Outubro Rosa: a leitura genética de Angelina Jolie
Mesmo sem a comprovação da doença justifica-se a intervenção médica preventiva, com a confiança no provável desenvolvimento das células cancerosas?
domingo, 13 de outubro de 2013
Atualizado em 9 de outubro de 2013 07:06
Angelina Jolie submeteu-se a uma mastectomia dupla (retirada dos seios) porque, segundo os médicos, carregava 87% de chances de desenvolver o mesmo câncer que vitimou sua mãe. É uma atitude inusitada e que causou repercussão mundial. A decisão foi tomada após a realização de um mapeamento genético capaz de detectar o crescimento das células defeituosas com o consequente viciamento do DNA. Sua iniciativa fez com que muitas mulheres investigassem seus históricos genéticos para avaliar a possibilidade de se submeterem a uma mastectomia preventiva.
A indagação que se faz é no sentido de que, mesmo sem a comprovação da doença, mas pela potencialidade genética, justifica-se a intervenção médica preventiva, com a confiança no provável desenvolvimento das células cancerosas? Quer dizer, a cirurgia será realizada em um paciente saudável, que não apresenta a doença e nem mesmo os sintomas, mas há possibilidade de desenvolvê-la.
O patrimônio genético é aquele que assegura a própria sobrevivência da espécie, por isso rotulado de patrimônio genético da humanidade. O Conselho da Europa, preocupado com os procedimentos inescrupulosos, recomendou a intangibilidade da herança genética levando em consideração as intervenções artificiais. "O patrimônio genético, como o próprio nome diz, afirma Oliveira Júnior, é a somatória das conquistas do homem, no plano físico, psíquico e cultural, que o acompanha através de seus registros biológicos, faz parte de sua história e evolução e, como tal, merece a proteção legal. É o relato e o retrato da raça humana, desde o homem de Neandertal. Passa a ser objeto de tutela pessoal e estatal e qualquer ofensa a ele é desrespeito à própria humanidade. A proteção desloca-se da individualidade do ser humano já formado, com personalidade própria, para aquele que ainda vem a ser, com personalidade jurídica"1.
A decifração do código genético é uma das maiores conquistas da humanidade. Conhecer a função que cada gene exerce no interior do DNA significa ler a informação genética e descobrir o código da vida. O homem, no entanto, não é apenas resultado do mapeamento genético, mas também dotado de potencialidade genética que, em sintonia com o meio onde vive, poderá diferenciá-lo dos demais, formando uma unidade exclusiva. A ciência inclina-se para desvendar os genes responsáveis por determinadas moléstias, como Alzheimer, síndrome de Down, Parkinson e outras, com a intenção de alterar o código genético e possibilitar a erradicação da doença.
Parte-se para uma medicina preventiva, estruturada no genoma para garantir a saúde das pessoas. Comercialmente é possível fazer a leitura do DNA, não completa, mas que garimpa informações importantes para que a pessoa conheça seu código genético e, principalmente, para evitar a ocorrência de doenças de que tenha predisposição genética. É o verdadeiro nosce te ipsum do pensamento do grego Sócrates, que apregoava o conhecimento de si mesmo para organizar racionalmente sua vida.
Em artigo publicado recentemente pelo periódico "Science Translational Medicine", pela equipe liderada pelos cientistas Jay Shendure e Jacob Kitzman, foi possível determinar pela primeira vez, sem qualquer risco, todo o genoma do feto humano, a partir de amostras do sangue da mãe grávida e da saliva paterna. Assim, se ambos os genitores tinham a mesma versão de um gene, o feto carregava a herança deste gene2.
O princípio da intocabilidade do embrião, é bom que se diga, já não tem aplicação plena, em razão dos avanços científicos na seleção dos embriões. Permanece sim a proibição de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, mas não se questiona a realização do exame para diagnóstico pré-implantatório e testes genéticos visando verificar se o embrião é portador de alterações cromossômicas ou genéticas. Se a constatação for positiva, admite-se o procedimento corretivo3. Em sentido contrário é a proposta de uma empresa americana que registrou a patente de um teste de DNA com o objetivo de permitir que receptores de óvulos e espermas doados escolham as características do bebê, tais como, a cor dos olhos, porte atlético, longevidade, estatura e outras mais4.
Na tentativa de responder à dúvida levantada, parece que não há dúvida com relação à resposta afirmativa. A tecnologia revela novos contornos que trazem benefícios para o homem, no sentido de proporcionar-lhe uma vida com melhor qualidade, evitando doenças incuráveis e sofrimentos dolorosos, sem qualquer ofensa ao princípio da dignidade humana. A decisão de Angelina marca uma nova etapa na história da humanidade e demonstra cada vez mais que o homem fica refém de sua própria tecnologia, quando desenvolvida em favor da vida. É o princípio da beneficência da Bioética.
A discussão erudita e bem-humorada entre os escritores Eco e Carrière oferece um quadro da renovação constante da tecnologia e a adaptação do homem em acompanhá-la. Diz Eco:
"É o presente que realiza os sonhos dos homens que nos precederam. Você tem toda razão. Estamos, por exemplo, prestes a tornar real a fonte da juventude. Vivemos cada vez mais e temos a possibilidade de terminar nossos dias numa forma insolente".
Responde Carrière:
"Daqui a cinquenta anos seremos todos criaturas biônicas. Vejo-o, por exemplo, Umberto, com os olhos artificiais. Fiz uma cirurgia do cristalino há três anos, no momento em que se anunciava uma catarata, o que me dispensa agora de usar óculos, pela primeira vez na minha vida. E o resultado da operação tem uma garantia de cinquenta anos! Hoje meus olhos funcionam como um filtro, mas um dos meus joelhos anda me traindo. Cabe-me decidir se o troco ou não. Uma prótese me espera em algum lugar. Pelo menos uma"5.
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1Oliveira Júnior, Eudes Quintino de. As condutas e responsabilidades médicas em face do princípio da autonomia do paciente. Tese de Doutorado. Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - Famerp - São José do Rio Preto, 2010, p. 120.
2Jornal Folha de São Paulo, edição de 08 de junho de 2012, Caderno Ciência + Saúde.
3Resolução Conselho Federal de Medicina, nº 1957/2010, item VI.
4Jornal Folha de São Paulo, edição de 4 de outubro de 2013, Caderno Ciência+Saúde.
5Eco, Umberto; Carrière, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Tradução: Telles A. Rio de Janeiro: Record, 2010.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.