As astreintes e a boa-fé: uma releitura do artigo 461 e 461-a do CPC
O Poder Judiciário deve se atentar ao fato de que tal medida coercitiva deve conviver de forma harmônica no sistema com outros princípios, dentre eles o da economia e celeridade processual e da boa-fé.
sexta-feira, 28 de março de 2014
Atualizado em 27 de março de 2014 15:12
Não é necessário muito esforço para identificar que o principal problema do Poder Judiciário brasileiro apontado pelos jurisdicionados e operadores do direito é a morosidade da prestação jurisdicional, o que gerou a necessidade de, dentro de um emperrado e burocrático sistema processual, criar mecanismos para tornar efetivas as decisões judiciais.
Todas as recentes modificações procedimentais das últimas décadas tem como foco a celeridade processual, estando as astreintes entre essas medidas capazes de tornarem efetiva a prestação jurisdicional.
As astreintes tem origem na França e foi inserida no ordenamento jurídico francês como uma forma de coerção do devedor a cumprir os comandos judiciais. Em 1994, com a edição da lei 8.952/94, as astreintes foram inseridas no CPC, através do art. 461 como forma de dar maior exequibilidade às obrigações de fazer e não fazer, tendo sido estendidas, também, às obrigações de entrega de coisa certa, com a inserção do art. 461-A do CPC através da lei 10.444/02.
A principal função das astreintes é, portanto, compelir o devedor a adimplir a obrigação, forçando-o psicologicamente a entregar a prestação devida ao credor, sob pena de que referida multa seja revertida em favor deste, sem, contudo, que se caracterize como ressarcimento. Isso porque, para o Direito brasileiro, as astreintes não possuem caráter punitivo ou indenizatório e sim coercitivo, ao contrário de outras legislações, como a americana, em que medidas coercitivas como a multa tem caráter punitivo. No entanto, as astreintes possuem nitidamente caráter acessório, eis que tratam-se de medida de coerção para o cumprimento de uma obrigação de fazer, de não fazer ou de entrega de coisa.
Os dispositivos legais ora analisados, embora estejam inseridos dentre as normas procedimentais, possuem conteúdo, de certa forma, de direito material, de modo que as astreintes, dado o seu caráter acessório, não podem ser superiores às obrigações principais, sob pena de tornar mais vantajosa para na parte interessada do que a execução da obrigação.
De acordo com o texto dos arts. 461 e 461-A do CPC, nas sentenças proferidas nas ações de obrigação de fazer, de não fazer e de entrega de coisa, o juiz concederá a tutela específica da obrigação; ou seja, esta ação tem por objetivo principal a entrega da prestação, de modo que as astreintes são, portanto, um meio para que o credor obtenha esta prestação do devedor, caso não a entregue dentro do prazo estipulado na sentença ou em lei.
Entretanto, ao analisar os recentes julgados dos tribunais pátrios sobre o tema, seja das Cortes Estaduais ou dos Tribunais Superiores, verifica-se que a grande maioria versa sobre a redução dos valores fixados, o que demonstra a falta de razoabilidade no momento da fixação das astreintes.
A falta de razoabilidade na fixação aliada à utilização da chamada "Lei de Gerson"1 pelo credor, faz com que este, em muitos casos, prefira executar a multa (astreintes) do que a própria obrigação principal. Isso porque, a falta de razoabilidade na fixação das astreintes faz com que o credor, propositadamente, agrave o seu prejuízo a fim de ver referida sanção tornar-se vantajosa para executa-la.
Tal comportamento vai na contramão da boa-fé que deve pautar a atuação das partes contratantes e também daquelas que litigam no processo. As recentes modificações legislativas, também com o objetivo de diminuir os conflitos entre as partes, inseriu no ordenamento jurídico a ideia de cooperação, de modo que a lealdade (e, portanto, a ética) é considerada um dever anexo nas relações jurídicas, seja de cunho processual ou material.
Em tais hipóteses verifica-se de forma inequívoca a necessária aplicação do que a doutrina denomina de duty to mitigate the loss, ou seja, da aplicação da obrigação de mitigar o próprio prejuízo.
A doutrina do duty to mitigate the loss funda-se inequivocamente na boa-fé que, como cláusula geral que é, deve ser respeitada em todas as relações jurídicas, na medida em que após a entrada em vigor da novel legislação civil, a boa-fé se tornou um dos pilares de sustentação do Direito Civil ao lado da função social.
Sobre essa tese foi editado o Enunciado 169 na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, cujo conteúdo é o seguinte: 169. "O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo."
A proposta do enunciado, elaborada por Vera Maria Jacob Fradera, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, representa muito bem a natureza do dever de colaboração, presente em todas as fases contratuais e decorre do princípio da boa-fé objetiva e daquilo que consta do art. 422 do CC.
O enunciado foi inspirado no art. 77 da Convenção de Viena de 1980, sobre venda internacional de mercadorias, no sentido de que: "A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída".
Pela leitura das razões da proposta do enunciado formulado pela professora Vera Maria Jacob Fradera, verifica-se que a referida tese tem relação direta com o princípio da boa-fé objetiva, na medida em que o dever de mitigar o próprio prejuízo tem natureza acessória em relação à obrigação principal, ou seja, trata-se de um dever anexo, que decorre da lealdade com que as partes devem agir durante toda a relação jurídica.2
A quebra dos deveres anexos, também já foi objeto de enunciado da I Jornada de Direito Civil, em que se concluiu que a quebra de tais deveres gera a responsabilidade de indenizar, pois estar-se-ia diante de um inadimplemento negocial.
Esta ideia deflui da teoria de Clóvis do Couto e Silva de que a obrigação não pode ser mais encarada como uma relação simples credor-prestação-devedor3 . Deve-se deixar de lado essa estrutura clássica de obrigação e passar a encará-la como algo mais complexo em que não apenas a prestação em si seja o único dever daquele que deve prestá-la. Em outras palavras, hodiernamente, a obrigação passou a ter uma série de deveres anexos, tais como a boa-fé objetiva.
Tal entendimento, sem sombra de dúvidas, deve pautar a atuação do credor da prestação tanto no momento da execução da obrigação quanto das astreintes. Veja que o credor muitas vezes espera aumentar de forma substancial o valor da multa diária para executa-la, deixando de lado a execução da obrigação principal, de forma diametralmente oposta ao dever de mitigar o próprio prejuízo, decorrente da boa-fé, incidindo em nítida hipótese de abuso de direito.
É muito comum a adoção de referida postura em ações movidas contra grandes corporações e instituições financeiras em que o credor, podendo pedir que o juiz se sub-rogue na execução da obrigação, prefere quedar-se inerte para, após muito tempo, informar o descumprimento da decisão judicial, apresentando desde logo a planilha do vultuoso crédito a ser executado. Em outras palavras, o credor invoca para si a aplicação da "Lei de Gerson" para executar valores milionários, não tendo mais relevância para ele o cumprimento ou não da obrigação principal.
Não se está aqui defendendo o descumprimento de decisões judiciais, mas sim que seja levado em consideração a ideia central dos arts. 461 e 461-A do CPC que nada mais é do que promover a tutela específica da obrigação. É muito mais econômico, tanto do ponto vista financeiro como do processual, que seja expedido um mero ofício para os cadastros de inadimplentes, por exemplo, para que seja retirado o nome da parte interessada de tais registros do que expedir um mandado de intimação para que a corporação ou instituição financeira promova o cumprimento da obrigação. Em tais hipóteses é frequente a impossibilidade sistêmica para a imediata retirada, passando referidas pessoas jurídicas a serem devedoras de valores estratosféricos por não ter cumprido uma obrigação de valor extremamente inferior.
A situação é de tal forma paradoxal que o dispositivo que foi inserido com a finalidade de tornar mais célere o processo mediante à coerção do devedor em entregar a prestação, passou a gerar uma situação de tamanho desequilíbrio ao ponto da parte interessada aumentar o seu patrimônio através da execução da multa sem que haja uma justa causa para tanto. E o paradoxo é que a celeridade buscada passou a ser a causa de inúmeras medidas impugnativas para readequação das astreintes que, dada a flagrante falta de razoabilidade e proporcionalidade - e, portanto, configurando a grave lesão do devedor - são recebidas com efeito suspensivo, tornando ainda mais morosa a prestação jurisdicional, qual seja, a tutela específica da obrigação.
Assim, ao fixar as astreintes, o Poder Judiciário deve se atentar ao fato de que tal medida coercitiva deve conviver de forma harmônica no sistema com outros princípios, dentre eles o da economia e celeridade processual e da boa-fé. Ao ter esses princípios como elemento fundamental na aplicação do direito, certamente o Poder Judiciário adotará medidas sub-rogatórias para o cumprimento da obrigação, atingindo a finalidade da norma e, assim, evitando o enriquecimento injustificado do credor que pratica condutas contrárias a boa-fé a fim de enriquecer-se de forma injustificada.
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1 Os leitores mais jovem talvez desconheçam o significado da expressão "Lei de Gerson". Referido termo traduz o fenômeno que assola a sociedade brasileira caracterizado pela ideia de que deve-se levar vantagem em todas as situações. Tal expressão surgiu em razão de uma propaganda de uma marca de cigarros veiculada na década de 70, em que o jogador e capitão da seleção brasileira campeã da Copa do Mundo de 1970, aparece fumando um cigarro desta marca. Durante a conversa com seu interlocutor, ao ser questionado sobre o motivo de escolher tal marca de cigarros, afirma que a escolheu porque sempre quer levar vantagem. Desde então, as condutas afastadas da ética com a intenção de levar vantagem sobre outrem passou a ser justificada pela chamada Lei de Gerson.
2 TARTUCE, Flavio. A ao-fé objetiva e a mitigação do prejuízo pelo credor. Esboço do tema e primeira abordagem. https://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigos&totalPage=2. Consultado em 05.03.2014
3 Couto e Silva, Clóvis V. do, Obrigação como processo, São Paulo, Bushatsky, 1976.
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* Danilo Joaquim de Lima é especialista em Direito Contratual e advogado do escritório CMMM - Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados.