Com a porta na cara
Um crime de estelionato bem sucedido é o tema da crônica do promotor de Justiça aposentado.
domingo, 5 de janeiro de 2014
Atualizado em 3 de janeiro de 2014 11:28
Mal dava para entender o que ele falava, tamanha a euforia que deixava transparecer quando se encontrava com pessoas. Gostava de conversar e aprender com a prosa alheia, à qual sempre dava crédito. Quem tem mais, sabe mais.
A boca pequena não comportava o sorriso que esbanjava. Os olhos, como leitores atentos do cotidiano, captavam as imagens simples e nelas reproduziam o brilho de sua felicidade.
Manoel no papel. Mané pros amigos. Que nem Zé.
A sua profissão era difícil de ser definida. Trabalhou toda uma vida como ferroviário, onde se aposentou. Depois passou por vendedor de bilhetes de loteria, auxiliar de eletricista e, agora, guardador e manobrista de carros do estacionamento do Carlão, seu amigo de infância bem sucedido.
O motorista encostava com seu veículo e já o recebia com a cortesia de sempre, abrindo e fechando as portas, manobrando os veículos com maestria. Até os automáticos, conservando entre eles uma verdadeira simetria com muito estilo e criatividade.
Era só, sem família, e morava num casebre muito distante do trabalho. Sabedor das dificuldades que passava, Carlão cedeu-lhe um quarto improvisado para dormir no local do serviço. Não só para dormir. Também para morar. E ali curtiu e fartou-se com a melhor manobra de sua vida
Vivendo de alegria, Mané não viu o tempo passar. Chegou até namorar, mas se esqueceu de casar pela segunda vez. Justificou que ainda fazia o desmanche de seu passado. Com o sorriso matreiro dizia que procurava viver rodeado de pessoas de quem gostava e, com a pouca sabedoria recolhida ao longo da vida dizia que, apesar das flores não caminharem, os pássaros cuidam de cada uma delas, distribuindo a quantidade necessária de pólen.
Os clientes, como ele os chamava, conhecia-os pelos nomes e apelidos, atribuindo a quase todos o título de doutor. Batia o olho, sujeito bem vestido, pasta na mão, olhar sério, ganhava um doutor. Camisa pra fora da calça, sapato sem meia, barba por fazer, levava um senhor.
E ali apareceu um dia um sujeito boa pinta, de falar sensato, de diálogo fácil, com ar de experiência, de outra cidade. Com ele simpatizou. Conversavam da vida e do tempo, dos negócios e das mulheres, do futebol, dos ataques dos vândalos à Avenida Paulista, e até mesmo da melhor temperatura da cerveja.
Enquanto isso, o manobrista, atento à conversa, rodava pra lá e pra cá, guardando e entregando carros, sem se esquecer de cumprimentar os motoristas.
Num domingo à tarde, no silêncio amargo e desolador do centro da cidade, ali apareceu novamente aquele visitante, a quem, apesar de desconhecer o nome, por respeito, chamava-o de doutor. Tinha pinta.
Mané o recebeu com o sorriso já aberto e a alma primeva dava as boas vindas. Empurrou o portão para que ele entrasse com o carro, um Fusca velho, incompatível com a categoria de um diplomado.
Logo que desceu do carro, um tanto apressado, o doutor já declinou o nome de uma pessoa, sr. Charleston, dizendo-se seu irmão e que iria levar seu carro, um gol novinho, deixando o dele no lugar. Isto porque, justificou de forma convincente, teria que fazer uma viagem urgente para São Paulo. Foi falando e entrando no carro novo, não restando ao manobrista alternativa a não ser entregar-lhe as chaves. E fechar a porta do carro para o amigo, com o adeus rotineiro. Afinal, cortesia é cortesia e nunca lhe faltou.
O sol ainda não havia se escondido quando o guardador percebeu algo de estranho no ar, que indicava ter tropeçado em sua inseparável boa-fé. Rememorou demoradamente e não conseguiu encontrar nenhum irmão do dr. Charleston. Isto porque ele não tinha.
Foi quando Mané veio a entender a trama em que foi envolvido pelo falso amigo, entregando-lhe um carro novo e recebendo um velho em seu lugar. Não queria acreditar que um doutor tivesse um comportamento tão desleal.
Daqueles olhos puros, fitando a rua deserta, caíram, com dificuldade, as primeiras lágrimas que inundaram de tristeza sua vida. E nunca mais sorriu. Nem abriu porta. Prá ninguém.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.