Novas configurações a respeito do crime de embriaguez ao volante
As novas configurações do crime de embriaguez ao volante traduzem uma ampliação da vontade do legislador que, talvez por excessivo apego à concisão, não conseguiu buscar o verdadeiro sentido do texto.
domingo, 27 de abril de 2014
Atualizado em 25 de abril de 2014 14:39
Dentre os inúmeros fatos - infelizmente corriqueiros - que assombram nossa sociedade, computa-se o expressivo número de acidentes automotivos nas vias públicas ocasionados pelo abuso no consumo de bebidas alcoólicas pelos condutores de automóveis. O número excessivo de carros, caminhões e motocicletas e a irresponsabilidade dos condutores transformaram o trânsito das cidades e rodovias em verdadeiros campos de batalhas, ceifando inúmeras vidas. Daí o inconformismo da população e a necessidade de se buscar uma legislação que venha ao encontro do anseio popular.
Não por outra razão, esta situação é amplamente debatida na mídia, nas organizações sociais, escolas e, evidentemente, no mundo jurídico. Cabe, portanto, a fim de se introduzir o debate, uma breve diferenciação trazida pela mudança legislativa relativa ao tema.
Estabelecia a antiga redação do artigo 306, CTB (Código de Trânsito Brasileiro): Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Percebe-se, claramente, que a lei exigia a comprovação de que o condutor do veículo estivesse com a concentração de álcool em seu sangue superior ao limite legal. Esta prova deveria ser, necessariamente, científica. Tal fato, por si só, trouxe inúmeros questionamentos ao Judiciário, especialmente quando o condutor se recusava a fazer o teste do "bafômetro" ou exame de sangue, vez que a ninguém é dado fazer prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
No mais, bastava ao condutor do veículo estar com a concentração de sangue superior à permitida por lei para cometer o crime em questão, não havendo necessidade de se comprovar o risco de causar dano (portanto, tratava-se unicamente de crime de perigo abstrato - entendimento majoritário na doutrina e tribunais).
Desta feita, o legislador, na ânsia de solucionar o problema, optou por alterar o dispositivo legal de modo bastante apressado, deixando - mais uma vez - preocupantes brechas legais. Com efeito, o novo artigo 306, CTB, com a redação trazida pela lei 12.760/12, prevê que é crime:
Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.
§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; OU
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
Prima facie, percebe-se que, para tipificar a conduta de embriaguez ao volante, basta que o agente conduza seu veículo com sua capacidade psicomotora alterada. A exigência de comprovação de concentração de álcool no sangue (ou no ar expelido) do condutor não mais pertence à descrição típica (não está mais no caput), sendo apenas uma maneira de comprovar esta alteração psicomotora do condutor (§1º, inciso I).
Já o inciso II inovou, prevendo sinais que indiquem a alteração psicomotora: "cavalo de pau"; "zerinho"; "condução em zigue-zague", "fala enrolada", perda total do equilíbrio, etc. Sendo assim, surge um primeiro questionamento: esta inovação legislativa implicou em um crime de perigo abstrato ou concreto? Paira uma divisão doutrinária e a jurisprudência começa a se dividir também.
Há quem defenda que, caso o crime seja comprovado pelo inciso I (concentração de álcool no sangue ou no ar expelido), trata-se de crime de perigo abstrato; enquanto que, caso provado pelo inciso II, trata-se de verdadeiro crime de perigo concreto, devendo a acusação demonstrar, indubitavelmente, o perigo concreto de dano gerado pela embriagada condução do veículo, sob pena de atipicidade da conduta.
Porém, novas decisões surgem de algumas cortes no sentido de que o crime é sempre de perigo concreto, com o ônus de demonstrar a alteração da capacidade psicomotora, ainda que a concentração de álcool esteja superior ao limite legal (conforme adiante esclarecido). Não fosse suficiente, há que se questionar, também: como provar que o motorista conduzia seu veículo com a capacidade psicomotora alterada de modo a gerar, concretamente, perigo de dano?
O mesmo artigo legal tenta responder essa questão, em seu parágrafo 2º: A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
Dando continuidade ao enfrentamento da questão, o CONTRAN (Conselho Nacional de Trânsito) editou, em 2013, a Resolução 432, que dispõe em seu artigo 5º:
Art. 5º Os sinais de alteração da capacidade psicomotora poderão ser verificados por:
I - exame clínico com laudo conclusivo e firmado por médico perito; ou
II - constatação, pelo agente da Autoridade de Trânsito, dos sinais de alteração da capacidade psicomotora nos termos do Anexo II.
§ 1º Para confirmação da alteração da capacidade psicomotora pelo agente da Autoridade de Trânsito, deverá ser considerado não somente um sinal, mas um conjunto de sinais que comprovem a situação do condutor.
§ 2º Os sinais de alteração da capacidade psicomotora de que trata o inciso II deverão ser descritos no auto de infração ou em termo específico que contenha as informações mínimas indicadas no Anexo II, o qual deverá acompanhar o auto de infração.
De qualquer modo, levando em consideração todo o acima exposto, alguns tribunais têm inovado na interpretação deste dispositivo, tendo em vista que a conduta do caput do artigo 306, CTB, não mais exige a comprovação de concentração de álcool (norma mais benéfica que, portanto, retroage) para a configuração de crime:
"... o que antes era crime, hoje é meio de prova para demonstração de um crime.... A conduta pela qual o réu foi denunciado não mais é crime, tampouco pode ser abrangida pelo novo tipo penal de embriaguez ao volante, pois conduzir veículo automotor com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas é completamente diferente de conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada...1"
Insta consignar, então, que este julgado da 3ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, analisando um caso que se iniciou com a lei antiga e, ao final, lhe fora aplicada a lei nova, entendeu que não é mais crime a conduta caracterizada única e tão somente pelo "bafômetro", já que hoje a lei exige a alteração da capacidade psicomotora. Ou seja, entendeu que o inciso I é apenas um meio de prova, mas jamais um fato capaz de tipificar uma conduta.
Trata-se de um entendimento profundamente inovador, já que, em uma primeira leitura, a lei parece esclarecer que quem estiver acima de 0.6 decigramas de álcool, "automaticamente" terá sua capacidade psicomotora comprometida (crime de perigo abstrato quanto ao inciso I).
Além do mais, seguindo uma curiosa pesquisa feita pelo site Auto Esporte2, diversos juízes espalhados pelo Brasil afora têm seguido este entendimento deveras embrionário. De qualquer forma, é uma posição diferente e que aparenta ganhar corpo. Se essas questões chegarem ao STJ, teremos grande oportunidade de presenciar um debate jurídico bastante enriquecedor.
Além de todas essas questões, deve-se indagar ao aplicador da lei um curioso novo fato trazido pelo legislador: se, a partir de 2012, não é mais necessário comprovar a concentração de álcool no sangue, mas única e tão somente a alteração da capacidade psicomotora, como fazê-lo? Como provar concreta e objetivamente que o condutor está com sua capacidade alterada? Filmagens, depoimentos?
Com a devida certeza, muitos casos serão de grande dificuldade probatória, especialmente em indivíduos com maior resistência ao álcool. Quem estiver com 0.7 decigramas e for bastante resistente ao álcool, fatalmente não apresentará sinais de capacidade psicomotora alterada e, segundo esses novos entendimentos, não praticará nenhuma conduta típica.
Ainda assim, há que ressaltar que tudo o acima abordado refere-se à seara criminal. No aspecto administrativo, pode muito bem o condutor responder à infração, pagando pesadas multas, muito embora não venha a praticar uma conduta penalmente típica.
As novas configurações do crime de embriaguez ao volante traduzem uma ampliação da vontade do legislador que, talvez por excessivo apego à concisão, não conseguiu buscar o verdadeiro sentido do texto. Amplia-se seu alcance, sem, no entanto, mudar sua forma, mas sempre de acordo com o fim colimado, que é a realização de uma Justiça que possa imprimir efetividade jurídica às aspirações da sociedade.
__________
__________
* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.
* Antonelli Antonio Moreira Secanho é advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.