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A prévia censura às biografias: Solução inconstitucional para um problema real

A restrição indevida à liberdade de expressão, em qualquer de suas formas, constitui prática inaceitável no Estado de Direito e deve ser duramente reprimida.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Atualizado em 16 de outubro de 2013 17:03

Uma grande controvérsia ganhou espaço na mídia brasileira nos últimos meses. Trata-se da discussão em torno da possibilidade de veiculação de obras biográficas sem a autorização do personagem biografado.

O debate tornou-se ainda mais acalorado com a instituição do Grupo Procure Saber, que reúne artistas favoráveis à censura prévia das biografias, sendo integrado por nomes como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Djavan. Nesse sentido, estabeleceu-se uma ampla discussão pública em torno do tema, que resultou em longos editoriais, matérias jornalísticas, entrevistas e até mesmo bate boca nas redes sociais.

Essa questão, como de resto todas as temáticas relevantes na vida pública brasileira, chegou ao Supremo Tribunal Federal, na forma de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 4.815/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia) proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros. Tal demanda tem por escopo o reconhecimento de que o ordenamento jurídico brasileiro (notadamente os arts. 20 e 21 do Código Civil) não proíbe a veiculação de biografias sem o prévio consentimento da pessoa biografada.

Tem causado enorme perplexidade o posicionamento adotado pelos artistas que defendem a censura prévia. Como nomes consagrados da música popular brasileira, alguns deles com reconhecido histórico de luta contra a própria ditadura, podem defender uma posição claramente contrária à liberdade de expressão? Trata-se de mero interesse econômico, associado a uma possível venda do consentimento para o trabalho biográfico? Enfim, causa surpresa como um tema aparentemente simples possa colocar em lados opostos nomes consagrados da cultura nacional e ampla parcela da opinião pública.

Em verdade, a controvérsia em torno da possibilidade de publicação de biografias sem censura prévia infelizmente desloca a discussão para o problema errado e que sequer deveria ser objeto de debate em uma sociedade democrática.

É que a restrição indevida à liberdade de expressão, em qualquer de suas formas, constitui prática inaceitável no Estado de Direito e deve ser duramente reprimida. O próprio Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade, já alertou para a circunstância de que o ordenamento constitucional brasileiro não admite a figura da censura prévia. No caso de conflito entre a intimidade/privacidade/honra e a liberdade de expressão, a segunda precede necessariamente a primeira no tempo.

Nesse sentido, o movimento Procure Saber e os artistas que o integram encontraram uma bandeira (censura a biografias) amparada em um argumento inconstitucional. Isso não quer dizer, entretanto, que não tenham uma queixa legítima. É justamente esse problema, de contornos reais e concretos, que deixa de ser enfrentado no momento em que para ele se apresenta uma solução que não extrai amparo da Carta da República.

Com efeito, não se pode deixar de lembrar que o Texto Constitucional, paralelamente ao relevante direito fundamental consistente na liberdade de expressão, também elenca a intimidade, a honra, a imagem e a vida privada como vetores fundamentais do Estado brasileiro.

Nesse sentido, quando se examinam esses direitos fundamentais especificamente na perspectiva das pessoas públicas, é preciso assentar-se uma dupla premissa. De um lado, tais pessoas efetivamente gozam de uma proteção menos ampla relativamente à sua vida privada, porquanto a sua própria existência e o caminho por elas percorrido, sob uma perspectiva específica (cultural, política, esportiva, etc.), integram-se à história País, dela tornando-se elementos indissociáveis. De outro lado, a honra e a imagem dessas mesmas pessoas públicas ganham outra dimensão, pois eventuais prejuízos a tais direitos terão maior gravidade, sob a ótica do sofrimento moral e do próprio exercício de suas atividades profissionais.

Essas considerações revelam-se particularmente relevantes porque, ao lado de biografias sérias e embasadas em ampla e consistente pesquisa fática, o mercado editorial também disponibiliza trabalhos que beiram a leviandade. Nesse sentido, a liberdade de expressão permite que tanto umas quanto outras estejam disponíveis ao público, ainda que somente as primeiras constituam trabalhos legitimamente merecedores de tutela.

Aqui se mostra a verdadeira face do problema: como permitir que as biografias sejam livremente veiculadas, potencializando-se o livre mercado de ideias e, ao mesmo tempo, que se punam os autores de trabalhos inidôneos, amparados em informações falsas e cujo conteúdo tenha por finalidade a ofensa à honra e à imagem de determinada pessoa pública?

Embora seja legítimo reconhecer que a censura não se mostra a solução razoável para o problema, mesmo porque completamente desprovida de amparo na Constituição da República, é preciso admitir-se, de outro lado, que os mecanismos jurídicos destinados à proteção do direito à honra e à imagem mostram-se insuficientes.

Em primeiro lugar, é preciso relembrar-se que a indenização por danos morais possui um caráter exclusivamente compensatório. Ou seja, não se reveste de um conteúdo de efetiva reparação, de restabelecimento da situação anterior à conduta ilícita. E, ainda que se reconheça o escopo pedagógico-punitivo dos danos morais, é preciso destacar que as indenizações fixadas pelo Poder Judiciário, especialmente em casos de violação à honra e à imagem de pessoas públicas, relevam-se irrisórias quando comparadas aos prejuízos sofridos pelas vítimas.

Relembre-se que nos Estados Unidos, país berço da liberdade de manifestação do pensamento (consignada na Primeira Emenda à Constituição norte-americana), provido de enorme e irrestrito mercado editorial de biografias, as penalizações por violação a danos morais muitas vezes assumem valores extremamente elevados, que efetivamente desempenham uma função preventiva. Trata-se das punitive damages, cujo conteúdo pedagógico efetivamente impede que o exercício da liberdade de expressão transmude-se em uma ferramenta à disposição de autores levianos e de má-fé, que têm por objetivo unicamente ludibriar o público e macular a imagem de personalidades públicas.

Em segundo lugar, não é mistério a demora dos processos judiciais no Brasil. Ainda que a garantia à celeridade processual tenha recebido estatura constitucional no País, sabe-se que as demandas judiciais levam longos anos para serem concluídas, com uma profusão de recursos e incidentes processuais, muitos dos quais utilizados de maneira absolutamente protelatória. A ausência de agilidade do Poder Judiciário brasileiro é de todos conhecida e constitui um dado irrefutável.

Nesse sentido, eventual ação compensatória por danos morais sofridos em função de uma biografia amparada em fatos reconhecidamente falsos e desabonadores certamente levará anos para alcançar uma conclusão. E, quando tal ocorrer, a decisão condenatória envolverá uma indenização extremamente baixa se comparada aos prejuízos sofridos pela vítima, cabendo a ela, ainda, o tortuoso caminho do cumprimento de sentença. Eventual determinação judicial de retirada da obra do mercado virá anos após o lançamento do trabalho, quando as falsas informações dele constantes já serão de amplo domínio público.

Também deve se lembrar que o Direito Penal não constitui um legítimo mecanismo de repressão à elaboração de trabalhos bibliográficos sabidamente falsos. As penalidades previstas no Código Penal para os crimes contra a honra não são elevadas e autorizam a aplicação de toda sorte de benefícios processuais em favor do réu. Torna-se praticamente impossível, em tal contexto, que haja efetivamente a penalização do autor, até porque se cuida de uma temática melhor afeita ao campo da responsabilidade civil, desde que os instrumentos jurídicos-processuais correlatos funcionem.

Portanto, a proteção à honra e à imagem no Brasil, especialmente quando se trata de personalidades públicas, é quase inexistente. Ela enfrenta dificuldades associadas às baixas indenizações, que não cumprem a sua finalidade pedagógica, e à lentíssima tramitação dos processos judiciais no País. Nesse contexto, a única solução encontrada, por enquanto, constitui a censura prévia, mecanismo absolutamente inconstitucional e que infelizmente tem recebido chancela do Poder Judiciário.

Considerado esse contexto, cabe concluir que o Grupo Procure Saber e os artistas que o integram possuem um queixa legítima. Apenas a solução para eles buscada revela-se inaceitável.

É preciso debater seriamente o problema posto. Da forma como colocada a controvérsia, estabelecem-se, por hora, as seguintes soluções: institui-se o ilegítimo cerceamento à liberdade de expressão, com a censura a trabalhos biográficos sérios ou, então, autoriza-se a ampla veiculação das biografias, em um cenário de deficiente proteção à honra e à imagem de pessoas públicas.

A verdadeira solução, que certamente unirá ambos os lados da controvérsia, envolve a necessária observância de todos os direitos fundamentais subjacentes ao problema. Cuida-se de efetivamente autorizar a veiculação de biografias, independentemente de qualquer autorização por parte do biografado. Paralelamente, trata-se de disponibilizar às personalidades públicas meios próprios para a tutela de sua imagem e de sua honra, tornando mais célere e efetivo o processo judicial eventualmente proposto contra autores de má-fé e autorizando-se a fixação de indenizações que de fato desempenhem uma função pedagógico-punitiva.

Medidas dessa natureza certamente unirão historiadores, jornalistas, biógrafos e personalidades públicas em geral novamente, implementando-se soluções que efetivamente enfrentem o problema real em torno da questão e atendam ao interesse público.

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* Marcelo Proença é advogado do escritório Proença Fernandes Advogados e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP

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