O sigilo processual e a censura à imprensa
Publicidade dos atos processuais se constitui regra fundamental dentro do sistema jurídico nacional.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
Atualizado às 08:31
Têm sido comuns em nossos dias decisões judiciais proibindo a órgãos de imprensa de divulgarem notícias sobre questões que tramitam, pelos fóruns da vida, em segredo de Justiça.
Tais determinações judiciais, via de regra, são genéricas quanto ao conteúdo, por proibirem a publicação de informações sobre determinado processo de curso sigiloso, como se nada do que nele se discute possa ser sabido pela sociedade, independentemente da natureza dos fatos em discussão, tampouco do legítimo interesse público sobre as questões.
São, no entanto, específicas quanto ao veículo de informação, porquanto ao deferirem requerimento especial da parte litigante interessada, por sua vez determinam que a proibição de disseminar as notícias recaia sobre um difusor claramente identificado.
Alguns casos do gênero têm ganhado manchetes e se tornado emblemáticos, ainda que negativamente, a exemplo da já célebre ação judicial na qual o jornal "O Estado de São Paulo", há quase três anos, está proibido de noticiar questões, ao que consta de interesse público, debatidas em processo no qual é parte um membro da família do senador José Sarney e que tramita em segredo de Justiça.
O Judiciário, conhecedor da ação, simplesmente determinou, em 1ª e 2ª instâncias, que o jornal não publicasse nada do que dissesse respeito ao processo e ponto final. Este caso específico e a prática já habitual abrem espaço para amplas e intrigantes reflexões sobre o assunto, além de alimentarem e aguçarem a justa curiosidade e o senso crítico comum e, especialmente, os deste modesto expositor.
Como se sabe, a necessária publicidade dos atos processuais se constitui regra fundamental dentro do sistema jurídico nacional. Isto é verdade incontestável, por ser determinação expressa da CF/88 e, para se cientificar deste fato, basta que se leia o artigo 93, no inciso IX, que revela, textualmente, que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
A própria Carta, no mesmo artigo, institui como única possibilidade de restrição da falada difusão, a declaração do sigilo processual para a preservação do direito à intimidade dos interessados, desde que, porém, tal restrição não prejudique o interesse público da informação (sic).
Não haverá necessidade de grandes elocubrações exegéticas para se concluir que entre o direito à intimidade e o interesse público, este último, por ordem constitucional, deverá prevalecer.
Em outras palavras, as questões sub judice, que consultem o interesse coletivo, não poderão ser escondidas da sociedade, por força de uma decretação de segredo de Justiça pelo Judiciário ao procedimento que as cerca.
Também, não se pode duvidar, de que dentro do modelo político conquistado pela nossa terra, os preceitos constitucionais são preeminentes, soberanos, em relação a qualquer ato normativo menor que porventura seja utilizado para alicerçar eventuais conclusões interpretativas.
Além do que foi dito, também não se pode deslembrar de que a função do juiz é julgar os conflitos de interesse entre partes, jamais delas em relação à humanidade.
O julgamento está, portanto, adstrito aos limites do processo, ou seja, o poder de julgar circunscreve-se às divisas estabelecidas pela jurisdição, conforme se pode assimilar da lição do grande processualista José de Frederico Marques: "os órgãos estatais exercem a jurisdição através do processo, enquadrando-se, assim, no actum trium personarum como um dos sujeitos que o compõem, e com o objetivo de solucionar uma lide segundo os mandamentos legais, para dar a cada um o que é seu". (sic)
Por isso é que Hans Kelsen, na sua célebre Teoria Pura do Direito, nos ensinou que a sentença judicial nada mais é que uma norma jurídica individual: "uma individualização ou concretização da norma geral ou abstrata, a continuação do processo de produção do direito, do geral para o individual".
Varar os limites de uma situação processual concreta e pretender que os seus efeitos atinjam terceiros, no caso um veículo de imprensa, no exercício do seu direito constitucional fundamental de exprimir ideias e informações, sem a possibilidade de que se lhe imponham barreiras ou restrições de qualquer natureza, jamais poderá ser entendido como finalidade do processo ou reflexo natural do julgamento, mas sim, como ato de censura, obviamente fora da competência de qualquer dos poderes constituídos dentro do Estado Democrático de Direito.
E o cometimento da censura, neste caso, fica ainda mais agravado, pela usual individualização da vítima. É como se dentre todos os órgãos de imprensa em atividade, aquele visado, apesar de também ser terceiro, sem qualquer interesse jurídico no procedimento do qual foi expedida a ordem, foi o escolhido para ser impedido de exercer o seu direito e dever de informar com liberdade, segundo lhe faculta a CF/88.
O atualíssimo Rui Barbosa, eterno espírito incentivador da crítica, como meio eficaz para a elucidação das questões polêmicas, sobre a responsabilidade e convicção jurídicas que deverão nortear as decisões pelo sigilo processual, de modo singelo, como tudo o que é brilhante, asseverou que: "Legal pode ser o sigilo, e o é, quando a lei o admite. Mas, quando, ao contrário, a lei não o consente, o sigilo redunda em clandestinidade, vício que inquina os atos jurídicos, os desnatura, exautora e nulifica".
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* Lourival J. Santos é advogado do escritório Lourival J. Santos - Advogados.