O direito à ampla defesa não se compatibiliza com instância única de julgamento
Embora o texto constitucional não seja expresso em prever o duplo grau de jurisdição, ninguém poderá ser condenado em uma única instância.
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Atualizado em 5 de novembro de 2013 14:11
A Constituição da República, no inciso LV do seu art. 5º, assegura aos acusados em geral, seja em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.
Isso significa dizer que, embora o texto constitucional não seja expresso em prever o duplo grau de jurisdição, ninguém poderá ser condenado em uma única instância, sem direito a recurso para o órgão judicial ou administrativo hierarquicamente superior. O direito à ampla defesa não se compatibiliza com instância única de julgamento.
Com relação, especificamente, às decisões administrativas - sejam elas de natureza tributária ou disciplinares, mas, particularmente àquelas que imponham obrigação, ônus ou punição ao administrado -, não há necessidade de haver regramento legal específico que preveja o recurso, sendo que sempre caberá recurso hierárquico para a autoridade imediatamente superior.
Maria Sylvia Zabella di Pietro sustenta que mesmo no processo administrativo disciplinar é cabível recurso hierárquico, independente da ausência de previsão legal (Direito Administrativo, editora Atlas, 17ª edição, p. 545).
Nesse mesmo sentido, vem se conduzindo a jurisprudência pátria, podendo-se citar, como exemplo, o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça, em um caso de aplicação de pena disciplinar a servidor:
MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. RECEBIMENTO COMO REVISÃO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. RECURSO HIERÁRQUICO. FALTA DE PREVISÃO LEGAL ESPECÍFICA. IRRELEVÂNCIA. CABIMENTO.
1. O pedido de revisão, assim como a reconsideração, no ãmbito administrativo, são dirigidos para a mesma autoridade, que proferiu a decisão, distinguindo-se apenas quanto ao momento de seu ajuizamento. Doutrina.
2. O impetrante apresentou recurso hierárquico com pedido de reconsideração, que foi recebido como pedido de revisão, em razão do não cabimento da reconsideração. Dessa forma, inexiste prejuízo, nesse ponto, na medida em que, ainda que se conclua pelo não cabimento da reconsideração, certo é que o pedido foi recebido e analisado pela mesma autoridade competente, ainda que na forma de "pedido de revisão".
3. Muito embora a Lei nº 8.112/90 não traga regramento específico de cabimento de recurso hierárquico no capítulo referente ao processo administrativo disciplinar, tal recurso não pode ser afastado nos casos de pena de suspensão, porquanto, além de independer de previsão legal, seu cabimento se dá em nome do contraditório e da ampla defesa. Precedente.
4. O fato de se ter regulado o recurso hierárquico em capítulo diverso daquele referente ao processo administrativo disciplinar não retira a força exegética, que se deve dar ao art. 108 da Lei nº 8.112/90, numa interpretação sistemática da referida norma, no sentido de ser o dispositivo aplicável a todo o contexto da citada lei.
5. Segurança concedida.1
Como se vê, portanto, o tribunal superior encarregado de uniformizar, nacionalmente, a interpretação do ordenamento jurídico infraconstitucional entende que a lei não precisa prever, expressamente, o cabimento de recurso específico contra a decisão administrativa, pois esse (o recurso) é inerente ao direito de ampla defesa, vale dizer, dele é decorrente, como diz o texto da Carta da República.
Com efeito, é fácil imaginar o que seria do jurisdicionado ou do administrado se o seu direito ficasse confinado apenas ao entendimento de um único e determinado órgão da Justiça ou da Administração Pública!
Além do mais, conforme salientado no aresto acima citado, o Estatuto do Funcionário Público (lei 8.112/90), no inciso I do seu art. 107, regula, sim, o cabimento do recurso hierárquico no âmbito da referida norma. De forma que, "embora em capítulo diverso do processo disciplinar, deve ser realizada uma interpretação sistemática de todo o estatuto com o objeto de extrair a melhor compreensão possível do texto legal", para, então, se concluir, induvidosamente, que o recurso hierárquico para a autoridade imediatamente superior é sempre possível.
No entanto, curiosamente, o Conselho da Justiça Federal, órgão encarregado da supervisão orçamentária e administrativa da Justiça Federal de 1º e 2º graus, composto de cinco ministros do Superior Tribunal de Justiça e dos cinco presidentes dos Tribunais Regionais Federais, com poderes correcionais, parece assim não pensar.
Ao julgar, recentemente, um recurso de um magistrado contra decisão de tribunal regional que não admitiu um seu pedido de revisão disciplinar, aquele Conselho negou seguimento ao apelo, sob o fundamento de inexistência de previsão legal em seu regimento interno.
Em outras palavras, se um integrante de um dos tribunais regionais federais foi punido disciplinarmente por seus próprios pares e, depois, requereu revisão do processo e não foi atendido, não cabe a ele nenhum recurso. A decisão ficará enclausurada no âmbito de um só órgão administrativo, transformando esse magistrado no único cidadão brasileiro sem direito a uma segunda instância de julgamento.
Porém, tal decisão do CJF, como se viu antes, entra em franca testilha com a exegese do Superior Tribunal de Justiça, já que, segundo esta Corte, não há necessidade de haver previsão legal para se admitir o recurso hierárquico.
Será por que, então, o Conselho da Justiça Federal não admitiu conhecer de recurso contra decisão de natureza disciplinar de órgão de segundo grau da Justiça Federal?
A negativa estaria no entendimento de que o CJF não é, administrativamente falando, autoridade hierarquicamente superior aos Tribunais Regionais Federais?
Até o advento da Emenda Constitucional 45, poderia se alegar que o CJF não detinha, de fato, o poder disciplinar sobre os órgãos da Justiça Federal. O parágrafo único do art. 105 da Constituição da República atribuía-lhe, apenas, a supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal. No entanto, após a mudança realizada no texto constitucional, foram-lhe atribuídos poderes correcionais (rectius, disciplinares), bem como o caráter vinculante de suas decisões. Além disso, remeteu-se para a legislação ordinária a regulamentação devida do aludido dispositivo da Carta Maior.
Eis que, então, sobreveio a lei 11.798/08, que incluiu na competência do CJF, entre outros poderes, os de avocar processos administrativos em curso (inclusive disciplinares), julgar processos administrativos disciplinares relativos a membros dos TRFs, e, em grau de recurso, as matérias relacionadas aos direitos e deveres dos juízes, quando a esses for aplicada sanção em processo disciplinar decidido pelo Tribunal Regional Federal.
Quanto à revisão disciplinar, foi ela prevista apenas no Regimento Interno, e só em caso de julgamentos proferidos pelo plenário do próprio Conselho da Justiça Federal (Art. 133).
Assim sendo, pelo menos nos termos da lei ordinária, é indubitável que o Conselho da Justiça Federal, a partir do advento da lei 11.798/08, passou a ser, em matéria administrativa - e, portanto, também disciplinar -, autoridade hierarquicamente superior aos Tribunais Regionais Federais, quando estes, é claro, exercem a sua atividade meramente administrativa, não jurisdicional.
A par disso, vale registrar que, segundo dispõe o art. 5.010/66 (lei de organização Judiciária da Justiça Federal), em seu art. 52, o Estatuto dos Servidores Civis da União se aplica, no que couber, aos juízes da Justiça Federal. E, como já se viu, este diploma legal prevê o recurso hierárquico e pode ser aplicado subsidiariamente.
Portanto, a conclusão lógica e única é a de que qualquer decisão de natureza disciplinar proferida pelos Tribunais Regionais Federais desafia recurso hierárquico para o Conselho da Justiça Federal, mesmo que na lei acima citada e no regimento interno deste órgão não haja recurso específico. É assim que pensam o Superior Tribunal de Justiça e os melhores doutrinadores do tema.
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1 (MS 10.223/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/04/2009, DJe 07/05/2009)
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* Eustáquio Nunes Silveira é magistrado aposentado, advogado do escritório Silveira, Ribeiro e Advogados Associados e membro do Instituto dos Advogados do DF.