#guerradossexos - Sintética análise sobre o (ab)uso da imagem nos polêmicos aplicativos de avaliação entre gêneros para smartphones
Entre os aplausos e vaias que recepcionaram o lançamento do Lulu, com a isenção de opiniões pessoais, parece prudente o esclarecimento de alguns pontos relevantes sob a ótica jurídica a respeito desses aplicativos.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Atualizado em 28 de novembro de 2013 14:34
Um dos expoentes das sociedades atuais, sejam elas modernas, contemporâneas, pós-modernas,ou pós-industriais - a depender do autor que se adote -, é o extraordinário avanço tecnológico. Hoje, o apetite desenvolvimentista, a busca incessante por uma integração absoluta e a onipresença das tecnologias da informação e comunicação (TICs) no cotidiano dessas sociedades respondem pela tendenciosa concentração da diversidade do planisfério na chamada aldeia global. Nessa lógica, uma observação merece destaque no presente estudo: as informações, hoje, circulam instantaneamente em escala mundial. É nesse cenário de aceleração das relações sociais e do incremento tecnológico que surge o Lulu.
O Lulu é uma rede privada para garotas expressarem e dividirem suas opiniões aberta e honestamente. Na nossa primeira versão, o Lulu é um aplicativo privado para garotas lerem e criarem avaliações dos caras que elas conhecem (...) O Lulu usa o Facebook para conferir rapidamente sua identidade, achar seus amigos e tornar o acesso ao aplicativo super fácil. É um modelo virtual do Clube da Luluzinha.
Desenvolvido na Inglaterra pela Luluvise Inc., trata-se de um aplicativo móvel gratuito para plataformas Android e iOS que, sincronizado à rede de contatos do Facebook,disponibiliza perfis masculinos para serem avaliados pelas usuárias em quesitos como aparência física, comportamento, ambição profissional e até mesmo performance sexual. Diferentemente de outros aplicativos, como o Foursquare, o Lulu não permite a postagem de comentários livres, ficando o próprio software encarregado de calcular e atribuir uma média de notas ao avaliado, bem como de elaborar as hashtags a serem selecionadas pelas avaliadoras - o que é feito a partir de uma espécie de quiz. Tudo em absoluto anonimato.
Originalmente concebido em tom jocoso, o aplicativo foi primeiramente lançado nos Estados Unidos, em fevereiro de 2013, tendo chegando ao Brasil em segundo lugar. De acordo com a CEO da Luluvise Inc., Alexandra Chong, a empresa cogita, ainda, criar uma outra versão do programa, voltada para o público LGBT.
Ocorre que dois aspectos chamaram bastante atenção: (i) a rápida adesão; (ii) o volume de acessos. Tamanha foi a popularidade do programa que, em poucos dias, se tornou notícia nas principais mídias do país e nas redes sociais - bem como registraram-se problemas com o desempenho do aplicativo e até negação de serviço involuntária, em razão do pico de acessos.
A reação do público foi imediata.
Sob o ponto de vista sociológico, resiste um grave problema com o precedente. Em uma sociedade dita machista - verdadeiramente machista -, em linha de revanche, têm surgido rumores de que estaria também sendo desenvolvido um aplicativo similar para que homens avaliem o público feminino da mesma forma (como o Pepeka com hashtags mais incisivas, como #MelhorBoqueteDaMinhaVida e #DeuDePrimeira, ou, ainda, o Tubby, cujo slogan do anúncio de pré-lançamento ostenta: é a sua vez de saber se ela é boa de cama). É onde a polêmica é inflamada, já que, supostamente, as avaliações masculinas seriam mais desrespeitosas.
Apesar da extensão da lista de consequências do uso do aplicativo - uma vez que as questões envolvendo a exposição indevida do direito de imagem em casos semelhantes já são conhecidas, e, como se sabe, desencadeiam não apenas problemas em relacionamentos, mas até suicídios - o presente artigo não se dedica a tratar sobre estes assuntos. De igual maneira, não se pretende analisar quaisquer aspectos processuais - neles incluída a questão de competência e de formação de pólo passivo - cuja solução é oferecida pelo direito positivo.
Ocorre que o direito não é uma questão de senso comum ou de opinião pública. Entre os aplausos e vaias que recepcionaram o lançamento do Lulu, com a isenção de opiniões pessoais, parece prudente o esclarecimento de alguns pontos relevantes sob a ótica jurídica a respeito desses aplicativos - em primeiro momento, a partir do prisma constitucional, e, finalmente, chegando-se à análise de sua legalidade.
Primeiramente, coube ao artigo 5º, em seu inciso X, da CF declarar invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Esta cláusula fundamental tem por objetivo preservar o sensível valor constitucional fundamental do cidadão - possivelmente um dos mais irelevantes. Intimidade e privacidade são ideais presentes em todas as sociedades democráticas que buscam preservar a estabilidade e a harmonia social por meio da busca pelo respeito pelo espaço e pela liberdade individual de preservação de um núcleo irrenunciável dos seres humanos (schutzbereich). Inconcebível seria, por exemplo, que nossos vizinhos pudessem adentrar nossas residências sem nosso consentimento enquanto assistíssemos a um programa televisivo deitados em nossas salas trajando poucas roupas. Na mesma esteira, momentos íntimos e privados como o beijo e o sexo são tutelados pelo direito - inclusive, pela esfera penal.
Ponto sensível paira sobre a autorização do uso de informações e imagem dos usuários às redes sociais, supostamente concedida no momento de sua adesão. De fato, um contrato é assinado - embora virtualmente -, mas contendo cláusulas que, provavelmente, jamais serão lidas por qualquer usuário que, naquele momento, efetua seu cadastro. É possível que a autorização tenha sido concedida - e talvez dirão os positivistas: o contrato cria lei entre as partes.
No presente caso, uma assertiva tão radical não seria próspera. Trabalhando com os princípios fundamentais do Direito Civil, encontra-se um importantíssimo elemento norteador da interpretação das relações contratuais - o princípio da boa-fé objetiva. De origem alemã, o chamado treu und glauben pode ser literalmente traduzido como os ideais de lealdade e confiança, e possui alguns desdobramentos de relevância prática. A partir desse princípio, exige-se mútuo respeito entre as partes contratantes, isto é, que procedam honesta e cooperativamente, de modo que uma delas não se sinta lesada pela conduta da outra em razão da frustração de uma legítima expectativa depositada no objeto do contrato e seu fiel cumprimento.
O Lulu fatalmente não observa essa principiologia: não foi oferecida a possibilidade de os usuários (do sexo masculino) do Facebook autorizarem ou não o uso de suas informações e imagens para avaliação de forma anônima pelas mulheres integrantes de suas listas de contatos. Pelo contrário, os relatos ostentam a preocupação dos entrevistados, dentre os quais diversos chegaram a excluir seus perfis em redes sociais por estarem preocupados com futuras utilizações indevidas. Algo que soa ainda mais grave é a farsa na possibilidade de remoção do perfil do mural das avaliações: houve casos em que foram registradas visualizações e avaliações dias após a remoção dos respectivos perfis do aplicativo. Ou seja, o Lulu tornou a exibir e permitir a avaliação de perfis já excluídos, violentando a expressa manifestação de vontade dos avaliados em proibir que fossem novamente disponibilizados para tanto.
Também o artigo 5º da Carta Magna, desta vez em seu inciso V, declarou ser livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Em outros termos, não há qualquer intenção no texto constitucional de se calar posicionamentos particulares, bastando que o autor seja identificado - e que a extenalização de suas opiniões não ataque a honra nem a imagem de outra pessoa.
Trata-se de uma análise quase intuitiva: a mulher tem o direito de avaliar, desde que se identifique. O princípio que está por trás é o da responsabiliade pessoal, visto que o abuso do direito é vedado por todas os campos da disciplina jurídica. O programa não poderia ter estipulado que as avaliações realizadas individualmente permanecessem sem anônimas.
O uso da imagem dos avaliados a partir de suas contas nas redes sociais é, portanto, indevido, configurando abuso de direito (art. 186, do Código Civil), e, portanto, passível de compensação por eventuais danos morais. Outro aspecto incontestável é que o aplicativo também vem sendo utilizado como instrumento de vingança privada, sob forma de Difamação, que constitui contra a honra previsto no artigo 139 do Código Penal. Pode-se também identificar a configuração do crime de calúnia (artigo 138, CP), consistente no ato de imputar objetivamente um fato definido em lei como crime a alguém; é o caso do emprego da #4e20 para apontar usuários de maconha - merecendo destaque que, embora não mais punida com pena privativa de liberdade, a conduta de portar maconha permanece definida legalmente como criminosa (art. 33, lei 11.340/06).
Por fim, apesar da garantia de anonimato pleno que o Lulu oferece às usuárias no momento de suas avaliações, é importante frisar que, tudo o que se faz na rede é visto; cada busca, acesso, login, postagem, download ou upload registra uma série de dados, compilados em uma espécie de biografia digital. E uma vez que os smartphones agora atuam também como parte de redes domésticas, hotspots Wi-Fi ou sistemas de compartilhamento de mídia, eles se tornam nós da rede mundial de computadores, ou seja, pontos de interconexão com a Internet - e, como tais, possuem endereço de IP. Nesse sentido, é admitida a interceptação de fluxos de dados em sistemas de informática e telemática para fins de investigação criminal e produção de prova penal, conforme previsto na lei 9.296/96. Em outras palavras, é possível descobrir a identidade das usuárias que fizeram avaliações no aplicativo.
Só existe brincadeira quando é divertido para todos que participam.
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Fontes
ASSANGE, Julian; APPELBAUM, Jacob; MÜLLER-MAGUHN, Andy; ZIMMERMANN, Jérémie. Cypherpunks - Liberdade e o futuro da Internet. Trad. YAMAGAMI, Cristina. São Paulo: Boitempo, 2013.
BATISTA, C. L. Informação pública: entre o acesso e a apropriação social. 2010. 202f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
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Referências
1 Disponível em: clique aqui
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*Felipe Machado Caldeira é advogado, sócio do Luchione Advogados. Mestre em Direito Penal pela UERJ. Especialista em Direito Penal pela Universidade de Coimbra, pela Universidad Castilla-La Macha, pela Università di Milano e pela Georg-August Universität Göttingen. Professor do curso de Graduação em Direito do IBMEC/RJ. Professor dos cursos de Pós-Graduação do IBMEC/RJ e FGV. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
* Leonardo Rezende Cecílio é advogado, sócio do Lerner & Feijó Advogados. Discente do Programa de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade Cândido Mendes. Bacharel em Direito pelo Ibmec/RJ. Membro da Association Internationale de Droit Penal e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.