Direito Natural e Direito Positivo: lições de Norberto Bobbio
Nas diversas épocas e sociedades, já estivemos dos dois lados, prevalecendo, ora o direito natural, ora o direito positivo como também Bobbio nos ensina.
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
Atualizado em 23 de agosto de 2013 15:13
Iremos tratar, de forma breve, sobre as conceituações clássicas de Direito Natural e Direito positivo, e, da mesma forma, abordar aspecto histórico destes e a forma como fora tratado como instrumento do modelo social vigente à época, tudo à luz de lições do ilustre jurista Norberto Bobbio.
Por primeiro, como dissemos, trazemos a definição clássica do que seja Direito Natural e Direito Positivo, e para tanto nos valemos, como dito, das lições de Norberto Bobbio1:
"Dois são os critérios pelos quais Aristóteles distingue o direito natural e o direito positivo:
a) O direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia (o filósofo grego emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer parte), enquanto que o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto.
b) O direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas a alguns e má a outros. Prescreve, pois, ações, cuja bondade é objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os escolásticos medievais). O direito positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro mas, uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: é correto e necessário), que sejam desempenhadas do modo prescrito em lei. Aristóteles dá este exemplo: antes da existência de uma lei ritual é indiferente sacrificar a uma divindade uma ovelha ou duas cabras; mas uma vez existente uma lei que ordena sacrificar uma ovelha, isto se torna obrigatório; é correto sacrificar uma ovelha, e não duas cabras, não por que esta ação seja boa por sua natureza, mas porque é conforme a uma lei que dispõe desta maneira.
(...)
Dois são os critérios no qual se baseia a distinção de Paulo entre direito natural e direito civil:
a) o direito natural é universal e imutável (semper) enquanto o civil é particular (no tempo e no espaço)
b) o direito natural estabelece aquilo que é bom (bonum et arquum), enquanto o direito civil estabelece aquilo que é útil: o juízo correspondente ao primeiro funda-se num critério moral, ao passo que o relativo ao segundo baseia-se num critério econômico ou utilitário".
Ultrapassada a conceituação, seria natural imaginar que tanto o direito natural quanto o direito positivo poderiam aplicar-se na solução das necessidades do homem em forma de convivência, sem prevalência pré-estabelecida, mas não parece ser o que a história nos ensina.
Nas diversas épocas e sociedades, já estivemos dos dois lados, prevalecendo, ora o direito natural, ora o direito positivo como também Bobbio1 nos ensina:
"O exame das diversas concepções sobre a diversidade de planos em que se colocam o direito natural e o direito positivo nos levaria muito longe. Limitando-nos a algumas indicações a respeito, diremos que na época clássica o direito natural não era considerado superior ao positivo: de fato o direito natural era concebido como "direito comum" (koinós nomos conforme o designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma data civitas; assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito particular prevalece sobre o geral (lex specialis derogat generali), o direito positivo prevalecia sobre o natural sempre que entre ambos ocorresse um conflito (basta lembrar o caso da Antígona, em que o direito positivo - o decreto de Creonte - prevalece sobre o direito natural - o "direito não escrito" posto pelos próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela).
Na idade média, ao contrário, a relação entre as duas espécies de direito se inverte; o direito natural é considerado superior ao positivo, posto seja o primeiro visto não mais como um simples direito comum, mas como norma fundada na própria vontade de Deus e por este participada à razão humana, ou como diz São Paulo, como a lei escrita por Deus no coração dos homens. Esta concepção do direito natural encontra sua consagração oficial na definição que lhe é dada no Decretum Gratiani (que é a primeira grande recensão do direito canônico, o que constituirá posteriormentea primeira parte do Corpus Juris Canonici).
Jus naturale est quod in lege et in evangelho continue tur
(isto é, o direito natural é aquele contido na lei mosaica do Velho Testamento e no evangelho). Desta concepção do direito natural como direito de inspiração cristã derivou a tendência permanente no pensamento jusnaturalista de considerar tal direito superior ao positivo. Esta superioridade é afirmada pelo próprio Decretum Gratiani, logo depois da passagem citada:
Dignitate vero jus naturale preaponi tur legiti bus ac constitutioni bus ac consuetudinibus".
E, com o fim da idade media, temos que o retorno do juspositivismo, que só então passa a ter esta nomenclatura, como explica o mesmo autor1:
"A sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo de um ordenamento jurídico próprio: o direito aí se apresentava como um fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela sociedade civil. Com a formação do Estado moderno, ao contrário, a sociedade assume uma estrutura monista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar aquele de criar o direito: não se contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser o único, ou diretamente através da lei, ou indiretamente, através do reconhecimento e controle das normas de formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro curso chamamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado.
A esta passagem no modo de formação do direito corresponde uma mudança no modo de conceber as categorias do próprio direito. Estamos atualmente tão habituados a considerar Direito e Estado como a mesma coisa que temos certa dificuldade em conceber o direito posto não pelo Estado, mas pela sociedade civil. E, contudo, originariamente e por um longo tempo, o direito não era posto pelo Estado: bastava pensar nas normas consuetudinárias, e em seu modo de formação, devido a um tipo de consenso manifestado pelo povo através de um certo comportamento e uniforme acompanhado da assim chamada "opinio juris ac necessitatis".
Diante do dogma da completude do ordenamento, poderá servir o Direito Natural como fonte subsidiária à lei, por meio da chamada Heterointegração da norma jurídica, como explica Bobbio2:
"O tradicional método de heterointegração mediante recurso a outros ordenamentos consistia, no que se refere ao juiz, na obrigação de recorrer, em caso de lacuna do Direito positivo, ao Direito natural".
Quanto à prevalência do Direito Positivo ou Direito Natural, qualquer pensamento dogmático ou ortodoxo não nos leva senão à grave erro.
Isto por que, se o homem é ser social e natural, ora o direito imposto pela sociedade será apto a resolver questões da vida, e ora o será o direito natural. E a prevalência de cada qual dependerá de análise individualizada do caso concreto.
Dizer de antemão o que irá prevalecer é um largo caminho à um dogmatismo que fez do direito um instrumento de ideais muito distantes da justiça e pacificação social, o que a sociedade moderna deve evitar.
O homem é natural e social, e assim são suas necessidades, e o direito deve se prestar à atender estas de acordo com a natureza destas.
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1 BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Puglesi, EsdonBini, Carlos E Rodrigues - São Paulo: ícone, 1995, p. 16 à 27.
2 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, trad. Maria Celeste C. J. Santos; ver. téc. Cláudio De Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Júnior - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição, 1999, p. 147.
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* Mário Henrique da Luz do Prado é advogado do escritório JBM Advogados