, o legislador edita-a para, da prática, extrair a lição sobre seus defeitos ou inconvenientes. Daí decorre que quanto mais numerosas são as leis tanto maior número de outras exigem para completá-las, explicá-las, remendá-las, consertá-las... Feitas às pressas para atender a contingências de momento, trazem essas leis o estigma da leviandade.

Essa mudança incessante das leis "repercute sobre todas as rela­ções sociais e afeta todas as existências individuais. Ela as afeta tanto mais quanto nelas se põe mais arrojo, quanto a elas mais se dá ambição, quanto se pensa fazê-las mais livremente. O cidadão, aí, já não está protegido por um direito certo, pois a Justiça segue as leis cambian­tes. Não mais está ele garantido contra os governantes cuja audácia lhes permite legislar segundo seu capricho. As desvantagens ou vantagens que uma lei nova pode produzir ou trazer são tais que o cidadão aprende a tudo temer ou a tudo esperar de uma alteração legislativa"

m isso, o mundo jurídico se torna uma babel. A multidão de leis afoga o jurista, esmaga o advogado, estonteia o cidadão, desnorteia o juiz. A fronteira entre o lícito e o ilícito fica incerta. A segurança das relações sociais, principal mérito do direito escrito, se evapora.

Os males da inundação de leis não ficam aí, porém. Dizem os economistas que a escassez é a mãe do valor. Em face da experiência atual, o jurista tem de reconhecer que a abundância de leis não é riqueza. Quanto maior o número de leis que se editam, menor o respeito que cada qual inspira. Como reverenciar a lei se esta não despreza o ridículo? Como cultuá-la se passa breve qual um meteoro? Daí o bonus pater familias ignorá-la, o jurista ironizá-la, o magistrado esquecê-la.

A desvalorização da lei é tal que ninguém consegue reter o sorriso irônico ao ler, por exemplo, a solene litania que a ela dedicou Bluntschli: "A lei é a expressão mais elevada, mais eminentemente política do direito, sua fórmula mais ponderada e mais pura. O Estado inteiro fala por sua voz, fixa assim o direito, reveste-o de sua autoridade. A consciência e a vontade do Estado nela tomam corpo visível. A lei é o verbo perfeito do direito..."[30]

Ora, a transitoriedade e a desvalorização da lei são extremamente daninhas para a vida social. É Burdeau quem sublinha: "A lei não tem apenas significação jurídica, tem outrossim um valor social: é um elemento de ordem e de certeza nas relações da vida de todos os dias. Independente das aspirações sociais e da inumana generosidade dos ideais, ela é o ponto firme, um pouco morno talvez, mas indispensável à estabilidade das instituições".

(FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. In "Do Processo legislativo". - 7. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2012, p. 29 e 30).

Além das pendengas causadas pela superprodução legislativa sobredita, tal problema, fato notório, nos leva a necessidade de reavaliar o modo de interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, de forma a não se perder os reais motivos da lei e dos atos normativos, consoante determina a lei de introdução às normas do Ordenamento Jurídico em seu artigo 5º (e quanto a isso se deve lembrar da função primordial da lei que é extirpar o império da insegurança jurídica dos fatos sociais).

Neste diapasão e de forma objetiva e clara não é em nada arriscado dizer que nosso ordenamento jurídico é do tipo complexo e como tal deve ser interpretado.

Tal complexidade confronta com o princípio da unidade do ordenamento jurídico, por óbvio, já que as normas são de diferentes fontes, donde nos é lícito afirmar a existência de pequenos "sistemas" dentro do ordenamento (hoje verdade inarredável e pacífica no Brasil). É bem claro que a unidade confronta com a complexidade do ordenamento, já que a complexidade, conforme avança, afasta do ordenamento a coerência.

E a unidade do ordenamento está intimamente ligada à hierarquia das normas (o que trataremos, ainda neste estudo, mais adiante).

O problema da unidade do ordenamento e da hierarquia das normas está na interpretação destes conceitos, pois que, comumente, é aceito o raciocínio de uma alocação estanque entre as normas dentro de suas categorias hierárquicas.

Donde se pensa que todas as normas de uma categoria estivessem submetidas à obedecer todas as normas da categoria imediatamente superior.

Para ilustrar, trazemos exemplo mui prático, e realista.

É muito difundido no poder judiciário entendimento de que as normas de direito regulatório de direito de energia não podem contrariar disposição de lei ordinária, tais como o Código de Defesa do Consumidor, leis estaduais (o que viola a isonomia do serviço público - cada consumidor de diferentes estados detém diferentes direitos), entre outras disposições legais. É de todo comum o proferir de decisões que ignoram o direito regulatório, impondo às Concessionárias de serviço Energia Elétrica obrigações que contrariam frontalmente o comando das normas regulatórias, as quais muitas vezes se incorporam ao contrato de concessão de serviço público, por simplesmente entenderem os julgadores que as normas regulatórias são hierarquicamente inferiores às leis ordinárias.

Tal prática é muito comum, e muito desastrosa!

Por primeiro, a hierarquia não gera obediência imediata das normas.

Em segundo passo, as normas não são todas hierarquicamente relacionadas.

A teoria que entendemos tenha mais validade nesta problemática é aquela capitaneada por Hans Kelsen: a teoria da construção escalonada do ordenamento.

Para explicar, trazemos valiosíssimo ensinamento do jurista Norberto Bobbio, na clássica obra Teoria do Ordenamento Jurídico¹:

A complexidade do ordenamento, sobre o qual vimos até aqui chamando atenção, não exclui sua unidade. Não poderíamos falar de ordenamento jurídico se não o considerássemos algo unitário. Que seja unitário um ordenamento simples, isto é, um ordenamento no qual todas as normas decorrem de uma só fonte, é facilmente compreensível. Que seja unitário um ordenamento complexo, isto deve ser explicado. Acolhemos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria se presta a dar uma explicação sobre a unidade de um ordenamento jurídico complexo. O núcleo dessa teoria é que as normas de um ordenamento não estão todas num mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As normas inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores até aquelas que se encontram mais acima, chega-se, enfim a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa toda a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental.

(...)

Sem uma norma fundamental, as normas das quais falamos até agora constituiriam um acumulado de normas, não um ordenamento jurídico.

(...)

Quanto às normas legislativas, essas são editadas seguindo as regras estabelecidas pelas leis constitucionais para a edição de leis.

(...)

Se observarmos melhor a estrutura hierárquica do ordenamento, perceberemos que os termos execução e produção são relativos.

(...)

Numa estrutura hierárquica, como aquela do ordenamento jurídico, os termos "execução" e "produção" são relativos, porque a mesma norma pode ser considerada, ao mesmo tempo, executiva e produtiva; executiva em relação à norma superior; produtiva em relação à norma inferior.

As leis ordinárias executam a Constituição e produzem os regulamentos. Os regulamentos executam as leis ordinárias e produzem os comportamentos conforme a elas.

(BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico/Norberto Bobbio:, tradução de Ari Marcelo Solon, prefácio de Celso Lafer, apresentação de Tercio Sampaio Ferraz Junio. São Paulo: EDIPRO , 2011, p.61 à 63)

Existe, assim, uma relação filial: a Constituição dá condição de existência e validade à lei ordinária, a lei ordinária executa a Constituição. A lei ordinária dá condição de existência e validade ao ordenamento, que executa a lei ordinária.

Voltemos ao exemplo citado, sobre a aplicabilidade do direito regulatório.

A lei 9427 de 1996 criou a Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel.

No texto de tal lei, em seu artigo 2º, são estabelecidas as finalidades da Aneel:

Art. 2º A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.

(Grifos nossos).

E no artigo 3º, são previstas as atribuições daquele órgão e, no inciso primeiro, tem-se a determinação legal de que compete à Aneel a expedição de atos regulamentares necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela lei 9074 de 1995 (que, por sua vez, Estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências). Vejamos, com destaques nossos:

Art. 3º Além das atribuições previstas nos incisos II, III, V, VI, VII, X, XI e XII do art. 29 e no art. 30 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, de outras incumbências expressamente previstas em lei e observado o disposto no § 1o, compete à ANEEL:

I - implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo os atos regulamentares necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela Lei no 9.074, de 7 de julho de 1995;

Deste modo, os atos regulamentares (os regulamentos) da Aneel são exercício de vontade da lei ordinária, in casu, da lei 9427 de 1996 e não a outros "sistemas" ou "microssistemas".

Pensemos: poderia o regulamento da Aneel contrariar lei ordinária que dispusesse sobre compra e venda de coisa móvel (ao regulamentar tal negócio em energia elétrica) ? Sobre as peculiaridades do direito de informação no "direito de energia elétrica" (a concessionária, por exemplo, não pode ser um eletricista do consumidor)? Ou sobre outras questões de direito do consumidor estranhas e inaplicáveis ao setor elétrico?

É bem óbvio que sim.

Podemos, então afirmar que o limite da obediência está circunscrito na relação filial entre a norma que produz e a norma que executa ?

A resposta é afirmativa, pois é o único modo de manter uma obediência adequada das normas, pois a sujeição nasce de uma hierarquia de produção/execução de normas, não de uma hierarquia de status (lei complementar, lei ordinária, regulamentos, etc) da norma.

Os regulamentos da agência reguladora devem obediência às normas que lhe deram condição de existência e validade, e não à todas as normas hierarquicamente superiores pois, como dito, a sujeição nasce de uma hierarquia de produção de normas, não de uma hierarquia de status da norma.

Se assim não fosse, a atividade de regulação, ilustrativamente, estaria impossibilitada face à hipertrofia legal, sendo certo que as diretrizes e políticas públicas evidenciada nos artigos 2º e 3º da lei 9427 de 1996 esbarraria sempre em algum valor pregado por outra norma que nada teria a tratar sobre "energia elétrica" propriamente dita.

Como ensinado pelo memorável doutrinador e pensador Hans Kelsen na teoria em evidência, a hierarquia que o ato normativo inferior (in casu dos regulamentos) deve conter é em relação a sua "lei pai" e aos valores diretamente contidos na Constituição e não a toda e qualquer norma superior.

Entender de forma diversa é ignorar a complexidade do ordenamento jurídico, realidade esta visível e palpável, conforme demonstrado acima, bem como desprestigiar a atividade das agências reguladoras, politizar a atividade jurisdicional, além de figurar como ativismo judicial, o que é temerário ao se falar em políticas e diretrizes públicas.

Necessário lembrar, também, no tocante ao direito regulatório, aos desavisados que a regulamentação da ANEEL, por exemplo, possui ferramenta de grande legitimação e de democratização (além de possuir presunção de legalidade e legitimidade - o que geralmente é esquecido pelo exegeta), qual seja, o sistema "bottom up" (no qual os destinatários das normas participam de sua elaboração - fato geralmente ocorrido por intermédio de audiências públicas), não sendo crível e razoável se falar em violação a outras normas, valores e princípios insculpidos noutros "sistemas legais".

Outrossim, as agências reguladoras foram criadas para tratar de questões específicas e complexas (tal qual o ordenamento jurídico) o que importa em conhecimento técnico (aspecto que foge da compreensão do operador do direito muitas vezes), objeto este que deve anteceder o verbo de ligação regulamentar, a fim de atingir a eficiência necessária ao serviço público.

A "desobediência" da norma é, considerando tudo o que explicamos acima, caminho único da justiça social, da observância ao princípio da separação de poderes, a eficiência relatoria e conseguinte do serviço público, bem como da segurança jurídica, pois, do mesmo modo que uma criança, as normas não saberiam a quem obedecer se todos os adultos pudessem lhe dar ordens.

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* Mario Henrique da Luz do Prado é advogado do escritório JBM Advogados.

 

 

 

 

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* Renan Macedo Ramos é estudante de Direito.

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