Sou seu biógrafo. Posso escrever?
PL 393/11, em trâmite na Câmara, visa garantir a divulgação de imagens e informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública.
domingo, 27 de outubro de 2013
Atualizado em 25 de outubro de 2013 14:46
Um projeto de lei discute a autorização para divulgação de filmes ou publicação de livros que sejam considerados biográficos, sem autorização do retratado ou de seus familiares. O imbróglio teve início quando o cantor Roberto Carlos e o grupo Procure Saber, que reúne vários artistas com projeção nacional e internacional, fincaram barricadas com a intenção de defender a obrigatoriedade de se obter autorização prévia para publicação de biografias.
Muitas cunhas já foram metidas no tema em questão em todas as oportunidades que vem à tona. Não se pode negar que é de fácil combustão argumentativa e vem frequentando com certa assiduidade as discussões travadas a seu respeito, justamente por carregar carga polêmica, por ser incandescente e envolver posições contrárias, permitindo que várias vozes falem ao mesmo tempo, cada uma delas defendendo considerações relacionadas com o direito de manifestação.
A Constituição Federal, no entanto, de forma clara e incisiva, após advertir que é livre a manifestação do pensamento e da atividade intelectual e artística, independentemente de censura ou licença, estabeleceu no artigo 220, § 1º: Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, incisos IV, V, XII e XIV: É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Como a Lei Maior não privilegia liberdades e direitos absolutos e irrestritos traz a norma de contenção prevista no inciso X do artigo 5º: São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado direito a indenização pelo dano material ou moral de corrente de sua violação. Discutindo a respeito da liberdade e censura, Lloyd assim se pronunciou: A liberdade de expressão e de imprensa subentende usualmente a ausência de censura prévia, ou seja, as obras podem ser livremente publicadas, ficando sujeitas a qualquer possível ação judicial subsequente1.
Em razão das garantias constitucionais, o olhar público pode devassar a exposição de pessoas e revelá-las a outras, desde que com veracidade, comedimento e responsabilidade. Não há que se falar em colidência do direito de informar com o da proteção à intimidade da pessoa que está sendo biografada. Há necessidade sim de se equilibrar os interesses. De um lado, há o permissivo constitucional autorizando a realização da obra informativa e de outro, em razão de excesso ou de eventual incursão criminal nos tipos penais de calúnia, difamação e injúria, fica assegurado não só a persecução penal específica como, também, o direito à ação civil reparatória de danos morais e materiais. O homem, por fazer parte de um grupo social, deve desfocar-se do caráter individualista. Já advertia Costa Jr em sua clássica obra que o homem, enquanto indivíduo que integra uma coletividade, precisa aceitar as delimitações que lhe são impostas pelas exigências da vida em comum2.
Seria um excesso de zelo e até mesmo uma proteção desmedida, exigir o nihil obstat do retratado para a publicação de uma obra literária a respeito de sua vida artística e privada. Ninguém vai se interessar pela história de vida de um desconhecido, mesmo que seja coroado com predicados invejáveis. A intenção é compartilhar da vida daqueles que são referências culturais, artísticas e esportivas, além de outros verdadeiros ídolos, para conhecer o lado da pessoa, do ser humano que conseguiu ser unanimidade. Nos Estados Unidos várias obras foram escritas a respeito da vida de Michael Jackson e até mesmo do presidente Obama e muitos outros de reconhecimento mundial, sem que tivessem dado autorizações. O julgamento de eventual ofensa ou de informação inverídica fica a critério do retratado, que poderá se valer das vias legais para exercer seus direitos.
Sem a literatura biográfica o mundo perderá rapidamente a memória de seus personagens de referência e brotará um hiato prejudicial à própria história da humanidade. Conhecer o artista única e exclusivamente pela sua arte ou ofício é encobrir a outra verdade da vida, que pode ser tão ou até mesmo mais interessante pelos relatos coletados. Basta ver a autobiografia de Santo Agostinho no livro Confissões, quando abre o porão de suas memórias e oferece um relato detalhado de sua vida antes de se tornar cristão que, com certeza, exerceu grande influência na sociedade ocidental.
Se você não conhece a vida de Steve Jobs, ignora que foi adotado pelo casal Steve e Clara Jobs e muito menos o que o motivou a desbravar a computação pessoal, em tablet, cinema de animação, telefonia celular, além de ser o cofundador da empresa Apple. De forma pública e transparente o recente estudo biográfico com base nas cartas escritas por George Orwell, autor de A revolução dos bichos, revelou informações não contidas em suas obras e que ajudaram a entendê-las com mais intensidade3.
Se não guardar as cartas da juventude, não conhecerá um dia a filosofia das folhas velhas, profetizava Machado de Assis.
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1Lloyd, Dennis. A ideia de lei. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 185.
2Costa Jr., Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970, p. 42.
3Orwell, George. Uma vida em cartas. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.