A imunidade do estado estrangeiro no processo de execução
Em agosto de 1999, articulamos o tema sobre a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, demonstrando que a evolução da jurisprudência pátria consolidara a regra da imunidade relativa, ou seja, passível de invocação pelo Estado estrangeiro apenas e tão somente naquilo que se refere aos atos de império, praticados no cumprimento do mister diplomático.Isso porque a regra da imunidade absoluta do Estado estrangeiro repousava no princípio da comitas gentium, assentada pela prática do Direito Internacional
sexta-feira, 2 de dezembro de 2005
Atualizado em 1 de dezembro de 2005 08:31
A imunidade do estado estrangeiro no processo de execução
Luiz Paulo Romano*
Em agosto de 1999, articulamos o tema sobre a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, demonstrando que a evolução da jurisprudência pátria consolidara a regra da imunidade relativa, ou seja, passível de invocação pelo Estado estrangeiro apenas e tão somente naquilo que se refere aos atos de império, praticados no cumprimento do mister diplomático.
Isso porque a regra da imunidade absoluta do Estado estrangeiro repousava no princípio da comitas gentium, assentada pela prática do Direito Internacional. Assim, na ausência de texto expresso assegurando a imunidade absoluta, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acompanhou diversas mudanças no cenário mundial, passando a admitir a submissão do Estado estrangeiro à jurisdição brasileira em determinadas hipóteses situadas na órbita privada, onde não presente a atuação essencialmente diplomática.
Tal relativização, de toda sorte, não atingiu as pessoas físicas que compõem o corpo diplomático, que permanecem abrangidas pelos privilégios e imunidades diplomáticas concedidas pelas Convenções de Viena de 1961 (servidor diplomático) e 1963 (serviço consular), ambas incorporadas ao direito positivo doméstico, pelos Decretos nºs 56.435/65 e 61.078/67.
Restara afastada, assim, a imunidade do próprio Estado estrangeiro em relação às causas em torno de atos puramente de gestão, cujos exemplos mais freqüentes referem-se à contratação de empregados brasileiros pelas Missões Diplomáticas, processos por indenização civil decorrentes de situações ordinárias que o Estado estrangeiro pratique atos de comércio ou, agindo como se particular fosse, atue more privatorum.
Ao final daquele estudo, alertamos que a novel posição jurisprudencial não tinha o condão de atingir a imunidade do Estado estrangeiro ao processo de execução, tendo em vista a existência de regra expressa proibitiva de qualquer ato de busca, requisição, embargo ou constrição do patrimônio do Estado estrangeiro no Brasil, à luz do artigo 22, § 3º, da Convenção de Viena de 1961.
Passada mais de meia década, podemos dizer que houve uma consolidação da jurisprudência pátria em torno dessas duas premissas: imunidade relativa do Estado estrangeiro no processo de conhecimento, sem prejuízo da imunidade de execução. Em outras palavras, efetivou-se o entendimento de que, a par da possibilidade de submeter o Estado estrangeiro à jurisdição brasileira, a execução de eventual decisão condenatória deve observar o regramento internacional, sob pena de incorrer-se em sérias implicações diplomáticas.
De fato, a execução do Estado estrangeiro está jungida à existência de prévia e expressa renúncia, nos termos do artigo 32 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961, ou, ainda, da existência de bens não relacionados à sua representação diplomática no País, conforme bem ilustra a seguinte decisão da lavra do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal:
"É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, tratando-se da questão pertinente a imunidade de execução (matéria que não se confunde com o tema concernente a imunidade de jurisdição ora em exame), continua, quanto a ela (imunidade de execução), a entendê-la como sendo de caráter absoluto, ressalvadas as hipóteses excepcionais (a) de renúncia, por parte do Estado estrangeiro, a prerrogativa da intangibilidade dos seus próprios bens (RTJ 167/761, Rel. Min. ILMAR GALVAO - ACOr 543-SP, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE) ou (b) de existência, em território brasileiro, de bens, que, embora pertencentes ao Estado estrangeiro, sejam estranhos, quanto à sua destinação ou utilização, às legações diplomáticas ou representações consulares por ele mantidas em nosso País."(ACO 575)
Essa mesma posição tem sido seguida de perto pelo Tribunal Superior do Trabalho, responsável pela uniformização da jurisprudência trabalhista e onde seguramente tramita o maior número de ações contra Estados estrangeiros. Em decisão recente, da lavra da Seção Especializada em Dissídios Individuais, decidiu-se que:
"MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. PENHORA DA RESIDÊNCIA OFICIAL DO CÔNSUL. IMUNIDADE DE EXECUÇÃO.Seguindo a orientação do STF, a jurisprudência dos Tribunais de todo o país já se pacificou no sentido de que os estados e organismos internacionais não gozam de imunidade de jurisdição na fase de conhecimento. No entanto, quando a questão diz respeito a execução, o tema suscita debates, quando inexistente renúncia, porque os Estados estrangeiros gozam de imunidade de execução.Na questão sub judice foi determinada a penhora sobre a residência oficial do Cônsul, cujo bem está integrado ao patrimônio estrangeiro e, por isso, afeto à representação consular, resultando vulnerado o direito líquido e certo do impetrante, consubstanciado no direito à imunidade de execução da qual é detentor. No caso, a execução deve ser paralisada, a fim de que se encontrem outros bens a serem penhorados, desde que sejam eles desafetos ao Consulado." (ROMS 62268/2002, DJU 27.02.2004) (grifamos)
Não obstante essa posição, há Juízes que entendem que as contas bancárias das Missões Diplomáticas podem ser objeto de penhora (inclusive on line), amparadas por opinião externada pela Consultoria Jurídica do MRE (CJ/CGDI nº 49/2003). Todavia, tal posição não se mostra acertada, tendo em vista que o numerário depositado é inequivocamente um bem do Estado estrangeiro, totalmente vinculado à atividade diplomática e, como tal, insuscetível de qualquer medida constritiva. Em boa hora, o Tribunal Superior do Trabalho voltou a enfrentar o tema - agora especificamente quanto à penhora de contas bancárias - tendo decidido que tal medida é ilegal e fere as normas internacionais, como se vê da ementa do RMS 282/2003:
"PENHORA ON LINE EM CONTA CORRENTE D ESCRITÓRIO COMERCIAL DE ENTE DE DIREITO PÚBLICO EXTERNO. IMPOSSIBILIDADE QUANDO NÃO COMPROVADA A DESAFETAÇÃO DO BEM. IMUNIDADE DE EXECUÇÃO. No direito comparado é ilegal a determinação de penhora de conta corrente de Estado estrangeiro, salvo quando cabalmente demonstrada sua utilização para fins estritamente mercantis, porque neste caso o dinheiro ali movimentado estaria desvinculado dos fins da Missão Diplomática Nos termos da jurisprudência do E. STF e da mais abalizada doutrina, fere direito líquido e certo do Estado estrangeiro a incidência de medidas expropriatórias contra bens afetos à sua representação diplomática ou consular, mesmo diante do reconhecido caráter restritivo da imunidade de execução, na medida em que este privilégio tem lugar no que tange aos bens vinculados ao corpo diplomático (art. 22, item 3, da Convenção de Viena de 1961)." (DJU 26/08/2005)
Por todo o exposto pode-se concluir que (i) a atual jurisprudência brasileira consagrou posição que afasta a figura da imunidade absoluta do Estado estrangeiro, submetendo-o à jurisdição nacional quando pratica os denominados atos de gestão; (ii) tal relativização em nada modifica a situação da imunidade diplomática e consular prevista nas Convenções de Viena de 1961 e 1963; (iii) a imunidade de jurisdição relativa é aplicável ao processo de conhecimento, não sendo estendida ao processo de execução, salvo renúncia expressa e específica do Estado estrangeiro; (iv) é inviável, à luz do direito internacional, a adoção de medidas de constrição de bens afetados à missão diplomática, inclusive numerário depositado em contas correntes.
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*Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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