O que é isso, companheiro?
As reportagens editadas por Gabeira constituem algo inédito no dia a dia da TV, sempre ocupada com o país macro, as grandes cidades e seus problemas, a política nacional e a economia, as massas urbanas e suas carências, as catástrofes naturais ou viárias, crimes, escândalos rocambolescos de corrupção, etc.
quarta-feira, 9 de abril de 2014
Atualizado em 8 de abril de 2014 13:20
Na Internet está anotado a respeito do livro de Fernando Gabeira com o título acima: "Livro de 1979 em que o autor busca compreender o sentido de suas experiências na luta armada, a militância na organização clandestina, a prisão, a tortura, o exílio."
Em seguida acrescenta a nota que o livro é um "clássico do romance-depoimento", filmado por Bruno Barreto.
O autor da nota vai direto ao ponto ao salientar que Gabeira "busca compreender o sentido de suas experiências" nisso ou naquilo. Não foram palavras ocasionais. Pois a tônica da personalidade de Fernando Gabeira, o eixo de sua personalidade, está na capacidade de refletir a fundo sobre as experiências colhidas ao longo de sua vida. Índice de obstinada responsabilidade para com sua própria pessoa e para com a sociedade em que vive, traço raríssimo no desenho da personalidade nacional brasileira.
Mineiro de Juiz de Fora, Gabeira é carioca por opção. Como carioca ele é borbulhante de generosidade, adere de pronto a uma causa que lhe parece nobre e digna de ser adotada. Como mineiro, após a decisão por impulso, ele se volta para sua intimidade e se interroga, revendo aquela decisão ou confirmando-a se ela merece.
Jornalista por vocação, durante seu exílio, passando por vários países, graduou-se em antropologia na Universidade de Estocolmo, o que poucos sabem. Derrotado, sucessivamente, nas eleições para prefeito do Rio e depois para governador, querido pelo povo, perdeu por estreitíssima margem de votos, enfrentando candidatos fortemente apoiados por Lula.
Foi pena? Difícil saber. Particularmente, avalio que após a derrota para Sérgio Cabral, Gabeira, ao se dedicar de corpo e alma, na TV Globo, às reportagens sobre o Brasil profundo, renovadas a cada semana, está fazendo muito mais para nosso enriquecimento nacional, cultural, histórico e político, do que poderia fazer congelado na posição de prefeito ou governador.
As reportagens editadas por Gabeira constituem algo inédito no dia-a-dia da TV, sempre ocupada com o país macro, as grandes cidades e seus problemas, a política nacional e a economia, as massas urbanas e suas carências, as catástrofes naturais ou viárias, crimes, escândalos rocambolescos de corrupção, etc. Muito diferente é o clima das incursões de Gabeira no país que se esconde dos olhos profanos da publicidade e da curiosidade ligeira da mídia. Tais incursões Brasil adentro ganham ar de iniciação. Porque são aventuras por regiões afastadas, sem estradas nem caminhos transitáveis, rumo a populações que não constam do mapa, festivais arcaicos, personagens fantásticos, cultos desaparecidos, cidades históricas como São João Del Rey, "onde os sinos falam", a entrevista com Frei Cláudio, o presídio da Ilha Grande, a Ilha de Marajó, onde entrevista o xamã, o primeiro Mosteiro Zen da América Latina, o Morro do Bumba, onde Deus está vivo, o rio Madeira na sua cheia histórica, as consequências da seca no rio Piracicaba e muito mais.
O Brasil profundo é o país da "longa duração", conceito chave da nova historiografia francesa, representada pela famosa Escola dos Annales (Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel). O historiador Jacques Le Goff, acabado de falecer (abril 2014), marca seu avanço sobre o positivismo e o marxismo, enriquecendo a leitura da história com novo parâmetro, o estudo das "mentalidades", o imaginário dos homens através do tempo. Esta nova leitura da história revalorizou a compreensão da Idade Média, até agora caluniada como "idade das trevas", hoje revelada como dez séculos de luz, não um período sombrio, mas alegre, festivo e criador como poucos.
Fernando Gabeira, nas suas incursões Brasil adentro, lembra um peregrino medieval da Estrada de Santiago, descobrindo maravilhas ocultas ao trocar o tempo urbano, da urgência febril, pelo tempo esotérico da "longa duração" no qual a vida assume a forma e o ritmo sereno do eterno retorno do mesmo.
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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista.