Embargos infringentes e críticas infundadas
A lei 8.038/90 não derrogou o artigo 333, I, do RISTF, pois não há declaração expressa a respeito.
terça-feira, 25 de março de 2014
Atualizado em 24 de março de 2014 14:09
Tenho deparado críticas ao ilustre ministro Celso de Mello, em razão de voto na AP 470 pela admissibilidade de embargos infringentes pelo réu que, no STF, conte ao menos quatro votos em ação penal originária. Algumas, formuladas por ignorantes do Direito, mas outras, por quem deveria conhecê-lo, por dever de ofício. O que parece comum a tais críticos é o fato de, com toda certeza, não terem lido o voto que criticam, ou, não o terem compreendido, movidos talvez por razões emocionais, naquilo que se conhece como "dissonância cognitiva" (recusa de explicações racionais que implicam contestar as crenças estabelecidas da pessoa).
Tenho para mim que a viabilidade, em tese, dos aludidos embargos consubstancia conclusão de caráter matemático, a partir de premissas incontestáveis. O artigo 333, inciso I, do RISTF enseja a utilização dos embargos infringentes aos réus que contem um mínimo de quatro votos favoráveis. A teleologia da norma é perceptível ictu oculi: se, num universo de onze ministros, uma quatrinca vota em favor do réu, é sinal de que algo há cujo exame merece aprofundamento. Se, no processo civil, basta um voto a favor do sucumbente para que se admitam os infringentes (desde que o acórdão majoritário tenha reformado a decisão recorrida), com muito maior razão devem ser admitidos no campo penal, em que se encontra em jogo a liberdade das pessoas.
A norma do artigo 333, I, do RISTF, embora formalmente regimental, é materialmente legislativa, porquanto editada pelo STF no exercício do poder normativo primário a si conferido pelo art. 119, § 3º, alínea "c" da CF/69. É verdade que, com o advento da CF/88, essa atribuição normativa excepcional lhe foi retirada, porém não menos verdade é que a norma do art. 333, I, do RISTF foi recebida com força e eficácia de lei pela ordem constitucional de 1988, uma vez que editada pelo STF quando ainda dispunha de tal poder. Consequentemente, sua derrogação só poderia operar-se por lei formal do Congresso Nacional, que, todavia, não o fez até agora, apesar de ali haver tramitado o PL 4.070/98, de iniciativa do Poder Executivo, que o previra, mediante alteração do texto da lei 8.038/90, mas que foi expressamente rejeitado pelas duas Casas Legislativas. Em face disso, foi promulgada a lei 9.756/98, que "dispõe sobre o processamento de recursos no âmbito dos tribunais" sem alteração do art. 333, I, do RISTJ.
Por sua vez, a lei 8.038/90, e que tem por objeto normas de direito processual no âmbito do STF e do STJ, não derrogou o artigo 333, I, do RISTF, pois não há declaração expressa a respeito, não regulou toda a matéria de que trata o RISTF no tocante à ação penal originária, e não é incompatível com a norma de seu art. 333, I. Derrogação, como sabido, só se verifica na ocorrência de uma dessas hipóteses, nos termos do disposto no art. 2º, § 1º, da lei de introdução às normas do Direito brasileiro (antiga lei de introdução ao Código Civil). Essa, a realidade jurídica no que tange à admissibilidade, em tese, dos embargos infringentes. Tentar fugir disso é, como se diz vulgarmente, "forçar a barra", com o devido respeito aos que pensam diversamente.
Não sou advogado do ministro Celso de Mello, o qual, aliás, não precisa de quem o defenda. Sua defesa, quanto ao episódio, resulta, ipso facto, do brilhante voto que proferiu, e que consubstancia verdadeira aula magna de Teoria Geral do Direito. Mas, embora ele não necessite de defesa, senti-me no dever de escrever estas notas, não propriamente em virtude da admiração que lhe tenho desde 1965, ou seja, há praticamente 50 anos, desde quando, ainda calouros como colegas de bancos acadêmicos na nossa Alma Mater, a querida Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, já demonstrava um brilhantismo incomum, prenunciando as alturas a que iria chegar no mundo jurídico nacional, mas, acima de tudo, pelo fato de que minha alma de advogado é sensível às injustiças, ainda mais quando consistentes em críticas sem fundamento, feitas por quem não gostou, apesar de não ter lido ou, tendo-o feito, não compreendeu o objeto de sua crítica.
Não é imaginando que os juízes podem tudo, inclusive criar "direito", com desrespeito às leis do país, de modo a que se faça a "Justiça" que desejamos por a julgarmos necessária ou adequada a um determinado caso concreto, ou simplesmente para que se encurte o tempo dos processos, que, com isso, solucionaremos os grandes problemas do país. Em verdade, agindo desse modo apenas aprofundaremos o fosso entre nossos ideais e a realidade que, de fato, vai sendo construindo ao arrepio do Estado de Direito. Em última análise, a solução dos grandes problemas nacionais tem como ponto de partida inarredável o rigoroso respeito à ordem jurídica vigente, ainda que, à primeira vista, isso não se conforme à nossa opinião ou aos nossos desejos em determinados momentos.
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* Lionel Zaclis é advogado do escritório Barretto Ferreira e Brancher - Sociedade de Advogados.