O DNA não mais absoluto?
Recentemente, descobriu-se que alguém possuir cargas genéticas duplas é fato muito mais comum do que se poderia imaginar. Somente se conheciam, na humanidade, até então, quarenta pessoas em condição de quimeras.
sábado, 21 de setembro de 2013
Atualizado em 20 de setembro de 2013 15:31
Está em xeque uma certeza que nós tínhamos como absoluta: a de que somos o que o DNA indica, como pessoas de único genoma. Agora, descobre-se que alguém possuir cargas genéticas duplas é fato muito mais comum do que se poderia imaginar. Somente se conheciam, na humanidade, até então, quarenta pessoas em condição de quimeras.
Entenda-se por quimera as pessoas que apresentam, em seu organismo, células com cargas genéticas distintas, pensando-se que essa condição seria exclusivamente resultante da fusão de zigotos que originariam gêmeos, mas que se fundiram em um único feto com carga genética dúplice (genomas distintos).
O artigo "DNA Double Take", de autoria de Carl Zimmer, da Yale University veiculado no "The New York Times", em sua edição de segunda-feira passada (16/9/2013), vem revelar como a ciência está a passos rápidos demolindo a ideia do genoma único e exclusivo, ao extremo de embaraçar a plena identificação genética das pessoas, com repercussões severas nas relações parentais e nas pesquisas criminais forenses.
Revela o articulista que não é mais incomum uma multiplicidade de genomas na mesma pessoa, a tanto permitir que uma mãe biológica de três filhos tivesse a sua maternidade genética questionada em relação a dois deles, quando o material genético colhido se mostrou incompatível com o genoma desses, por se desconsiderar (ou não se admitir), na hipótese, ser ela portadora de DNA composto (genomas dúplices).
Cientistas constataram, então, que a duplicidade de genomas da mulher implicou que parte de seus óvulos possuíam uma determinada carga genética enquanto outra parte apresentava carga genética distinta. A se extrair do axioma a dizer que "genoma é o cerne de nossa identidade", tenha-se por reconhecer, em menos palavras, duas pessoas em um só corpo, a teor de identidades genéticas diferentes de sua única pessoa. E, no rigor dos berços genéticos, ela era a mãe dos seus três filhos.
Mulheres quimeras são assim, há mais de um genoma nelas. Nessa mãe, um originou o sangue e alguns óvulos. Outros óvulos continham um genoma separado.
Ora bem. Uma variação genética generalizada em um mesmo corpo, não mais hipotética, agora é reconhecida pela ciência, provocando notáveis impactos nas pesquisas científicas, nomeadamente tendo em conta a relação dos múltiplos genomas e doenças raras.
Lado outro, porém, impactos exsurgentes desafiam a prova do DNA no efeito do reconhecimento da maternidade/paternidade. Exatamente porque já não mais se dispõe de uma certeza absoluta, segundo a qual "a informação genética de uma célula pode dizer sobre o DNA de todo o corpo de uma pessoa". O genoma que se apura de células retiradas de um cotonete bucal pode não ser o mesmo genoma que deu origem ao sangue, cujo líquido serviu a um resultado de exame genético de DNA que se contradiz.
Mas não é só. A mãe geratriz pode absorver, inclusive, a carga genética dos próprios filhos que teve. A pediatra Linda Randolph, citada por Carl Zimmer, em artigo publicado no "The American Journal of Medical Genetics" (julho/2013), sinaliza que os neonatos, os fetos que nascem, deixam suas células fetais no corpo de suas mães, podendo ganhar estas os genomas de seus filhos. Os genomas migram para diferentes órgãos e são absorvidos nos respectivos tecidos.
Mulheres quimeras são assim, tornam-se também geneticamente refeitas pelos próprios filhos que geraram.
E com eles, inclusive, a presença paterna, porquanto os filhos nascidos também trouxeram consigo a carga genética do pai. Imagine-se, daí, o admirável mundo presente no olhar novo geneticista onde as mães quimeras colocam-se, iniludíveis, como a trindade genética do amor feito. Não mais apenas pontifica a relação genética do casal com o filho gerado. Despontam descobertas relações genéticas novas: (i) a relação filho-mãe, pelos resíduos fetais, e (ii) a relação homem-mulher, assumindo esta o liame geneticamente adquirido do genoma do parceiro, contido no genoma do próprio filho, em células fetais deixadas no corpo da mãe. Intrigante questão.
É bem dizer, então, com Linda Randolph, que mulheres grávidas provavelmente sejam todas quimeras: "It's pretty likely that any woman who has been pregnant is a chimera". As quimeras existem. Ano passado, cientistas canadenses, na procura de mulheres de tal condição, em autópsias cranianas de cinquenta e nove delas, detectaram neurônios com o cromossomos Y (masculino) em 63% dos cérebros investigados; importando dizer que aqueles neurônios se desenvolveram a partir das células originárias dos filhos.
Os geneticistas estão em vigília. Múltiplos genomas em uma pessoa obrigam, inexoravelmente, o sequenciamento de todos eles, para efeito de testes preditivos, dos aconselhamentos genéticos, das terapias gênicas e, sobretudo, da informação do DNA. A vigília mais se acrescenta, quando nossos múltiplos genomas pessoais, estão a mostrar que uma amostra de saliva e uma amostra de esperma, nem sempre indicam a nossa mesma pessoa.
O desafio é extremamente significativo e fascinante, à medida dos estudos recentemente realizados, em identificação de genomas dúplices, com impactos relevantes em expressão de nossa verdadeira identidade genética. O quimerismo agora reconhecido como frequente, desafia, induvidosamente (i) a ciência criminal forense, em identificação de criminosos e/ou vitimas; (ii) o aconselhamento genético, no controle de doenças, quando mutações celulares de outros órgãos não se tornam visíveis na investigação a partir de células do sangue; e principalmente; (iii) a análise genética, para efeito da segurança afirmativa inequívoca de uma relação parental.
O excelente artigo de Carl Zimmer põe a descoberto, com precisão descritiva, a real confusão genética, quando múltiplos genomas possam comprometer a verdade final genética do que somos. Mas não alarma. Células com genótipos distintos, quimeras com diferentes conjuntos de DNA, são fatos que a ciência aprende a conviver.
A americana Karen, uma quimera tetragamética, superou os testes contraditórios de histocompatibilidade, fornecendo diferentes tecidos de seu corpo à análise genética para ser reconhecida, enfim, como mãe de seus três filhos e não apenas de um deles. De efeito, o quimerismo genético congênito ou adquirido, os diversos códigos genéticos distribuídos, de forma aleatória, em órgãos e tecidos, estão a exigir uma maior eficiência e amplitude dos exames genéticos.
Restam duas certezas: (i) os testes genéticos afirmativos continuarão sempre certos, na proporção 99,99%. Os negativos, nem sempre; (ii) O direito buscará sempre a ciência, para reafirmar o homem como centro de uma verdade universal.
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* Jones Figueirêdo Alves é diretor nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, coordena a Comissão de Magistratura de Família e é desembargador do TJ/PE.