Biografias e Direitos Humanos
O preço pago por um fonograma, um DVD ou por uma entrada de um espetáculo não pode funcionar como um passaporte para a devassa da intimidade alheia.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
Atualizado em 6 de novembro de 2013 14:35
A despeito de os indigitados arts. 20 e 21 do CC, que abrigam o tema biografias, estarem em circulação desde 2002, ganharam enorme atualidade nos últimos dias, a ponto de frequentarem de conversas de botequim a periódicos de larga tiragem, passando pelas redes sociais, só tendo sido objeto de a ADIn interposta pela ANEL, associação que congrega editores e livreiros, em julho de 2012.
O tema "biografias", não diz somente respeito às celebridades, mas a todos, indistintamente. Há que se distinguir, porém, os direitos e interesses que movem escritores, editoras, produtoras, historiadores, dos direitos da pessoa biografada. Enquanto detêm os primeiros direitos autorais sobre os escritos e obras audiovisuais, fruto externo e palpável das respectivas criações intelectuais, a pessoa cuja história de vida serve de tema à obra intelectual detém direitos personalíssimos, intransferíveis e irrenunciáveis sobre sua própria história de vida. Aqueles contam uma história enquanto estes são a própria história. E quando se trate de pessoa famosa, buscam os primeiros uma notoriedade paralela, acoplada à fama carreada pela pessoa famosa, o que facilita a colocação da obra no mercado, enquanto que ao biografado resta a escolha entre se expor ou não, ou entre fazê-lo diretamente (autobiografia) ou delegar a tarefa a terceiros.
As regras para a eventual exploração pública da vida privada seja das celebridades artísticas, seja dos políticos e estadistas, seja a dos cidadãos comuns, são as mesmas, embora o que se note hoje é a ausência de interesse em belíssimas histórias de vida de pessoas comuns (Anne Frank seria um exemplo), movendo-se os interessados em direção àquelas ligadas ao mundo do entretenimento, pela repercussão óbvia nas vendas. Há algo de insincero no ar.
Dois grandes equívocos são recorrentes nessa questão: o que remete à censura, e o que alardeia o interesse público.
À disposição legal de autorizar previamente, ou não, discorrer sobre a intimidade de uma pessoa, os "democráticos" nomeiam o ato de censura, como se fosse um mantra, quando se trata, apenas, de traçar limites. Censura é o que se impôs à imprensa, ao teatro, ao cinema, nos anos de chumbo, proibidos de noticiar ou denunciar o que se passava nas ruas, nos porões das delegacias, nas contas públicas, nos encontros sombrios entre políticos e governantes. Censura é o medo que se apresenta em discussões politicamente legítimas em regimes de opressão. Censura é o que impõem às redações determinados veículos no sentido de proibir a divulgação de temas julgados prejudiciais a seus interesses econômicos ou ideológicos, dirigindo a atividade de comunicação. Muito diferente é o resguardo que alguns entendem que devam fazer sobre sua vida pessoal, assunto de sua exclusiva deliberação, isto é, da coibição de excessos, que normalmente pautam ações de quem vive em sociedade.
Onde reside o interesse público na vida privada de pessoas que saíram do anonimato por seus méritos (ou por um bom trabalho de marketing), como se não tivessem direito a outra vida, uma vida comum, plena de alegrias e de tristezas, pelo só fato de difusamente haverem atingido o público com suas obras e atuações? O preço pago por um fonograma, um DVD ou por uma entrada de um espetáculo não pode funcionar como um passaporte para a devassa da intimidade alheia. É fato que cria um elo de intimidade entre o leitor/espectador/ouvinte e o artista, e é aí é que mora o perigo. Tenta-se erigir à nobre condição de interesse público o que não passa de exploração desse vínculo, mera curiosidade subjetiva, revelando o que realmente está em jogo: o lucro da indústria, e a notoriedade paralela perseguida pelo candidato a biógrafo. "O conceito de interesse público não pode causar a opressão de minorias, mas também não pode transformar-se em opressora, isso porque o Direito é instrumento compensatório das desigualdades entre as pessoas e grupos, e o cumprimento desta função asseguram os direitos fundamentais."1
O ponto de partida jurídico e filosófico para toda essa discussão não pode ser outro senão a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948 pela ONU, em Assembleia Geral de que participou o Brasil, cujos princípios adotou para a evolução de nossos direitos individuais e sociais.
Dentre outras regras de civilidade, proclama a Declaração em seu artigo I, que, nascendo as pessoas livres e iguais em dignidade de direitos "devem agir em relação umas às outras, com espírito de fraternidade". Não se trata de item de encíclica, ou de conto da carochinha: trata-se tão somente de garantir e infundir noções de respeito e destemor entre seres humanos para o fim de se obter a harmonia social.
Mas é a disposição do artigo XII a que mais importa ao caso. Proclama a Declaração: "ninguém será sujeito na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra ou reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques". Nada disso nega, bem ao contrário, o direito à liberdade de expressão e opinião, direito esse que inclui a liberdade de imprensa - a que se refere o artigo XIX - de receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios. Ocorre que a invasão à vida privada não se confunde com outras liberdades, e sua perpetração é ato de violência moral. Trata-se apenas, repita-se, da imposição de limites, o que é o próprio de uma vida civilizada. O titular de sua própria história tem o direito de resguardá-la, e o interessado em retratá-la deve respeitar essa decisão. Por outro lado, nada disso afeta o direito de todos à informação bastando não confundir a história íntima e privada de uma pessoa com notícias e informações do que são de interesse comum, afetando a coletividade como um todo.
Nossa Carta Magna que, como a esmagadora maioria das Constituições dos países do mundo acolhe os mesmos princípios, agasalha a dignidade humana como soberana, e a intimidade como inviolável. Nesse sentido configura-se atentatória a essa dignidade a publicação da vida do autor de sua própria história que se negue a expô-la. A inviolabilidade da intimidade, tanto quanto a da liberdade de crença, de consciência e de manifestação do pensamento encontram limites umas nas outras, facilitando a convivência respeitosa.
O curioso, mas totalmente explicável, partindo de onde parte, é que o princípio da autorização prévia esteja sendo vendida com conotação negativa, como se toda resposta ao pedido de autorização de um candidato a ter sua biografia publicada fosse sempre um não. Ora, nem todo mundo é Chico Buarque, mas a decisão dele deve ser respeitada. A realidade evidencia que o produto biografia mais bem sucedido, no aspecto literário ou comercial, é o consentido, aquele em que haja uma boa relação entre biógrafo e biografado, numa interação de respeito aos valores um e outro. É, curioso também, que biografias de pessoas que viveram há mais de cem anos, sirvam de comparação com o que se discute no momento, com previsões apocalípticas.
A esta altura pouco importam os dizeres do art. 20 e 21 do CC, e o destino que venham a tomar porque acima deles estão as garantias constitucionais. Se quiserem os parlamentares mostrar serviço, que proponham a regulação da zona cinza que reside entre os princípios e garantias fundamentais que regem a privacidade e a intimidade, de um lado, e, de outro, as pesquisas e teses com a publicação de retratos de pessoas cuja trajetória pública tenha influenciado condutas ou costumes, a ponto de merecerem menção às respectivas biografias. Ou que distingam entre as biografias de pessoas vivas e de pessoas já falecidas. Pessoalmente, creio que o dono da história deva autorizar ou não sua publicação, enquanto aos herdeiros deveria caber apenas o direito posterior de impedi-la, ou de buscar ressarcimento, diante de eventual achincalhe à memória do falecido(a). Mais que biografias, os documentários devem merecer a atenção dos legisladores, pelo interesse público difuso que costuma norteá-los.
Paradoxalmente, cabe aqui uma derradeira indagação: onde queremos chegar com toda essa discussão, uma vez que ela só cabe no (velho) mundo físico tradicional? A biografia não autorizada de Roberto Carlos, assim como inúmeras outras obras reservadas pelas leis da superfície, encontram-se integralmente disponibilizadas na web, bastando saber procurar. Nesse mundo pouco se cogita do certo ou do errado, vide o que se passa na DeepWeb. A se pautar pelo número de acessos ou de downloads, de comentários compartilhados, a biografia do rei não parece ser exatamente um sucesso na net. O que isso quer então significar? Seria o Código Moral mais forte que o Legal? Ou, se é ilegal, e pode não ser imoral, talvez não interesse à maioria das pessoas? Será o contrário? Ou simplesmente não caiu no gosto porque é um produto que não seduz, uma vez que vem "desembalado" e facinho, o que lhe retira valor? A verdade é que há muito mais em jogo do que simplesmente vender livros.
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1 "A reconfiguração do conceito de interesse público à luz dos direitos fundamentais como alicerce para a consensualidade na administração pública", por Guilherme de Abreu e Silva in https://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11624
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* Eliane Y. Abrão é advogada do escritório Eliane Y. Abrão, Advogados Associados.