Novo Código de Processo Civil: "Qual é o Poder Judiciário que queremos?"
Este é o momento oportuno para refletirmos a respeito do perfil do papel do Judiciário diante da nova lei que está por vir.
sexta-feira, 7 de março de 2014
Atualizado em 6 de março de 2014 11:27
§1º. Um pouco do contexto político e social por trás do Novo Código de Processo Civil
Nos últimos vinte anos, diversas reformas legislativas alteraram vários dispositivos do CPC de 1973, abalando o sistema. Mais precisamente: 65 leis alteraram o CPC de 1973 desde a sua entrada em vigor, sendo que 46 delas foram editadas após a década de 1990!
Sentiu-se, a partir daí, a necessidade de se elaborar um novo diploma legislativo para regulamentar o processo civil brasileiro. Várias são as causas que explicam essa hiperinflação legislativa em matéria de direito processual, mas o importante a se ressaltar é que a "intenção" do legislador para fazer uso de uma noção cara à hermenêutica clássica - sempre esteve voltada a tornar a prestação da tutela jurisdicional mais justa e célere.
Esse objetivo em certa medida passou pelos dispositivos do Novo CPC, em particular quando do início da sua tramitação legislativa. Passados pouco mais de três anos desde então, muitas das inovações que foram inicialmente propostas acabaram sendo relegadas pelo legislador. E o que é pior: alguns dispositivos de caráter duvidoso para a efetividade do processo acabaram sendo inseridos no projeto.
Tendo em vista que o Novo CPC caminha para definitiva aprovação, é o momento oportuno para refletirmos a respeito do perfil do papel do Poder Judiciário diante da nova lei que está por vir.
§2º. Os bons caminhos traçados pelo Novo Código
A maior causa de descontentamento do cidadão em relação ao Poder Judiciário pode ser atribuída à longa espera para a obtenção de uma resposta definitiva. Tal é a deficiência mais facilmente auferível aos olhos do leigo.
A espera imposta a quem se submete ao Poder Judiciário em busca da solução de um determinado conflito é muito superior a qualquer intervalo de tempo que possa ser considerado razoável para a formação do convencimento judicial. Trata-se do proclamado "dano marginal do processo" (na Itália, Enrico Finzi, Piero Calamandrei e mais recentemente, Italo Andolina).
A respeito disso, o Novo Código contém alguns dispositivos que se destinam a atuar em mais de uma frente e que são de fato aptos a combater o problema da lentidão do Poder Judiciário (ainda que de forma modesta), concretizando assim o direito constitucional à razoável duração do processo.
a. Às partes a sucumbência recursal. Segundo o artigo 85, § 1º, do Novo Código "são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente".
O grande problema do sistema recursal brasileiro, considerado por muitos como um "vilão" para a efetividade do processo, não é o suposto número excessivo de recursos previstos, mas sim o efeito suspensivo prevalente na imensa maioria dos recursos e a sua utilização desarrazoada.
Na prática, verifica-se que muitos dos recursos que chegam aos nossos tribunais são desprovidos de fundamentação adequada e configuram em essência mero inconformismo da parte sucumbente. Por certo isso já poderia ser repelido nos dias de hoje com a aplicação do artigo 17, inciso I, do CPC de 1973.
A nosso ver, deve ser considerado não fundamentado o recurso que, a par da decisão judicial que visa a combater, limita-se a se insurgir contra literal disposição de lei ou orientação jurisprudencial consolidada, ainda que não sumulada, sem demonstrar os motivos que justifiquem a superação desse entendimento.
Logo, com a entrada em vigor do Novo Código (e com a previsão do novo encargo financeiro decorrente da sucumbência recursal), espera-se que o ato de recorrer decorra de uma escolha racional das partes e não seja mais uma tática para postergar a duração do processo.
b. Aos magistrados a ordem cronológica. Segundo o artigo 12 do Novo Código "os órgãos jurisdicionais deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão".
Quer-se diminuir com isso o subjetivismo do julgador quando da escolha dos casos a serem decididos, uma vez que em virtude da ausência de regra similar, muitos processos repousam nos cartórios literalmente "à espera" de uma decisão, enquanto outros são tratados como prioritários.
c. À coletividade a "molecularização" dos conflitos. Outra inovação que em certa medida também contribui para tornar a prestação da tutela jurisdicional mais célere a partir de um tratamento "molecular" dos conflitos é a instituição do chamado incidente de resolução de demandas repetitivas e da conversão das demandas individuais em coletivas.
Havendo a repetição de processos que versem sobre uma mesma questão de direito, será cabível a instauração do incidente, o que implicará a suspensão desses processos por pelo menos um ano, prazo legal estabelecido pelo artigo 996 do Novo Código para o julgamento do incidente.1 Tendo este sido julgado, a tese jurídica então fixada será aplicada a todos os casos pendentes e aos casos futuros que versarem sobre idêntica questão.
§3º. A busca do Novo Código pela qualidade da tutela jurisdicional
O serviço público prestado pelo Estado deve primar pela qualidade. O jurisdicionado não pode e não deve se satisfazer apenas em ter a sua disposição um processo célere, devendo exigir que a decisão proferida no seu caso seja também justa (mesmo que contrária aos seus interesses).
a. Para os jurisdicionados. O primeiro aspecto que nos permite afirmar que o Novo Código se preocupa de maneira efetiva com a qualidade das decisões judiciais é o incremento da participação das partes no processo de formação do convencimento judicial. Segundo o artigo 10 do Novo Código "em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício".
No processo cooperativo, modelo de processo civil característico do atual Estado Constitucional, não se pode conceber um procedimento que não seja estruturado senão a partir de um diálogo constante entre o juiz e as partes ao longo de todas as fases procedimentais, inclusive a respeito daquelas questões que o juiz pode conhecer de ofício. Tutela-se assim, de maneira mais efetiva, o princípio do contraditório.
É possível constatar também a preocupação do legislador em concretizar por meio do processo judicial o princípio da isonomia, especialmente a partir da valorização dos chamados "precedentes judiciais".
O Código projetado não se limita a estabelecer normas de caráter didático a respeito da necessidade de se respeitar as decisões dos Tribunais Superiores, mas estabelece também um novo dever de motivação das decisões judiciais.
Não é por outro motivo que o artigo 499, § 1º, incisos V e VI, do Novo Código estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial (seja ela interlocutória, sentença ou acórdão), que se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos. Ou ainda, que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Em sentido semelhante, o artigo 520, §6º do Novo Código estabelece que a modificação de entendimento jurisprudencial consolidado deve se dar a partir de uma fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. O Novo Código, aliás, procura tutelar a segurança jurídica sob a óptica da previsibilidade impondo aos tribunais o dever de uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, integra e coerente (artigo 520).
Essa estabilidade jurisprudencial apregoada pelo Novo Código, por óbvio, não se confunde com uma indesejada imutabilidade da orientação pretoriana. Até mesmo porque nos casos de modificação de entendimento jurisprudencial consolidado, já resta prevista a aplicação da técnica da modulação dos efeitos (atualmente restrita ao âmbito do STF).
Ou seja, de acordo com o artigo 520, §5º, do Novo Código, na hipótese de alteração de entendimento jurisprudencial: "o Tribunal poderá modular os efeitos da decisão que supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo efeitos prospectivos".
b. Para os "operadores do direito". Os jurisdicionados não foram os únicos a se beneficiar em certa medida com o Novo Código. Também os assim chamados "operadores do direito" tiveram muitos dos seus anseios atendidos pela nova legislação. Para os advogados, em particular, pode ser considerada uma grande vitória a previsão de um "tabelamento" dos honorários advocatícios para as causas em que for vencida a Fazenda Pública.
De acordo com o artigo 20, § 4º, do atual CPC, nessas causas, os honorários serão fixados pelo juiz por equidade, sendo possível, portanto, a fixação de honorários sucumbenciais em patamar inferior àquele previsto no artigo 20, §3º, do CPC/73.
De há muito, aliás, a doutrina vem sustentando a inconstitucionalidade desse dispositivo, por considerá-lo contrário à garantia do tratamento igualitário das partes no processo. Não obstante essas críticas, fato é que na prática muitos juízes tem se valido dessa atribuição que lhes foi conferida para fixar quantias irrisórias a título de honorários se comparadas aos valores das condenações.
Em atenção a essa prática, o artigo 85, § 3º do Novo Código estabeleceu em seus incisos limites máximos e mínimos que deverão ser observados pelo juiz quando da fixação dos honorários sucumbenciais nas causas em que for vencida a Fazenda Pública.
Embora com essa nova disciplina ainda possam ocorrer situações de tratamento não igualitário entre as partes, inegavelmente consiste em salutar inovação que prestigia a advocacia enquanto função essencial à administração da Justiça.
§4º. Os caminhos que até agora deixamos de trilhar
Durante a tramitação legislativa de um projeto de lei da envergadura de um CPC é natural que muitos dos dispositivos inicialmente propostos acabem não constando da versão definitiva.
O projeto conforme inicialmente apresentado no Senado Federal, por exemplo, não mais previa o cabimento da chamada ação declaratória incidental. O objeto da coisa julgada, assim, seria estendido às questões prejudiciais decididas na motivação da sentença independentemente da provocação do interessado e desde que observado o contraditório. Garantia-se, com isso, uma resolução "integral" do conflito sem afrontar com isso qualquer garantia constitucional.
No entanto, por conta de uma má compreensão desse fenômeno, o legislador voltou a incluir a ação declaratória incidental nas últimas versões do projeto.
Essa, contudo, não é a grande oportunidade perdida pelo legislador reformador. Poderíamos lembrar também de algumas outras como a possibilidade inicialmente prevista de flexibilização do procedimento e da regra da estabilização da demanda.
Sem dúvida, a principal oportunidade perdida pelo Novo Código, conforme a última versão aprovada, foi deixar de prever o fim do efeito suspensivo ope legis do recurso de apelação. No projeto inicial apresentado ao Senado Federal, o efeito suspensivo apenas seria atribuído pelos tribunais em hipóteses excepcionais.
Perde-se, portanto, a oportunidade de conferir maior efetividade às decisões judiciais e alterar a concepção a respeito do primeiro grau de jurisdição, encarado nos dias de hoje como uma etapa inicial meramente preparatória para o restante do processo jurisdicional.
Poderia ter também o Novo CPC disciplinado temas importantes e atuais, como um livro dedicado ao processo coletivo e a execução extrajudicial. Não se trata aqui de se defender a inadmissível execução feita pelo próprio credor (tal como se defende em muitos projetos de lei na execução fiscal, por exemplo), mas deixar a cargo do juiz apenas os atos essencialmente jurisdicionais. Os demais poderiam ser exercidos por advogados devidamente habilitados pelo poder público, ou seja, a realização de atos práticos e materiais que viabilizasse o cumprimento da obrigação estampada no título executivo.
§5º. Por onde não devemos seguir
Em uma das últimas sessões da Câmara dos Deputados em que se deliberou a respeito do Novo CPC, foi aprovado um dispositivo que põe fim a chamada penhora online conforme a conhecemos. Segundo o artigo 298, caput, do Novo Código, então aprovado pelos deputados: "o juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para a efetivação da tutela antecipada".
Essa redação guarda correspondência com os atuais artigos 461, §§4º e 5º, e 461-A, do CPC de 1973, elogiados internacionalmente por conferirem efetividade às decisões que antecipam os efeitos da tutela.
No entanto, o famigerado parágrafo único desse novo artigo 298 estabelece que "a efetivação da tutela antecipada observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, no que couber, vedados o bloqueio e a penhora de dinheiro, de aplicação financeira ou de outros ativos financeiros".
Em defesa desse retrocesso (inimaginável quando do início da elaboração do Novo Código), são propalados diversos discursos demagógicos como o eventual abuso praticado por alguns juízes que determinam esse tipo de constrição patrimonial. Ou seja, os magistrados foram julgados pelos legisladores e condenados!
Todo magistrado, enquanto humano e detentor do imperium estatal, está sujeito a cometer erros e abusos das mais diversas naturezas. Para combater isso o sistema disponibiliza às partes prejudicadas uma série de recursos e ações impugnativas autônomas. O que não pode ser remediada é a ausência de atribuição de poderes ao magistrado para que ele possa cumprir a missão constitucional que lhe foi incumbida.
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1 "Art. 996. O incidente será julgado no prazo de um ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. §1º. Superado o prazo previsto no caput, cessa a suspensão dos processos prevista no art. 990, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário. §2º O disposto no §1º aplica-se, no que couber, à hipótese do art. 997"
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* André Gustavo Orthmann é advogado do escritório Lucon Advogados.
* Paulo Henrique dos Santos Lucon é advogado do escritório Lucon Advogados.
* Ronaldo Vasconcelos é advogado do escritório Lucon Advogados.
* João Paulo Hecker da Silva é advogado do escritório Lucon Advogados.
* José Marcelo Menezes Vigliar é advogado do escritório Lucon Advogados.