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Maconha recreativa

Juiz de Brasília/DF considerou a maconha uma droga recreativa, que não poderia figurar na classificação das substâncias proibidas.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Atualizado em 7 de fevereiro de 2014 13:05

Traficante confesso foi absolvido por um juiz de Brasília que considerou a maconha uma droga recreativa e que não poderia figurar na classificação das substâncias proibidas. Fez ver também que "soa incoerente outras substâncias, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para empresários, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como THC (substância da maconha), são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada"1.

O Direito Penal não pode se afastar da realidade social. Deve avaliar o fato criminoso no seu aspecto normativo, sem abandonar as necessidades e valorações, para que possa cumprir com os objetivos de combater a criminalidade com sucesso. Assim, quando for o caso e houver margem para tanto, permite-se uma interpretação mais extensiva da regra penal, porém sem se afastar do centro de gravidade delimitado pelo tipo penal. Isto porque o sistema determina a observância ao princípio da legalidade com a consequente persecução penal quando ocorrer colidência de conduta com uma regra proibitiva penal.

Respeita-se o posicionamento do magistrado ao fazer referência a outras substâncias que, também nocivas, gozam de circulação livre no mercado, com consumidores de todas as faixas etárias. Também é público que o Uruguai, considerado pela revista The Economist como "país do ano", introduziu a legalização e regulamentação da produção, venda e consumo de maconha. Porém, a lei penal brasileira não permite tamanha flexibilização, no sentido de descaracterizar o caráter ilícito de um fato descrito como criminoso, ou como propôs Roxin, afastar a incidência concreta da norma. Juízos de diagnósticos ou de prognósticos têm assento somente quando se tratar de lege ferenda.

Montesquieu, com a autoridade que lhe é peculiar, já falava que os juízes não podem ser somente a boca que pronuncia as palavras da lei, pois se assim fossem, suas decisões teriam um efeito meramente declaratório, desprovidas do conteúdo humano, que é imprescindível para o balizamento da norma. Mas também não se pode alargar em demasia a liberdade de decidir quando a lei fixa limites instransponíveis. Com razão afirmava Couture "que o juiz tem liberdade para mover-se e nisso atua sua vontade; o direito, entretanto, lhe fixa limites muitos estreitos, que não podem ser ultrapassados".2

Ainda mais no presente caso em que há aplicação da norma penal em branco em sentido estrito. Com efeito, a lei 11.343/06 (lei de drogas), em seu artigo 33, caput, menciona diversos verbos que, se praticados, caracterizam o delito de traficância. Vale consignar que se trata de um crime de conteúdo variado (ou então de ação múltipla), isto é, possui 18 verbos (18 condutas típicas, tais como transportar, guardar, vender, etc.), porém a prática de mais de um, no mesmo contexto fático, caracteriza crime único (agente que trouxer consigo e vender a droga comente apenas um crime de tráfico - Princípio da Alternatividade).

Diz-se norma penal em branco porque o artigo da lei de entorpecentes em questão será complementado por uma norma jurídica editada pelo Ministério da Saúde, órgão com legitimidade para especificar quais são as substâncias entorpecentes que causam dependência física ou química. O critério para tanto é técnico-científico.

Apesar do ordenamento jurídico pátrio permitir eventuais ginásticas interpretativas para que o fim social e o bem comum almejados pelo legislador possam ser efetivamente alcançados, não é razoável concluir que um traficante, com cerca de 52 porções de maconha, acondicionadas no estômago, com a intenção de comercializá-las no interior do presídio da Papuda, esteja portando recreativamente a droga e nem mesmo descaracterizar seu efeito pernicioso, tarefa que refoge do âmbito da ação penal. A conduta ilegal foi individualizada, assim como comprovada a materialidade e, em razão do princípio da legalidade, deve ser perquirida penalmente. Pode até ser expedida sentença absolutória, mas sua fundamentação deve obedecer rigorosamente os critérios legais.

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1Jornal Folha de São Paulo, edição de 30 de janeiro de 2014, Cotidiano C7.

2Couture Eduardo J. Introdução ao estudo do processo civil. Tradução de Mozart Victor Russomano. Rio de Janeiro: José Konfino, 1951, p. 87.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp.



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