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Agronegócio e o STJ: Praga não invalida contrato de venda antecipada de soja e sua CPR

Recente acórdão trouxe dois entendimentos importantes acerca do agronegócio, no tocante à matéria contratual de espécie e suas garantias.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Atualizado em 1 de outubro de 2013 11:54

Recente acórdão proferido em sede de recurso especial (866.414/GO, j. em 20/6/13), cuja relatoria coube à ministra Nancy Andrighi, trouxe dois entendimentos importantes acerca do agronegócio, no tocante à matéria contratual de espécie e suas garantias, alterando por completo o resultado da referida demanda, até então vitoriosa pelo produtor rural.

Estava em questão o pedido de rescisão de contrato de compra e venda de safra futura de soja, garantida por cédula de produto rural (CPR) em favor de empresa mundialmente conhecida no setor de commodities agrícolas, em virtude da superveniência da contaminação das lavouras pela praga vulgarmente conhecida como "ferrugem asiática", o que, segundo o agricultor, acarretou o aumento dos custos de produção, decorrente do maior uso de fungicidas e a redução dos frutos colhidos, caracterizando, assim, "onerosidade excessiva" do contrato de venda antecipada de safra, a ponto de invalidá-lo, maculando, consequentemente, a garantia representada pela aludida CPR.

O juiz de primeira instância acolheu tal entendimento, julgando a ação procedente, o que foi confirmado pelo tribunal de justiça goiano através do não provimento do recurso de apelação da empresa ré.

No entanto, alegando dissídio jurisprudencial e ofensa a diversos dispositivos de legislação Federal, especialmente no tocante à má-fé do produtor, que teria usado dessa circunstância (superveniência da praga) para desobrigar-se de suas obrigações contratuais, a empresa recorrente teve, ao final, acolhidos os seus argumentos, com o provimento, por unanimidade, do referido recurso especial.

Da ausência de onerosidade excessiva pela ocorrência de praga nas lavouras

Ao adentrar na questão do mérito recursal, a ministra Nancy Andrighi apontou, primeiramente, que o STJ, no decorrer dos anos em que correu a referida demanda judicial já vinha amadurecendo1 e consolidando o entendimento de que situações como essa, vivenciadas pelo agricultor, não teriam o condão de invalidar o contrato de venda antecipada de safra futura, especialmente porque o fenômeno da "ferrugem asiática" na lavoura de soja não é nenhuma novidade no setor, não podendo ser tratado como fato "extraordinário e imprevisível", conforme exige o artigo 478 do Código Civil para caracterização da onerosidade excessiva.

Sabe-se que a ferrugem asiática da soja, causada pelo fungo Phakopsora pachyrhizie, é uma das doenças de maior importância dessa cultura na atualidade, pelo grande potencial de perdas na produtividade2.

Aponta-se que, no Brasil, a doença foi encontrada no final da safra de 00/01, no Paraná, e foi aumentando sua área de ocorrência a cada ano, em diversos outros estados. Na safra 2002, a doença foi relatada nos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, e na safra 03/04 ocorreu de forma generalizada, em quase todo o País, causando prejuízos consideráveis em várias regiões produtoras.3

Diante da notoriedade desse problema, afirmou a ministra que não há como tratá-lo como um evento imprevisível e extraordinário, a ponto de invalidar-se o contrato firmado entre as partes pelo alegado desequilíbrio contratual gerado, até porque, esse possível evento já está coberto pelos riscos próprios da contratação, influenciando, inclusive, na formação do preço do produto, ainda que venha a ser entregue no futuro.

Por se tratar de uma commodity comercializada na bolsa em nível mundial, o preço da soja é estipulado, diariamente, por uma série de condições de mercado, inclusive internacionais, além da influência das expectativas de negócios futuros e riscos do próprio negócio, que à época da contratação original não passam de simples hipóteses, caracterizando-se, assim, a sua aleatoriedade.

Desse modo, o contrato de venda futura de soja em grão envolve riscos, não só para o produtor, como também para quem a negocia no mercado, na medida em que o preço da saca de soja praticado à época da colheita pode ser maior ou menor do que o estipulado à época da contratação.

Por essas razões, com o objetivo de poupar as partes das incertezas e oscilações do mercado, tem sido considerada inaplicável a teoria da imprevisão em virtude de eventos previsíveis característicos dessa modalidade de negócio jurídico (incluindo-se, entre eles, a "ferrugem asiática"4), como também ocorre, por exemplo, quando há supervalorização do preço de mercado da soja à época da entrega do produto, ainda que seu preço estivesse sido pré-fixado em contrato5.

Assim, nessas hipóteses, não há como se caracterizar onerosidade excessiva do contrato de venda antecipada de safra futura, devendo valer a intenção das partes firmada na contratação, a boa-fé e os costumes.

Da consequente validação e exigibilidade da CPR

O segundo importante entendimento acatado pelo STJ no mencionado acórdão do REsp 866.414-GO em questão, decorrente de ter sido decretada a validade do contrato de compra e venda futura da soja (ainda que ocorrida praga superveniente nas lavouras), diz respeito à manutenção da higidez da CPR em tal circunstância, ainda que não tenha havido antecipação do pagamento pela soja vendida.

Remetendo a análise desse aspecto ao teor de um acórdão anterior de sua relatoria, no âmbito do REsp 1.023.083/GO (DJe 1/7/10), destaca a ministra Nancy Andrighi que, acertadamente, grande parte da doutrina6 sustenta que a emissão da CPR não pressupõe, necessariamente, a antecipação do pagamento pela safra futura, figurando a cédula emitida como um título de crédito, no qual o produtor pode, tanto obter o financiamento para o plantio, emitindo o papel contra o pagamento imediato do preço, como também, mitigar seus riscos (especialmente os relacionados à flutuação de preços na época da colheita), negociando, a preço presente, a sua safra no mercado futuro, à semelhança de um título de securitização em uma operação de hedg7 , de modo que o preço não precisa, necessariamente, ser pago de forma antecipada.

Alinhado com tal pensamento, a CPR pode, assim, desempenhar um papel maior no fomento do setor agrícola, tendo, inclusive, sido essa a intenção do legislador, ao não ter incluído na lei 8.929/84 qualquer dispositivo que imponha o pagamento antecipado do preço, como requisito de validade do título.

Assim, como título de crédito que é, a CPR deve ser analisada à luz de seus princípios formadores, notadamente a cartularidade e a literalidade, de modo que as condições de seu pagamento (se antecipado, parcelado ou futuro, após a entrega das mercadorias) deverão ser previstas em seu bojo, seja por meio de cláusulas especiais, como permite o artigo 9º da lei 8.929/84, ou por meio de contrato autônomo, em relação ao qual a CPR servirá de garantia.

Portanto, no caso em análise, tendo sido considerada pelo STJ a validade do contrato de compra e venda de safra futura, com o afastamento da tese de onerosidade excessiva decorrente da superveniência da praga ("ferrugem asiática"), foi, consequentemente, considerada hígida a CPR emitida em garantia da entrega dos produtos consignados no contrato principal.

Entendemos, assim, que o Superior Tribunal de Justiça está cada vez mais alinhado com o espírito do legislador de espécie, reconhecendo a extensão dos fins e oportunidades de uso da cédula de produto rural, no intuito de fomentar o agronegócio, ao mesmo tempo em que visa proteger a manutenção das garantias dos que contratam com os produtores rurais, no sentido de fazê-los reconhecer a existência de riscos próprios de seus negócios, para que, no futuro, não deixem de cumprir com suas obrigações contratuais, prejudicando, com isso, não só os seus fomentadores (bancos e outras empresas com esse fim), como também, os demais produtores rurais, pelo aumento de restrições para concessão de crédito nesse setor.

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1 REsp 977.007/GO (3ª Turma - STJ, DJe de 2/12/2009)

2A ferrugem asiática foi relatada pela primeira vez no Japão, em 1903. Posteriormente foi constatada em outros países da Ásia e na Austrália em 1934, na Índia em 1951 e no Havaí em 1994. No Continente Africano, foi detectada a partir de 1996, atingindo a Zâmbia e o Zimbábue em 1998, a Nigéria em 1999, Moçambique em 2000 e a África do Sul em 2001. Na América do Sul surgiu em 2001, infectando campos no Paraguai, e, em 2002, na Argentina. Em novembro de 2004, a ferrugem asiática foi encontrada infectando campos de soja nos Estados Unidos, o último grande país produtor de soja onde ainda não havia sido encontrada a doença. https://www.agrolink.com.br/culturas/soja/ferrugem.aspx

3Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, com exceção de Roraima, todos os Estados que possuem cultivo de soja já foram atingidos pela doença, envolvendo uma área de 22 milhões de hectares. https://www.agrolink.com.br/culturas/soja/ferrugem.aspx

4O próprio STJ já apontava no julgamento do REsp 783.404, de 28.06.07, da mesma relatoria, que "chuvas e pragas são circunstâncias previsíveis na agricultura, que o produtor deve levar em consideração quando contrata a venda para entrega futura com preço certo."

5APELAÇÃO CÍVEL Nº. 350.906-8 - TJPR - Cédula de produto rural. Venda futura de soja. Preço pré-fixado. Contrato aleatório. Onerosidade excessiva e desequilíbrio contratual não configurados. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão. Princípio da boa-fé. Manutenção da avença.

6Entre eles, ARNOLD WALD ("Da desnecessidade de pagamento prévio para a caracterização da Cédula de Produto Rural", in Revista Forense, vol. 374, págs. 3 e 14); HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERÇOSA e NANCY GOMBOSSY DE MELO FRANCO ("Crédito e Título de Crédito na Economia Moderna: Uma visão focada na Cédula de Produto Rural - CPR", in Revista de Direito Mercantil, vol. 45, n. 141, págs. 96 a 104), RENATO BURANELLO ("a Cédula de Produto Rural na Escrituração das Operações Financeiras", in Revista de Direito Mercantil, vol. 45, nº 143, págs. 121 a 126) e IVO WAISBERG ("Cédula de Produtor Rural", in Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, nº 44, págs. 321 a 334)

7Hedge é uma operação que tem por finalidade proteger o valor de um ativo contra uma possível redução de seu valor numa data futura ou, ainda, assegurar o preço de uma dívida a ser paga no futuro. Esse ativo poderá ser o dólar, uma commodity, um título do governo ou uma ação. Os mercados futuros e de opções possibilitam uma série de operações de hedge. Por exemplo, através de mercado futuro de dólar (negociado na BM&FBovespa), uma entidade que possui dívidas em dólar pode reduzir o risco de uma perda provocada por uma elevação da cotação da moeda norte-americana, desde que compre contratos futuros de dólar em valor equivalente à sua dívida. Proteções semelhantes podem ser feitas para reduzir riscos de outros mercados, com taxas de juros, Bolsas de Valores, contratos agrícolas e outros, dependendo das necessidades da instituição que está à procura do hedge. https://economia.uol.com.br/financas-pessoais/dicionario-financeiro/?letra=H

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* Sylvie Boëchat é advogada do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.

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