Juizados e liberdade de expressão
Alterações legislativas trazidas pelo marco civil da internet podem aumentar a insegurança que envolve a questão da restrição prévia à liberdade de expressão.
sábado, 3 de maio de 2014
Atualizado em 30 de abril de 2014 12:48
O recém sancionado marco civil da internet (lei 12.965/14) estabeleceu, em seu artigo 19, que um provedor de aplicações de internet pode ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo criado por terceiro apenas se não cumprir ordem judicial determinando sua retirada.
A exceção à regra encontra-se no artigo 21. Isto é, se o material contiver cenas de nudez ou atos sexuais de caráter privado, basta uma notificação extrajudicial para gerar a obrigação de eliminar o conteúdo.
Com o intuito de acelerar o julgamento das causas que dependam de ordem judicial, o § 3° do artigo 19 ressalta que essas ações podem ser apresentadas perante os juizados especiais cíveis.
Coincidentemente, na última semana a Câmara dos Deputados atribuiu regime de urgência ao PL 393/11, elaborado pelo Deputado Newton Lima, que retira a exigência de autorização para a divulgação de imagens escritos e informações com finalidades biográficas de pessoas que tenham "dimensão pública" ou envolvidas em "acontecimentos de interesse da coletividade", alterando o artigo 20 do Código Civil.
A coincidência deve-se ao fato de que foi incorporada ao projeto emenda apresentada pelo deputado Ronaldo Caiado, incluindo um parágrafo segundo o qual a pessoa que se sentir atingida "em sua honra, boa fama ou respeitabilidade" em virtude de uma biografia pode requerer a um juizado especial cível a "exclusão de trecho que lhe for ofensivo em reprodução futura da obra".
Incontroverso, portanto, que o marco civil e a alteração do CC, se aprovada, levarão a um aumento exponencial de pedidos de restrição de conteúdos postados na internet e de exclusão de trechos de biografias nos juizados especiais cíveis. Resta saber se esse é o melhor caminho para solucionar esses conflitos extremamente complexos, ou se a proeminência dos juizados poderá ampliar ainda mais as controvérsias que os envolvem.
Do ponto de vista das partes, há sérios problemas. A lei 9.099/95, que disciplina o procedimento dos juizados, não prevê recurso a decisões proferidas antes da sentença. Como as ações envolvendo retirada de conteúdo ou proibição de biografias normalmente são acompanhadas por pedidos de antecipação de tutela, a apreciação do juiz acerca desses pedidos não é sujeita a recurso a órgão superior.
Tanto a pessoa que se sentir ofendida quanto o provedor, ou o autor do conteúdo questionado, não terão à sua disposição mecanismos aptos a questionar essa decisão, o que pode causar danos irreparáveis a qualquer uma das partes caso haja erro.
Além disso, estamos tratando de terreno naturalmente pantanoso. Os conflitos envolvendo liberdade de expressão e direitos da personalidade como honra, privacidade e imagem são complexos por natureza. Não há como a lei prever todos os possíveis choques que podem ocorrer entre eles.
Por isso, a jurisprudência assume especial importância para conferir maior segurança jurídica à sociedade. A atuação do STJ pode mitigar essa insegurança, unificando entendimentos acerca de quais situações possibilitam providência tão séria como a restrição a um conteúdo presente na internet ou em biografia.
A lei 9.099 criou as chamadas "Turmas Recursais", com competência para julgar os recursos às sentenças proferidas pelos juizados. O STJ não admite, porém, recursos especiais questionando as decisões proferidas por esses órgãos. Haverá um problema sério de insegurança jurídica, pois cada Turma Recursal poderá ter um entendimento diferente, sem que haja possibilidade de recurso ao STJ.
As alterações legislativas trazidas pelo marco civil da internet e pela emenda ao PL 393/11 podem aumentar, portanto, a insegurança que envolve a questão da restrição prévia à liberdade de expressão. Um ponto tão fundamental para a democracia não deveria ficar à mercê de decisões liminares não sujeitas a recurso, ou de decisões definitivas que não podem ser apreciadas pelo órgão judiciário uniformizador da interpretação da legislação infraconstitucional no país.
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* Marcelo Frullani Lopes é advogado graduado na USP e sócio do escritório Frullani Lopes Advogados.