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Falta à Justiça o senso de proporção

O Brasil retrocede 120 anos na sua história de luta pela abolição e a Justiça silencia diante de um quadro de escravidão maquiada no âmbito do Mais Médicos

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Atualizado em 18 de fevereiro de 2014 15:35

Nos últimos meses, vimos a ministra do Supremo, Cármen Lúcia Antunes Rocha, designar reunião para discutir com biógrafos e biografados publicações não autorizadas das ilustres celebridades. Não sabemos qual a conclusão desse debate, como também desconhecemos suas consequências para os milhões de brasileiros que não conseguem dormir aguardando o desfecho da relevante questão.

Por outro lado, o Judiciário volta o seu olhar para as manifestações de ruas, hoje contaminadas pela presença de "black blocs" ("jovens cretinos", em tradução livre) que desafiam as autoridades de segurança e, quando ocultos pelas sombras, ou descobertos pelos holofotes, investem contra perigosas vidraças e ateiam fogo, tal qual o fizeram os inquisidores contra bruxas na Idade Média, em veículos de transporte de passageiros que trafegam arrogantemente pelas avenidas sem o seu consentimento.

Há que se falar ainda na concessão ou rejeição de liminares para o bem estar de presos notáveis; o número de visitas, o trabalho fora das grades, o tamanho das celas, o tempero dos alimentos, a punição pelo uso irregular do telefone, a preocupação com a origem de recursos para o pagamento de multas etc.

Os recentes "rolezinhos", também sob o cuidadoso olhar dos juízes, não diferem muito das arruaças juvenis do passado. Dizem que há questões sociais subjacentes. Sabe-se lá, vivemos tempos modernos, mas não importa.

Moleques, traquinas, arteiros, danados, assim exclamavam pais, avós, vizinhos e estranhos, quando nos pilhavam nas ruas pisando em canteiros, caçando passarinhos, acertando bolas de futebol nas janelas, gritando sem o respeito pela noite, brigando a troco de nada, jogando cabeças de negro para surpreender e assustar os desavisados. Muitas vezes tínhamos que sair em disparada quando uma das nossas vítimas mais zangadas, aliás, justamente iradas, nos perseguiam portando varas e chicotes ou apenas os punhos sequiosos por um revide ou, simplesmente, para nos aplicar um castigo exemplar.

As varinhas e as surras nada fizeram para nos corrigir. Só envelhecemos. Doeu muito mais.

As prisões brasileiras, estas, sim, impõem contínua atenção e determinação das autoridades do judiciário. Ali se vê o aviltamento do ser humano, a integridade física em constante risco, a humilhação, o desamparo, o pesar, o infinito e inexorável pesar, tudo resultante do descaso, da desídia, do desamparo, e, pior, da indiferença. - Quem se importa com miseráveis assassinos e ladrões? - Eles que suportem o flagelo do inferno nesta terra que cobriram de sangue.

Assim, a indignação e a adoção de providências passam rápidas e logo são esquecidas, principalmente, enquanto permanecer contido e disfarçado o circo de horrores das cabeças decepadas, e se amesquinhar o interesse da mídia.

Afinal, a educação e a saúde têm preferência no cenário político nacional e a sociedade merece, há muito, desfrutar dessas necessidades que constroem a sobrevivência condigna.

Entretanto, existe atualmente um assunto que pouco tem chamado a atenção do Judiciário, mas que não pode ser deixado de lado porque os agentes do delito são os Poderes da República.

Um governo que se propõe democrático, nascido e feito homem na defesa da proteção dos trabalhadores, que orgulhosamente estancou a hemorragia da miséria no país, que elevou o salário mínimo e alcançou os mais baixos índices de desemprego, comete hoje ato vil que ofusca todas as virtudes alinhadas.

Movido pelo pretexto de acudir os brasileiros nos mais recônditos rincões do território nacional, que gritam por socorro para a cura dos males do corpo, o governo importa médicos escravos, médicos que aqui já chegam de joelhos, (excetuados os fundamentalistas), sem alternativa, sem escolha, sem esperança.

O Brasil, para cumprir um trabalho que lhe compete, preferiu importar gente de um país opressor, mas lhe negando o direito de livrar-se da opressão.

O advogado-geral da União, Luís Adams, abençoa toda a operação.

Afinal trata-se de um acordo legítimo celebrado com a OPAS que intermedeia a "Sociedade Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Cubanos", organismo respeitado e que negocia com dezenas de países.

Pura mistificação. Os navios negreiros também navegavam sob a bandeira de ilustres corporações.

Como justificar o fato de que esses médicos só possam deixar o país se os seus parentes permanecerem reféns do Estado exportador? Como, portanto, pedir asilo? Como admitir que a maior parte dos seus ganhos (mais de 75%) seja transferida para os cofres de Cuba? Como aceitar que esses médicos só possam tirar férias na sua casa cubana? De que lhes servem os passaportes, se é que os possuem?

O exercício da profissão os equipara aos médicos estrangeiros; mas a desigualdade de tratamento transforma a uns em respeitáveis cidadãos e a outros em pobres criaturas.

Declaração recente de um obediente porta-voz do governo sustenta, mediante o uso do cinismo e do caradurismo, que, na verdade, o contrato é apenas um acordo de cooperação para reciclagem de médicos, ou para sua formação e aperfeiçoamento, o que não ensejaria direitos trabalhistas.

Ora, aqui do que menos se trata é de direitos trabalhistas, mas, sim, da violação de direitos humanos em uma sociedade democrática.

O Supremo, em decisão histórica, e unanimidade surpreendente, julgou válido e legítimo o regime de cotas para o acesso de negros nas universidades brasileiras. Agora, dando asas à imaginação, vamos presumir que a ilha de Raul Castro se constituísse numa terra de afro-descendentes. Pode alguém supor, em sã consciência, que o governo brasileiro ousasse celebrar um acordo de cooperação com a OPAS para um programa em que médicos negros se submetessem a uma condição diferenciada, a uma escravidão disfarçada?

Esse contrato ou acordo comercial de especialização, seja qual nome se lhe dê, celebrado pelo governo brasileiro, causa asco e repulsa.

O governo presume estar de mãos limpas porque tudo isso é da responsabilidade do poder mal constituído daquela Ilha do Caribe.

- Há que se respeitar a autodeterminação dos povos nem que seja para a exploração de trabalhadores.

- Que me importa? - Quem os pariu que os embale.

Mentira. O governo brasileiro é cúmplice da ignomínia porque tudo sabe, acalenta e até encoberta, sem vestígios do mínimo constrangimento.

O governo brasileiro viola normas elementares do Direito, inclusive no âmbito constitucional (ou será que expurgaram o artigo 5º?) e se regozija da própria esperteza oportunista e sem escrúpulo.

Por outro lado, quase não se ouvem os tímidos protestos do Poder Judiciário. O Brasil retrocede 120 anos na sua história de luta pela abolição e a Justiça silencia diante de um quadro de escravidão maquiada. Não se percebe indignação nos tribunais, não se vê indignação na tribuna dos advogados, não se vislumbra indignação em parte alguma. O MP sugere o aperfeiçoamento do contrato para coibir eventuais transgressões ao direito trabalhista. Ora, o contrato não precisa ser aperfeiçoado, o contrato precisa ser imediatamente rescindido e jogado no lixo.

No futuro, haverá quem se lembre do tempo em que a Justiça só percebia o vaga-lume.

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* Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva é advogado do escritório Candido de Oliveira - Advogados.

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