A memória do Judiciário da Bahia
A preservação desse patrimônio é obrigação constitucional das autoridades investidas no comando dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Portanto, aos tribunais competem zelar pela guarda da memória do Judiciário.
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Atualizado em 17 de abril de 2014 11:11
A Constituição de 1988 enumerou os bens que constituem patrimônio histórico da cultura brasileira; interessa-nos analisar "as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais," no âmbito do Judiciário.
A preservação desse patrimônio é obrigação constitucional das autoridades investidas no comando dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Portanto, aos tribunais competem zelar pela guarda da memória do Judiciário.
Em 2011, o STF baixou resolução, criando um selo destinado a identificar os documentos históricos, os processos de grande repercussão, envolvendo personalidades nacionais e internacionais.
Os livros dos cartórios, os autos de processos, os móveis, as louças, as fotos, as vestes e comendas de magistrados, as obras de arte, as práticas na realização dos atos judiciais, a exemplo dos juris, devem ser guardadas e protegidas. Muitos desses bens já desapareceram ou foram destruídos nas comarcas e nas varas judiciais, por displicência no recolhimento e proteção.
A solução dos conflitos pelo Judiciário, através dos processos judiciais, reproduz as questões sociais de um povo em certo momento e, portanto, não são somente papéis sem maiores interesses para os pósteros; os processos criminais permitem conhecer os atos considerados crime pelo Estado em certa época, as motivações para abertura das ações judiciais, os julgamentos e as punições aplicadas, oferecendo elementos para estudo pelos antropólogos e sociólogos.
Os cartórios das varas e comarcas da Bahia possuem processos e livros com valor histórico, contendo ocorrências de tempos passados; essa papelada além de não terem sido recolhidos, estão sendo destruídos pelas traças e cupins e até mesmo pela ação do homem que não avalia o significado de muitos desses bens; os servidores das comarcas pedem, reclamam providências para manutenção, recolhimento ou guarda. Não há resposta dos superiores e as ações individuais de um ou outro servidor é o que se registra de positivo.
Nas visitas que fizemos a todas as comarcas da Bahia, na condição de Corregedor, visualizamos livros e móveis recuperados pelos próprios servidores com recursos próprios; outros tiveram de ajuntar, em sacos plásticos, os pedaços de papéis das folhas dos livros, porque esfarelados pela ação depredadora dos cupins e pelas traças. Infelizmente, não tem mais como recuperá-los, mas os servidores guardam num gesto de desvelo com a memória do Judiciário.
Aqui foi criado e instalado o primeiro Tribunal do Brasil; a busca desse passado não é fácil, e só recentemente, por ocasião das celebrações do IV Centenário do Tribunal de Relação do Estado do Brasil, em 2009, sob a presidência da Desa. Silvia Zariff, foi criado o Memorial do Poder Judiciário, instalado no antigo Salão de Casamentos do Fórum Ruy Barbosa, e destinado a "cultuar as datas e momentos históricos do Judiciário". Encontram-se documentos históricos, a exemplo de cartas de alforria e salvo-condutos para escravos, as urnas de votação e algumas fotos, destacando-se a que mostra uma reunião do Pleno no final do século XIX. Esse material foi exposto em cinco Estados brasileiros, no Tribunal de Justiça de Lisboa e aguarda ação mais ativa dos operadores do direito para que a realidade histórica do Judiciário baiano não desapareça.
Os convênios celebrados com a Universidade Estadual de Feira de Santana para levantamento da documentação histórica, ou com o Mosteiro de São Bento para restauração de livros e documentos são importantes, mas não solucionam os estragos que cupins e traças promovem em grande parte do acervo dos cartórios das comarcas e varas judiciais.
O Arquivo Público da Bahia, considerado a segunda instituição arquivística mais importante do Brasil, tem sob sua guarda a documentação sobre o "Tribunal da Relação do Estado do Brasil e da Bahia", entre os anos de 1652/1822. O Tribunal de Justiça da Bahia não tem condições para guardar, restaurar e higienizar os processos; recomendável, então, imediata celebração de convênio ou termo de cooperação com o Estado para que o Arquivo Público salve a história da Justiça da Bahia.
A simples instalação de uma comarca ou de uma vara é informação difícil de ser obtida.
Não faz muito tempo, um juiz de direito indagou à presidência do TJ/BA sobre a data da instalação da vara da Auditoria Militar; o questionamento foi encaminhado para a Comissão de Memória que repassou para a Corregedoria. No final, depois de muitas dificuldades, descobriu-se que a instalação daquela unidade deu-se no ano de 1980, mas sem maiores detalhes.
As comemorações do IV Centenário da instalação da Justiça no Brasil, na Bahia, sob nossa coordenação, foram prejudicadas pela inexistência de preservação de dados históricos importantes e que não mereceram a menor atenção de nossos governantes. O Tribunal nunca priorizou a guarda de seu passado e por isso foram enfrentadas muitas dificuldades para obtenção de material para o Memorial.
Na busca promovida, encontramos, por exemplo, a doação de móveis antigos para a câmara de vereadores da comarca de Muritiba. O pior é que não há documento que registra essa benesse e nossas tentativas para recuperação foram infrutíferas, pois não encontramos meios.
Houve, em 2010/11, movimentação de algumas comarcas para recolherem e encaminharem à Comissão de Memória objetos que retratassem o Judiciário baiano de antanho, mas de nada adiantou a iniciativa, pois faltava local para guarda; daí a instalação do Memorial que precisa ser acionado para buscar nas Comarcas objetos históricos.
Fotos, móveis, objetos de arte, processos a exemplo de cartas de alforrias de escravos, práticas forenses antigas, históricos de nossos fóruns e de nossos ex-presidentes precisam ser guardados e tivemos de diligenciar juntos aos familiares para obter alguns elementos.
Leis sobre o assunto tem-se a sobrar: a Constituição Federal, decreto 3.551/00 que "Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza imaterial."; recomendação do CNJ para "observância das normas de funcionamento do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário"; resoluções, inclusive da Bahia de 2/13, que estabelece o Programa de Gestão Documental no Judiciário da Bahia e tantas outras normas.
Falta apenas a ação dos gestores para guardar a memória do Judiciário da Bahia que continua sendo depredada.
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* Antonio Pessoa Cardoso é desembargador aposentado do TJ/BA.